A Epistemologia do Esculacho (dois excertos)

Deize Tigrona é cria da Rocinha, uma favela conhecida por ser a maior da América Latina, e vizinha ao abastado e litorâneo bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro. Em 2003, Deize viu seu destino de empregada doméstica mudar crucialmente ao se tornar uma das primeiras e mais populares vozes femininas no funk carioca. Produzida por DJ Marlboro, responsável pela disseminação do gênero em território nacional (e além), Deize subia aos palcos da Furacão 2000. A renomada equipe de funk existe desde os anos 1970 e, ao longo dos anos, entre diferentes configurações e nomes, manteve a referência ao ano 2000 no título, como se garantindo a participação do funk Carioca nas narrativas afro-futuristas. Além de Deize, DJ Marlboro também produzia Tati Quebra-Barraco.

Deize TigronaDeize TigronaTati Quebra-BarracoTati Quebra-Barraco

Se o “Futuro é Feminino”, seus desafios tornam-se ainda mais profundos quando essa referência é também negra. Enquanto a presença e voz de Deize suscitava uma série de novas questões, críticas severas abundavam de todo canto, variando desde acusações de auto-objetificação sexual nas suas letras à redução de seus performativos como mera misoginia reversa. Ao que parece, o machismo sistêmico dos bailes funk, e de tudo o que orbita em seu entorno, obliteram nestes críticos a capacidade de perceberem que havia uma mudança acontecendo por dentro do contexto e acionada justo pelas mulheres, alvo preferencial de violência e opressão. Demorou aproximadamente uma década até que progressistas e pensadores feministas entendessem consistentemente que ali se desenhava um feminismo interseccional que passava ao largo dos movimentos sociais e do pensamento acadêmico, para ganhar corpo a partir do gênero musical mais marginalizado da cidade.

A história do funk Carioca acumula ataques de inúmeras naturezas, seja pela difamação, seja pela tentativa de proibição, e atualmente pela via regulatória estrita que praticamente inviabiliza a existência dos bailes nos termos da lei. O destino do funk, neste sentido, espelha o passado do samba, que até ser apropriado como símbolo nacional, teve os seus compositores tachados de vadios, e as suas rodas criminalizadas.

Procuro me engajar empiricamente no fluxo que um extenso time de cantoras engendra e que reconfigura o Funk Carioca1. Ao passo que minha escrita assume a posição de apoio enfático a todo procedimento de transgressão ao que, há tempos, tem lhes oprimido, entendo que minha contribuição se efetiva tanto mais se eu não eliminar as contradições de seus discursos. Ao contrário, opto por surfar nos paradoxos que daí se revelam, e que são, tanto quanto, generativos de seus discursos. Se, como sabemos, performativos podem operar certas introjeções normativas, meu interesse primordial nas relações entre ato e discurso está em identificar através do funk a diagramação de um feminismo negro e favelado que se constrói pela mobilização textual e erótica dos órgãos, em versos cantados tanto quanto nas coreografias que deles se desdobram.

 

II

 

A REENCENAÇÃO GAY

Em 2003, assisti ao choque de minha mãe ao se deparar com funks putaria tocando no aparelho de CD na sua sala de casa, graças à minha irmã e ao meu irmão. Ao mesmo tempo em que éramos obrigados a aprender a lidar e debater a hiperssexualização de pré-adolescentes, eu participava da noite eletrônica carioca, especialmente na boate Dama de Ferro, em Ipanema. Ali ouvi pela primeira vez a Tati Quebra-barraco e vi o funk feminino se associando, pela pista de dança, ao movimento queer. O Dama de Ferro fez do segundo andar um enorme banheiro. A pia ficava no centro da pista e ao redor estavam pequenas cabines privadas. A arquitetura associada à música e ao ectasy era a combinação toxicológica perfeita para a pegação coletiva e os experimentos plurissexuais. O Dama de Ferro ficava num endereço nobre da Zona Sul da cidade, entre Ipanema e Lagoa, e a invaginação esculachada do patriarcado era celebrada e estimulada em nossos corpos.

