Música, Cidade, Etnicidade: explorações a partir de cenas musicais em Lisboa

Pretendemos explorar cenas musicais actuais em Lisboa, na perspectiva da circulação musical e cultural. Discutir os modos como a música e as cidades interagem num contexto acrescido de inter-conexões entre o local e o global. Sugerimos que a criação e a performação musicais assim como a inovação cultural, não podem ser reduzidas às iniciativas locais ou institucionais. Na base da existência da assim chamada “cultura global”, as cidades reinventam-se, promovendo várias auto-definições (às vezes conflictuais). No caso de Lisboa, esta tendência é acompanhada por um desejo aparentemente acrescido de conectar ou re-conectar o mundo lusófono, que documenta eventualmente as auto-imagens de Lisboa como cidade inclusiva e multicultural. Neste processo, novas formas de etnicidade podem ganhar visibilidade na mercantilização da Luso-World music (ou seja, a World music praticada nos países lusófonos). No horizonte das cidades imaginadas como “megacidades transculturais”, a música tende a ganhar espaço na promoção dos sentimentos de lugar e pertença na, e à cidade.

Os processos de internacionalização da cultura no espaço das metrópoles são cada vez mais visíveis. Os valores transmitidos (e refletidos) por esses processos (abertura e diversidade culturais, hibridismo, transculturação, …) tornam-se cada vez mais legíveis. A World music, por exemplo, desde há cerca de vinte anos representa a circulação quase permanente de pessoas e de sons, num mundo hiper-conectado, aberto e sem fronteiras: um mundo que corresponde aliás ao nosso mundo globalizado, ou pelo menos à “imaginação diaspórica” (Dunn, 2002) que lhe é associada. Num mundo de migrantes, a memória e o sentimento do lugar seriam actualizados por uma música global des-territorializada que, partindo de um lugar específico, acaba por “falar de todos” à medida em que ela alcança a esfera da cultura global. Assim, pode-se dizer que, se a migração é o ícone da era global, a World music seria a sua trilha sonora. A World music não pretende ser a detentora exclusiva da representação musical do mundo globalizado, mesmo quando ela tende a ser naturalizada como a sua “versão oficial”. Existem, em qualquer metrópole, cenas musicais pouco promovidas que, apesar de fazer uso de sonoridades globalizadas re-apropriadas, não deixam de comunicar sentimentos de pertença local fortes1.

Procuraremos mostrar o modo como os processos e valores relativos à internacionalização da cultura que, de forma mais geral, se enquadram no contexto da “nova economia política e sua cultura” (Sennett, s.d.), podem ser explorados a partir de algumas manifestações musicais na cidade de Lisboa.

Nota
A versão completa do artigo será publicada em breve num número especial sobre “Música e Migração” da revista Migrações do Observatório da Imigração, uma organização governamental dedicada ao estudo e apoio dos imigrantes em Portugal. Número especial editado por Maria de São José Côrte-Real e Salwa El-Shawan Castelo-Branco, do Instituto de Etnomusicologia (Universidade Nova de Lisboa).
Nessa altura publicaremos aqui também.

Referências bibliográficas
Bennett, Andy, e Peterson, Richard A. (ed.) (2004), Music Scenes. Local, Translocal, and Virtual, Nashville: Vanderbilt University Press.
Dunn, Christopher (2002), “Tropicália, Counterculture and the Diasporic Imagination in Brazil”, in Perrone, Charles A., e Dunn, Christopher (ed.), Brazilian Popular Music & Globalization, London & New York: Routledge, p. 72-95.
Sennett, Richard (s.d.), “The New Political Economy and Its Culture”, Disponível aqui (data de consulta: 20/09/2009).

  • 1. Uma cena musical (do inglês Music scene) pode ser definida como um conjunto local e discreto de espaços e lugares variáveis onde se encontram ocasionalmente músicos, produtores e fans partilhando um gosto para um certo género musical, e um estilo de vida distinto e escolhido. Uma cena musical é mais ou menos independente do mercado musical multinacional. Embora na maioria invisíveis, algumas cenas musicais podem chegar à popularidade e incentivar inovações musicais – o Reggae de Kingston-Jamaica, o Punk de Londres, ou o Hip-Hop do Bronx, etc. É bastante comum para qualquer cidade, ter uma cena Hip-Hop, uma cena Techno, uma cena Punk, uma cena Indie, uma cena Metal, e muitas outras cenas, baseadas em outros géneros musicais. Andy Bennett e Richard Peterson sugeriram vários níveis de relevância para a análise de cenas musicais: local, translocal, e virtual (Bennett e Peterson, 2004).

por Jorge de La Barre
Palcos | 15 Junho 2010 | Circulação, Comunidades emocionais, Etnicidade simbólica, Invenção da tradição, Memória do lugar, Transculturalismo