Um par de brincos

Deixa que eu dou, disse a filha, dispensando a enfermeira.

A mãe fez o sorriso doce e constrangido que aprendeu a fazer depois que começou a frequentar hospitais. Eu era assim, fiquei assim, disse para a enfermeira, apontando para a filha, com o olhar perdido e meio abobalhado pelos quatorze remédios de sua cartela diária. Há anos marcava seu tempo assim, em cápsulas rosas, azuis, amarelas, distribuídas nas pequenas divisórias de plástico, os horários escritos na fita crepe. A enfermeira fez o sorriso complacente e tranquilizador que aprendeu a fazer quando escolheu frequentar hospitais.

A filha não sorriu. Hospital não era sua necessidade ou escolha: era seu destino. E a mãe era pesada. Com muito custo conseguiu sentá-la. Ofereceu seu ombro. Cada parte da mãe pesava como um corpo inteiro. Cada membro da mãe era outro ser vivo. A mãe desmembrava-se onipresente, absoluta, onipotente. Como sempre.

Conseguiu transportá-la da cama até o banheiro num cortejo lento e silencioso. Mudou o chuveiro para o inverno e girou a torneira. A fumaça quente aos poucos ocupou o ambiente.

Difícil tirar o pijama das pernas, não se levantavam, dois totens fixos ao chão, a mãe agarrando-se na barra de ferro com todas as forças mesmo assim cambaleava, a filha não conseguia. Por um momento pensou em chamar a enfermeira de volta, mas puxou as duas pernas de uma vez, levantou um pé e depois o outro, pronto.

Tirou a fralda, jogou no lixo.

Estou te dando muito trabalho, não é, minha filha? Me desculpa, disse a mãe, os olhos lacrimejando. Seus olhos sempre lacrimejaram com facilidade, mas aquele dia estavam como uma bacia, as órbitas azuis circulando como duas luas sem rumo.

A filha não se deixava lacrimejar.

Eduardo Filipe, O SAMAEduardo Filipe, O SAMA

Quando você trocava as minhas, eu não sabia agradecer.

Vapor, calor, fumaça: procurava verdades para dizer, e aquilo era verdade. Também era verdade que, dois meses dormindo naquela cadeira, sem trabalhar, sem receber, acordando de madrugada com os pedidos de ‘me levanta’, ‘quero fazer xixi’, ‘me dóem as costas’, ela estava cansada. Não um cansaço da mãe. Um cansaço da vida. Um cansaço que não passaria com uma noite de sono numa cama confortável: precisava mudar de corpo para descansar.

(O corpo da mãe e suas dobras. Precisava lavá-lo. Observou a sua antiga geografia. Os peitos apontavam para o sul. Escondiam o país de onde ela vinha. De onde ela vinha? A cicatriz da cesárea escondia-se sob outras fendas. O tempo escavava os seus territórios. Precisava lavá-lo).

O banheiro era agora uma sauna - já não se viam inteiramente quando a mãe entrou no box. A filha entregou-lhe o chuveirinho e ficou do lado de fora.

Um esguicho de água veio em sua direção. Os jatos  atingiam seu rosto, seu peito, seu corpo inteiro.

(A mãe tremia, ela esquecera. Suas mãos já não costuravam. Não bordavam. Serviam apenas para serem abraçadas e conduzidas).

Ela riu.

Melhor me molhar de uma vez, disse, tirando a roupa. Em hipótese de choro, a água disfarçaria.

Mãe e filha debaixo do chuveiro.

O corpo em pedaços da filha diante do corpo em camadas da mãe. Pedaços das duas sob a camada de névoa no espelho. Por ele se olhavam.

Você está bonita, minha filha.

Estou gorda.

Pegou o shampoo, ensaboou os cabelos ralos da mãe. Com o sabonete líquido começou a ensaboar o corpo com as mãos, sentindo as pintas da mãe, as dobras da mãe, as verrugas. 

Lembra quando a vovó cortava nossas verrugas e jogava na fogueira? Falava que dava sorte. Tinha que fazer um pedido. Lembra?

A mãe riu. Tirou espuma da própria cabeça e colocou nos cabelos da filha. Tentou ensaboá-la. Tremia. Passou a mão no rosto e deixou o shampoo cair nos olhos: em caso de choro, os olhos vermelhos talvez fossem shampoo.

Desligou o chuveiro.

Vestiu o roupão, secou cada parte do corpo da mãe, passou creme. Lavanda de bebê no pescoço. (A mãe adorava). Passou em si mesma. (Também adorava). Sentou-a diante do espelho e ligou o secador. O secador ia dispersando a névoa no banheiro. Agora se viam perfeitamente. A filha passou um batom discreto na mãe.

Passa em você também.

A filha passou.

Levantou-a com dificuldade e com dificuldade vestiu o pijama novo que comprara para ela. Azul claro.

Bonito. Obrigada, minha filha.

Pelo espelho, a filha viu que faltava algo. Tirou um de seus brincos, colocou na orelha da mãe. Preparou-se para  levantá-la.

E o outro?

Um pra cada uma.

A mãe riu.

Você é mesmo esquisita.

Os brincos eram da avó. As duas cresceram com eles. Presente do primeiro furo.

Reiniciaram o lento cortejo de volta para a cama. Escada, pernas, cabeça, travesseiro, inclinação, vértebras, tórax, quadris, pernas, por último os pés.

Abriu as janelas do quarto. Os olhos azuis da mãe foram invadidos pelo sol e tornaram-se transparentes como o voal da cortina.  Mantiveram-se em silêncio, olhando a janela. Ventos suaves moviam os grandes exaustores eólicos prateados redondos contra o céu azul. A filha fazia um suave cafuné na mãe.

Meia hora depois o enfermeiro entrou, trazendo uma cadeira de rodas e o aparelho de pressão. Bom dia! Dona Judith?

 Dona Judith sorriu por força do hábito. A filha bem que tentou.

Grandes exaustores eólicos prateados redondos giravam contra o céu azul em sentido horário, agora com a trilha sonora do aparelho de pressão. Era só isso que ela via. Eu era assim, fiquei assim, disse Dona Judith, e o enfermeiro sorriu. A filha fez um cafuné mais forte na mãe. Tocou levemente em seu brinco. O enfermeiro começava a preparar a cadeira de rodas para o embarque de Dona Judith. Por um minuto ela olhou para a filha, que olhou para o enfermeiro e depois para a mãe. O enfermeiro sorriu para as duas, que não sorriram. De alguma maneira sabiam o que ele trazia nas mãos, embora não fosse necessariamente uma escolha dele.

 

Christiane Tassis publica pela Editora Língua Geral

Ilustrações de Eduardo Filipe, O SAMA.

por Christiane Tassis
Mukanda | 19 Setembro 2010 | Christiane Tassis