Mas foi alguns anos depois, em outra boate gay, Sal e Pimenta, localizada na Lapa e frequentada pela classe baixa trabalhadora, que conheci o grupo de queerpunkfunk Solange, tô Aberta! À época ainda não tinha ouvido falar em Monique Wittig, mas o show de Solange me arrebatou como a mais óbvia constatação de que a heterossexualidade não é mesmo compulsória. Escrevi um e-mail viral no dia seguinte:

 

Queridos!

 

Essa cidade não cessa de nos apresentar seu vigor, reinventando movimentos culturais e investindo tão fundo no seu cerne que o insustentável se nos apresenta sólido. É assim o funk dessa cidade, esse funk confronto, que de tanto cantar o senso comum dos gêneros sexuais, esvazia-os de si mesmos e torna-os mero discurso hiperbólico. É por sua definição mais tosca e sexista que percebemos o fracasso do heterossexualismo.

 

O desejo quanto menos categórico e mais categorizado tende sempre para fissura. Da definição, o desejo é sempre o corte. Mesmo no funk, em que a virilidade fálica insiste em através do discurso confinar atuações, insiste em psicanaliticamente afirmar o poder do pau, o poder do pai, mas é também justo por isso mesmo que escorrega e quanto mais duro tenta, e o funk tenta (!), delimitar quem pode o quê, mais as pessoas não se deixam capturar.  É que o fascismo sexistofálico é tão absurdo que o próprio discurso não consegue de todo afirmar o seu sentido direto.

 

Nem por isso ele está livre de problemas, nem por isso o funk é um movimento que traz em si esta própria consciência reflexiva. Quanto menos se pensa nos limites mais se acredita neles. Assim não garanto que o funkeiro macho-sexista percebe que cantar sua superioridade fálica heterossexual é pertencer ao fechado circuito homossocial. Ele goza sem querer perceber que o gozo do discurso é dirigido ao seus parceiros – como eles chamam aos amigos. O funk que cantam é um confronto em que um mede com prazer o pau do outro transformando o homoerotismo numa prova competitiva e esportiva. E na verdade, não tenho nada contra quem tem fobia do homo- e preferira o hetero-. Mas para afirmar a vivência do hétero- há de ser estratégico e fazê-lo direito. Há de se largar o homossocialismo fálico e fazer-lhes aguentar suas pregas sujas inerentes a todos nós. Aí não adianta a bravata irônica e infantil de lacraia, nem o sapateado velho oeste de pula viadinho.

