Rotas da Escravidão e psicanálise

Sequência de trocas, no Observatório Psicananalítico sob o título: ” Contra Ataque”.

CONTRA ATAQUE         

poderia ser um título para essa empreitada psicanalítica.

é tal a tensão, a emoção tomando conta de nossa tranquilidade do pensar.

de repente, parece uma cruzada dos bons contra os maus.

 

indignado e muito triste.

com o que está acontecendo no Brasil (e no mundo).

certamente não é a luta dos bons contra os maus

mas os maus existem e fazem mal.

não tenhamos muitas certezas sobre nosssas certezas.

mas o acaso e a alteridade são determinantes da qualidade de nossas vidas ativas.

o fluxo da história acelerando.

o perigo rondando

mas existem muitos lugares para existirmos

e de onde pensarmos o que se está passando.

 

indignado e, de certa forma, revoltado não só com a extrema injustiça expandindo-se desde “os bons tempos coloniais” mas, mais ainda, com o massacre dos pobres do mundo: Síria, Iraque, Gaza, Palestina, Maré, Alemão, Conceição, Livramento… 

o lamentável aqui, entre nós, é o retrocesso de um ideal, de um projeto alteritário, ético e pacífico.

 

hoje os países não estão mais cada um com seus problemas, nem as sociedades psicanalíticas, mas, todos os problemas éticos e bélicos são comuns. 

são comuns os problemas comuns dos pobres do mundo,  

do ocidente ao oriente. dos desertos às florestas: há uma internacionalização ética e moral.

daqueles que não se submetem ao regime do pai opressor e suas democracias para ricos, sem representatividade dos pobres e oprimidos.

os poderosos roubam e corrompem, querem ficar mais e mais ricos. um objetivo da vida capitalista. ocupar a terra de outros e submetê-los à sua normalidade espoliadora.

o sucesso subindo à cabeça e à mão armada.

uma perversão no próprio sentido freudiano.

 

a palavra não dita

a conspiração do silêncio

o silêncio do testemunho

esta é a área que a psicanálise mais e mais deve focar e nela atuar o movimento psicanalítico.

tornar visível o invisível. 

audível.

legível.

 

Rotas da Escravidão.  

O grande intervalo Atlântico entre dois povos, duas cores, espaço intermediário de possível transição reparadora, agora sendo cruzado em via inversa e com opostas intenções: integração e aprendizado com o Outro do desconhecido.

 

Na TRIEB, dedicada ao Congresso realizado em 2016 em Lisboa, lê-se:

“O MAR COMO FRONTEIRA, A LÍNGUA COMO PONTE”

Nesta rota de retorno pelas vias abertas pelos infames navegantes negreiros, vamos em busca de uma nova objetividade nas relações entre negros e brancos, no reconhecimento daquilo, forcluido,talvez, dissociado certamente, das relações presentes, passadas ainda presentes, devido sua denegação e silenciamento.  Esperamos, gradualmente ir reconhecendo um novo sentido para este mesmo mar: 

MAR COMO PONTE

Para o aprendizado e integração de um modo diferente de organização social e de um modelo diferente de desenvolvimento infantil e sexual e de crenças no sobrenatural.

 O que tem de relevante povos tão diferentes e distantes falarem a mesma língua ?

Este sintoma pode revelar-nos que tipo de organização inconsciente ou, ao nível sociológico, que tipo de silêncio oculto está encoberto. 

Qual a relação de compromisso entre a língua recalcada e as forças recalcantes? 

Entre a pulsão do desejo e a conveniência de manter o recalcamento. 

 

O movimento escravocrata foi concebido a partir da onipotência paterna - instrumentalizando e posibilitando a realização da pulsão sádica em sua forma de conquista e espoliação, em sua forma sádico purificado: massacre e suplício e em sua forma sádico sexual: os estupros. 

 

A moral, tributária de um eu idealizado, algo acima do eu, condenatório do prazer do gozo e que sustentava tais práticas sádicas, era uma espécie de delírio místico de flagelo e atração por uma heroicidade demoníaca: a tortura como forma de submissão ao Senhor Deus, ao Senhor dos exércitos: salvação cínica das almas.

Os próprios defeitos e a “maldade interna”, ou “as partes más” são identificatoriamente projetadas, expelidas sobre o outro, que é identificado como dejeto, como coisa má, que deve ser purificada pelo exercício do flagelo ou morto em sofrimento purificador: o fogo, o napalm, o gás, as bombas.

Esse quadro, e a sociedade que nele tem sua origem, terá um longo caminho a percorrer até ao reconhecimento e reparação do mal feito. 

Esse movimento de reparação abre vias de modificação de organizações sociais, ainda hoje sustentadas por esses mitos sobre o ser homem e do valor da exploração e submissão dos mais fracos e dos povos mais fracos, o que, evidentemente, é simbolizado  na submissão ao Deus do Antigo Testamento: O elemento chave de justificação do tráfico de escravos e sua aceitação por quase toda boa sociedade europeia.

LINGUAGEM COMO FRONTEIRA

A repressão não só dos costumes, como da própria linguagem falada entre os vários povos submetidos ao regime colonial, uma versão menos sádica que a escravocrata, mas ainda segundo uma lógica do ser superior implementando a palavra do Senhor, proibindo as línguas maternas entre os povos dominados, de modo que não houvesse  fronteira que pudesse ser baluarte de defesa das identidades não européias.

 

As rotas da escravidão, aquela que escraviza o escravagista ao seu impulso sádico infantil e desrespeitoso à alteridade, começa a constituir-se desde a primeira infância, na relação turbulenta precoce com uma mãe que vive sob a opressão e pavor do pai, e logo na identificação com o pai sádico idealizado que violenta as mulheres e combate os rivais com crueldade e violência catártica, determinando-se aí, no circuito edípico, esse caráter que, poderíamos hipotetizar, como o caráter de predisposição para uma atividade escravagista. 

por Miguel Sayad
Mukanda | 2 Junho 2018 | psicanálise, Rotas da Escravidão