O Estado do Medo

Na terça-feira um grupo de voluntárias de apoio aos sem-abrigo foram agredidas no Porto por dois indivíduos que se identificaram como apoiantes do Chega. Ainda adornaram a sua performance com saudações nazis. Culparam as voluntárias de apoiar imigrantes.

No dia 10 de Junho, um grupo de neo-nazis assediava e injuriava parte do elenco de actores da Barraca – por alegadamente usarem adereços de vestuário identificados como de esquerda – , acabando por agredir um dos seus atores. Deixaram uma peça cancelada e panfletos fascistas.

A proximidade dos eventos permitiu criar uma sensação de que é algo reiterado e comum. Sim, devíamos estar alarmados há muito e não é nenhuma sensação, está mesmo a acontecer.

Da espera e agressões fascistas e nazis no fim do desfile do 25 de Abril; das milícias racistas contra imigrantes no Porto; as agressões de manifestantes do Chega a traseuntes; o assédio constante a imigrantes nos seus locais de trabalho e de culto; as ameaças de violação, de morte e listas de activistas a abater; as dezenas de eventos culturais cancelados com coação fisíca; agressões a autarcas, as contínuas manifestações de ódio contra um outro, o Islão, o imigrante, o trans, o homossexual. A esta lista deve-se adicionar todos os incidentes diários e anónimos que nunca chegam aos media, mas cujos relatos aumentam, alguns até estatísticamente coleccionáveis: queixas de racismo à PJ aumentaram 38% em 2024.

Talvez um visitante acidental desta narrativa, alheado da realidade portuguesa, pudesse pensar o quão atarefado está o poder político do país e suas forças de segurança perante tal cenário. A verdade é que não. Ou talvez até estejam atarefados, porém, não no seu combate e sim na sua cumplicidade.

A acção e a inacção dos políticos no poder e das forças de segurança parece onerar ainda mais as vitimas de todos os incidentes listados. Os ataques machistas e o femicídio proliferam no país, e os recursos da presença polícial no terreno continuam dedicados a encostar imigrantes à parede, a fazer das periferias da cidade um estado policial, a prender erradamente para o primeiro-ministro nos agradar com suas conferências de imprensa. Quanto aos perpetuadores de crimes de ódio: palmadinhas nas costas e passou-bens.

O exercício terreno das forças de segurança é fundamentado pelo poder político que temos. Não é de estranhar a indiferença de António Leitão Amaro perante os incidentes dos últimos dias ou que nada tenha distinguido a intervenção de Carlos Moedas da de André Ventura: fazem parte do mesmo sistema. Perante as agressões da extrema-direitas, ambos responderam com os perigos da extrema-esquerda. Não importa que ela não exista.

É uma cartilha antiga, também ensaiada por Donald Trump, copiada de forma mediocre e ficcional para o nosso país, para que se transforme na realidade das nossas vidas futuras ainda mais mediocres, para que os seus interesses vinguem.

A tal parte do Relatório de Segurança Interna (RASI) que foi ocultada pelo governo na sua versão final explica-nos muito sobre isto. Não se esqueçam que o RASI não é só um anuário estatístico, é também um documento político. Intitulava-se “1.1.5: movimentos extremistas e ameaças híbridas”, e mais do que lá está escrito sobre a extrema-direita, é muito mais interessante para a compreensão de todos o que diz sobre a extrema-esquerda/anarquismo:

“estes grupos e movimentos têm vindo a alcançar maior visibilidade atendendo ao contexto de vulnerabilidade económica e social vigente (…) com especial enfoque na luta pela habitação e à melhoria das condições sociais”.

Por isso sim, se acreditas num mundo mais justo e queres ser activo nessa transformação, és uma ameaça a este Estado. Quase que basta apenas seres um cidadão preocupado.

Elencos, músicos, imigrantes, negros, assistentes sociais, mulheres, anti-fascistas, transeuntes, trabalhadores, jornalistas, queers, militantes, artistas; somos todos ameaças a este Estado; e é também aí que entra a impunidade à extrema-direita: ela é instrumental e o braço armado deste Estado de coisas, para nos impor o medo e meter-nos na ordem.

Já não basta gritar “não passarão”, que eles já passaram.

 

Publicado originalmente no blog Traficante de Sonhos

por António Brito Guterres
Mukanda | 15 Junho 2025 | estado, extrema direita, medo, polícia, segurança