Dança: um património universal, sem nacionalidades e sem fronteiras

Mensagem do Dia Mundial da Dança

É comum ouvirmos atribuir à primeira dança um carácter sagrado. Efectivamente, antes de consolidar a linguagem verbal, o ser humano moveu-se organizando, posteriormente, uma gestualidade que passou a utilizar como linguagem de comunicação. No início, o Homem dançou para celebrar ou para pedir as boas graças de poderosas e desconhecidas entidades, mas com a estruturação das formações sociais, a dança foi diversificando os seus propósitos e funções. Divididas em classes, as sociedades continuaram a utilizar a dança como meio de recreação e de interacção entre os seus membros. A par das danças populares, as danças de corte europeias progrediam para uma posição de destaque nos grandes espectáculos cujas exigências acabaram por requerer a profissionalização. No ano de 1661, Luís XIV, rei de França (ele próprio bailarino), funda a primeira instituição para o ensino da dança. Mais tarde, com as contribuições do coreógrafo francês Jean-Georges Noverre (1727-1810), a dança ergue-se como arte independente, sob a premissa de que um profissional deveria possuir, a par de uma sólida formação técnica, uma cultura e um conhecimento alargados e abrangentes. A partir daí foram-se consolidando as metodologias para o ensino da dança que hoje vigoram em todas as escolas de formação de bailarinos, professores e coreógrafos.

Na Angola independente, logo no início de 1976, também foi aberta uma Escola de Dança a qual, embora fosse uma instituição oficial e estatal, se viu confrontada desde cedo com toda a sorte de adversidades que a impediam de cumprir o seu objectivo essencial: formar profissionais dentro dos padrões de um saber especializado universal. O desinteresse em entender o ensino artístico, enquanto domínio científico, ditou que a escola deveria servir essencialmente para ensinar as ‘danças nacionais’ (entenda-se tradicionais e populares). Deste grande erro inicial decorre a actual situação de, 40 anos passados, não termos nem profissionais de dança angolanos suficientes, nem uma classe da dança em Angola.

Esta fragilidade, aliada ao pouco esforço efectuado no sentido de desenvolver uma estratégia de educação artística massiva, conduziu à propagação do discurso irresponsável de sobrevalorização de um património fundamental antigo, continuando a remeter-se parte importante da sociedade angolana à ignorância sobre os demais contextos em que a dança se manifesta, nomeadamente, a sua vertente artística.

Há anos que a dança tem vindo a negociar propostas criativas com outras linguagens e mesmo com outros campos disciplinares. E, neste vasto universo de experiências, abrem-se portas para novas e extraordinárias consolidações. Actualmente produzem-se criações em associação com as “novas” tecnologias, por exemplo, onde a dança se reinventa em renovadas linguagens e beneficia das conquistas sociais, técnicas e científicas que, necessariamente, acompanha. E nós?! Por aqui continua a arrastar-se, em cerimónias protocolares, salões de festas, jantares e espectáculos de fraca qualidade, uma falsa tradição (já traída e adulterada na sua mais pura essência) como única possibilidade de dança “nacional”, à qual se juntam, orgulhosamente, o popularucho e algum condimento de obscenidade, sempre com a bizarra convicção de, assim, estarmos a “subir”, ou seja, a avançar, em nome de uma identidade imaginada. Como resultado deste olhar monolítico e distorcido sobre a dança, exalta-se hoje o culto da mediocridade, agravado pelo facto de, com este estafado e descaracterizado folclore para turistas “incautos”, estarmos alimentando alegremente a imagem redutora que o ocidente um dia construiu e continua a querer perpetuar, de uma África parada no tempo, primitiva e idílica, ao som de tantãs e pores-do-sol inigualáveis.

A verdade é que a máquina do progresso funciona a uma velocidade inflexível. Assim, ao mesmo tempo que protegemos as nossas tradições, urge que nos abramos ao mundo, urge que se dê à sociedade angolana o direito de ver mais além; há que perceber que as danças patrimoniais não são tudo o que um povo acumula, pois as criações modernas e contemporâneas integram igualmente o património artístico dos povos e do mundo. É tempo de experimentarmos a sabedoria de assumir a Dança, enquanto arte e não apenas enquanto produto descartável de divertimento circunstancial; há que olhar para a dança como património universal, sem nacionalidades e sem fronteiras; e é fundamental que se dê dignidade aos verdadeiros profissionais, convencendo-nos de que essa designação é uma exclusividade daqueles que adquirem um saber especializado em instituições próprias. Está na hora de se aceitar a Arte como algo incómodo, inovador, frontal e transformador.

Mas Angola tem, desde 1991 a Companhia de Dança Contemporânea que, numa condição de sobrevivência que em nada dignifica o nome do país, resiste há quase 24 anos empenhando-se para modificar este cenário, criando e partilhando outros caminhos artísticos, outras linguagens, outras estéticas; que pretende mostrar a diferença entre o entretenimento vulgar e a Arte enquanto produto de reflexão e de profundo investimento intelectual; que se esforça por demonstrar que dançar e coreografar não significam apenas movimentar o corpo ou organizar pessoas num palco, mas fazê-lo de forma consciente, segundo técnicas e códigos aprendidos; que tenta, nas poucas oportunidades que lhe são dadas, mostrar a Dança no seu estado de maior elaboração: a dança teatral ou cénica.

Hoje, em tempo de reflexão, o colectivo que constitui a única companhia profissional angolana – uma das primeiras em África e membro do Conselho Internacional da Dança da Unesco – insiste que é fundamental mostrar ao país e ao mundo que a nova Angola também possui um eixo de divulgação de uma NOVA DANÇA e pede solidariedade para poder viver e todos contagiar com a sua imensa vontade de manter abertas as portas da inovação e do progresso para bem do desenvolvimento da dança angolana.

A CDC Angola também é genuína e também é nacional!

 

Companhia de Dança Contemporânea de Angola, aos 29 de Abril de 2015

 

 

 

por Ana Clara Guerra Marques
Palcos | 28 Abril 2015 | Companhia de Dança Contemporânea de Angola