Há sim que se jogar no queerpunkfunk e com eles gozar de todo fracasso. Há de se começar reenquadrando o viril, como Pedro e Paulo, de Solange Tô Aberta. No palco os dois jogam no lixo qualquer sex appeal para o outro de gênero. Tudo é mais embaixo, e concreto. O “cu é um buraco, que todo mundo tem. (e até o papa tem)” O comportamento viril é aqui o de se estar pronto para qualquer parada. Adoraria poder usar a palavra disponível, como se eles estivessem disponíveis para o que der e vier, mas pensando neles isso pareceria puro romantismo, e assumiria uma conotação muito pouco agressiva, o que definitivamente não lhes é o caso. O estar pronto significa aqui friccionar tenazmente em todo o contato. Se tudo é mais embaixo é por que tudo tem peso, e não há sublime possível – e talvez, justo por isso, surja-nos o sublime, de sua própria inadvertência. Eles falarem do cu não importa só por fazer do passivomotivo de orgulho – afinal isso já vislumbrava-se desde as apropriações queer dancings de Tati quebra-barraco e Dayse da Injeção. Saber usar o cu é fundamental, pois deflagra que não é da virilidade ser monumental. A grande ordem não é a do falo, menos ainda de onde lhe falta.  Há uma troca da forma pela força que impregna também o discurso.  A polaridade biológica macho-fêmea importa menos como polar e mais como cheiro. Solange Tô Aberta é a sujeira de gêneros, essa indefinição de formas, o buraco negro de sentidos. O homossexualismo com Solange é o fracasso. Talvez seja esta a maior potência de seu cantar sofista. Elas cantam o fálico apropriando-lhe com o cu. É o funk machista, é a música de Rodeio, é a chupação de uva do forró, e o funk pós-feminista. Nada ali, é mais sobre o pau e a xoxota, ou sobre a xoxota como o pau-em-falta, mesmo que Solange os cante nas letras – o que é até melhor, pois que besteira seria negá-los. O que importa é mesmo o cu, instrumento de voz, órgão que entona o discurso de Solange Tô Aberta. Eles metem sim no cu do Freud como bem cantam. E metem dentro, de verdade, não é metáfora. Só que metem nele com o que resta dele, o seu discurso. “O cu é um buraco que todo mundo tem”, e como um buraco está ali para transar formas e não para ser a forma. O buraco é só campo de forças. ele trava, ele quebra, ele expurga, ele recebe, ele não define. Ao mesmo tempo, é em “o cu como um buraco que todo mundo tem” que entendemos a grande política contemporânea. Não é mais um caso de maioria, mas sim um caso de unanimidade, e ela por si só não resolve nada, mas deixa todo o resto a ser resolvido. Todo discurso em prol do igual perde força, o homo- diminui, o que importa frente a ele é sempre o hétero-, a heterodoxia.

Beijos, Felipe2

 

Essa triangulação do movimento queerpunk e funk me pareceu a junção mais potente de pensamentos contras-soberanos, uma continuação fenomenal do funk carioca e sua invaginação de gêneros. Principalmente quando o ambiente dos bailes era tão heterocentrado.

Ao longo dos anos, o movimento Funk tem se deparado com inúmeras pressões de desconstrução e o discurso pós-feminista tem se ampliado e fortalecido as subjetividades que se identificam com o feminino de maneira exponencial. No entanto, no que diz respeito as dissidências de gênero queer, me parece que ainda há um longo caminho pela frente. Algumas funkeiras surgiram afirmando o desejo lésbico, e a transexualidade. Mas sua ascensão na carreira, invariavelmente fizeram-nas migrar do funk Carioca a outros gêneros mas economicamente assimiláveis.

 

NOTA: “A Epistemologia do Esculacho” é um capítulo de Ruminações: a arte de performance entre o prazer e a resistência de Felipe Ribeiro (no prelo, editora Circuito, São Paulo).

Felipe RibeiroA Erótica do Explícito

dom 17 out 17h no Teatro do Bairro Alto 

 Esta conferência-performance (ou DJ-lecture) centra-se no erotismo dos funks brasileiros pós-feministas, extravasado em voz, versos e corpo. Ao atrelar descrições pornográficas a bom humor e gestos obscenos, o canto gritado das cantoras funkeiras cariocas torna-se uma forma vigorosa de desestabilizar o machismo estrutural que impera nos bailes e além deles. Que tipo de episteme de confronto é essa que se constrói no gozo e subvertendo as lógicas que por tanto tempo as objetificaram? Como acabam estes atos de terrorismo erótico por ter também impacto na cena queer?

  • 1. A localização geopolítica do termo, distingue o que chamamos de Funk no Brasil em relação a denominação deste gênero mundo afora. Funk carioca é comumente identificado por uma batida frenética de 130BPM, e até mesmo mais forte em alguns casos. Apesar de surgido como um desdobramento da música Funk norte-americana, o Funk Carioca desenvolve na sequencia um compasso próprio.
  • 2. E-mail publicado no esquizotrans em 29.10.2008.

por Felipe Ribeiro
Palcos | 17 Outubro 2021 | feminismo, funk carioca, interseccionalidade