"Terceira Metade": Pela sombra do silêncio

adeus sinfonia.

 traz o cântico secreto para a berma de mim.

o corpo do átomo

feito

silêncio…

            Forçando-se a caminhar, o Padeiro tentou livrar-se do resto de sono que lhe invadia os olhos e os movimentos do corpo. “Agora que a escuridão chegou tão perto, quem irá explicar aos mais-velhos o nosso descuido pelo fogo…?”, pensou.

            Estalou os dedos das mãos, foi à despensa buscar os materiais do pão: o saco de sal, o fermento, a farinha. Enormes selhas de água repousavam já no recinto e o gato lânguido que nunca fazia ruído olhou para o homem como quem levemente pede um pedaço de comida.

            Em cada pausa, o Padeiro dava lugar às memórias recentes e inusitadas que o seu corpo havia conhecido. Num bilhete amarrotado, a letra desalinhadamente imperfeita da mulher que havia redigido as palavras:

            “Traz a resina dos teus olhos à brandura do meu dorso… Toca. Acende. Queima. (…) Assim saberemos que amanhã foi um lugar depois de nós.

Juan RulfoJuan Rulfo

            Pela primeira vez em anos se havia deixado deitar com todos os perfumes da secreta mulher. As suas mãos passeadores e de texturas fortes. O ritmo da sua respiração transpirada pelos suaves modos do amor. O exercício das movimentações físicas que conduzem ao orgasmo. A voz das suas frases desconexas e de texturas fortes: “estranhos sentidos - revoltos, inacordados - desenhavam a noite no meu corpo indomado… A vez das velas. E do silêncio amansador…

            Pela primeira vez em anos se havia descuidado em cuidar do fogo constante da sua Aldeia, a chama que ficava aos seus cuidados. Olhou as cinzas e quis saber do passado daquele cheiro em brasa adormecida. Quantos destinos haviam sido lidos nos restos daqueles brasidos? Quantas decisões tomadas à luz de um fogo já tão idoso?

            Recordou as palavras dos mais-velhos: “só os breves fulgores do silêncio sabem o modo de acordar a pele… Imitam assim o susto de uma flor débil, vaporosa.

            O que fazer com o seu segredo? Era o primeiro a despertar na Aldeia, e o único que sabia, agora, do segredo deste apagamento proibido. Estaria quebrado o ciclo? Seria perseguido pelos espíritos dos mais-velhos pelo seu descuido de natureza amorosa? E havia sido um descuido de natureza amorosa?

            O Padeiro repetiu um amurmurado de preces enquanto borrifava a mesa de farinha. Inspirou a um tempo só e fez o pão – como se fosse a primeira vez!

            A simplicidade dos gestos, a perfeita sincronia das mãos com a matéria que faz a massa, que se verá levedada, que conhecerá o fogo para ser o corpo colectivo de um alimento sempre abençoado. A cadência dos gestos: amassava o pão como se tentasse, vagarosamente, despertar a ausente mulher.

            Era amor, ou o grito definitivo da sua sólida solidão?

            Pela sombra do silêncio matinal, pressentiu que a madrugada era uma entidade prestes a sucumbir aos modos do sol. A sua pontual aparição. Incerto espectro entre verde vivo e ameno alaranjado.

            …

            O Padeiro olhou e viu: o corpo da noite aceso era uma besta embaraçada protegendo o seu embrião choroso e indefeso: a Humanidade.

 

Terceira Metade é uma programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a curadoria de Marta Mestre e Luiz Camillo Osorio, e que se desenha no espaço geográfico e mental do Atlântico, em especial na triangulação Brasil, países africanos e Portugal.

por Ondja ki
Mukanda | 26 Abril 2011 | literatura angolana, Ondjaki, Terceira Metade