Novíssimo Testamento de Mário Lúcio Sousa PRÉ-PUBLICAÇÃO

Ilustrações de Tiago Lança

 

_É chegada a minha hora,

balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas, tratava-se da mulher mais desinteressada pela vida que a vida alguma vez recebera, aquela que entre todas este mundo menos amara, aquela que mais desprezara o corpo e os seus prazeres, a mais temente a Deus de todas as criaturas, a grande pedra da igreja local, a catequista a tempo inteiro e por todo o tempo da diocese, a mais admiradora de Jesus que nenhuma outra cristã, a conhecedora sem par das Escrituras, a servidora ímpar dos pobres, o exemplo absoluto dos fiéis, mulher que, para além de dedicar toda uma vida a preparar-se para um dia subir ao céu e viver à direita dos apóstolos, também era uma estudiosa incomparável da morte, de todas as formas da morte, porque queria saber bem como morrer para poder alcançar a vida eterna, o que lhe dera conhecimentos inéditos e lhe permitira decifrar todas as etapas por que passam todos os mortos, e dizia que as fases da moribunda são seis, a Dúvida, o Desespero, o Apego, a Impaciência, que é o momento da cólera, o Orgulho, e o Abandono, assim bem contadinhas, mas isso não lhe fazia ter menos medo à morte, mesmo crente da sua inabalável esperança de ser ressuscitada de entre os mortos no dia do Juízo Final, objectivo para o qual dedicara todos os seus anos de menina, a sua mocidade, a sua virgindade, a sua irmandade, o seu corpo, e a sua implacável devoção de freira, tudo sacrificara para um dia morrer bem, de tal modo que, quando ela emitiu a custo a frase É chegada a minha hora, as netas que com ela estavam interpretaram aquilo como sendo finalmente a renúncia da vida e a aceitação da morte, e, na verdade, era o que ela queria dizer, embora seja de um paradoxo abissal o desapego à vida e o medo à morte, mas, para a glória da sua coragem, a velha acabara de pronunciar a frase, dita entre os dentes e o delírio, é verdade, mas com a última das coragens e, nesse momento, ali ante as suas netas, sentiu-se a ser elevada às alturas, que uma nuvem a recebia, ocultando-a, e ela então não se lembraria de mais nada, como é natural, entrara já no túnel da morte e qualquer lembrança nessa hora desencadeia um apego atroz à vida,
_Valha-nos Deus, chamem o médico, chamem o médico,

gritaram as netas agarradas à cadeira onde vinham passando o tempo, revezando-se havia três meses, pois a velha nunca quisera estar só e arranjou aquele assento de cabeceira que, na linguagem da morte, se chama cadeira de acompanhamento, coisas que ela aprendera no livro do padre ortodoxo Jean Yves Leloup, ao decidir que queria ter o mesmo trato que ela sempre dispensara aos moribundos que acompanhava em todas as suas fases, sete a saber, a Compaixão, a Invocação-Evocação, a Unção, a Escuta, a Bênção, a Comunhão Eucarística e a Contemplação,

_Não chamam nada, na minha morte mando eu,

Claro está que a velha não podia dizer «Na minha vida mando eu», porém, com aquele trocadilho, estava a fazer uma clara alusão à vida que ela não vivera e por que sempre tivera curiosidades, sempre desejara experimentar, mesmo escondida atrás das rezas e dos terços, porém tal reacção era uma amostragem de todo o seu descontentamento, uma provocação e uma cobrança do que ela tinha na alma e em mente e que a alma e a mente nunca buscaram consenso, tanto que, agora na hora do seu morrimento, e repara bem que eu não uso a palavra morte, e vais perceber o porquê no que eu vou contar e, talvez, tu escrevas morremento, ou morritura, morrência ou outro vocábulo compatível, mas que não a morte, porque o que na verdade aconteceu é uma passagem, que pode bem não ter passado, é uma lucidez mortal, uma espécie de derradeira vivacidade, uma amortagem própria da vida, direi uma mortigem, um passamento apaixonado, poderás mesmo criar uma figura que se chamará a/mor/te, porque é uma morte com uma paixão nunca vista, e, como te contava, a velha retorquiu,

_Não quero médico, chamem-me um fotógrafo,

E as netas, ainda confusas com aquele estado impenitente, exclamaram,

_Estás doida, Vó?,

E a avó retrucou na mesma moeda,

_Estou a morrer, não estou?, então, cumpra-se a minha vontade, quero um fotógrafo, pois o médico adia a morte e o fotógrafo perpetua a vida,

E as netas, olhando impávidas uma para a outra, não tiveram argumento, porquanto a grande e cruel verdade que tinham de enfrentar era que a velha, por causa da vida que levara, rejeitando toda a casta de idolatrias, nunca fora fotografada, não tinha nem uma carinha, nada que testemunhasse o seu nascimento, o cristão, o baptismo, a catequese, a primeira, segunda e terceira comunhões, o crisma, o vestido de alças na matança do galo, o verso no verso do retrato dedicado ao namorado, como todas as raparigas escreviam, Ao meu eterno do meu coração esta foto para que os olhos se lembrem quando o coração esquece, nada disso, não sabia nem o que era a fotografia, nem o que era um namorado, só conhecia a dedicação como dedicatória, mais nada, e os factos calaram as netas, que mea culpa fizeram em silêncio, e logo, julgando humilde e legítimo o narcisismo da avó moribunda, analisando bem a sua escolha de agonizante, acharam exemplar a atitude da avó, que, nem mesmo na hora da partida, deixara de ser austera, tendo em conta que, repara bem, de entre todas as câmaras de conservação que existem, a querida e beata avó optara pela mais barata, a câmara-escura, exactamente, assim era ela, até na hora da morte lá tinha os seus gostos e, se nunca permitiu que o gozo do corpo se sobrepusesse ao do espírito, nunca, não fora por não os ter sentido, mas porque os sacrificara por algo muito maior, pois, costumava dizer, no fundo, ela era uma senhora que sempre gostara dos prazeres da curta vida, do luxo, da moda, de coisas como o acordeão, o leque e os tamancos, de cidades como Paris e Veneza, de palavras difíceis como falqueta, albardadura, permanganato, gorgolhão, sevícia, cúspide, mas simplesmente não os proclamava, gostava só de sonhar, de se ver ao espelho, só de vez em quando ia até ao limite onde o gozo se confunde com o pecado, mas só na cabeça dela, porque na vida, essa que se diz real, ela só vivera para alcançar a purificação e conquistar a Glória e agora, na hora da morte, restava-lhe na memória apenas aquilo que fora e aquilo que nunca fora convertera-se, de súbito, em juízo de si mesma e nessas horas há sempre a tendência para tentarmos reescrever a vida, independentemente do que vier a ser escrito, que será sempre segundo o que os outros contaram ou contarem, e que, como todas as histórias, também essa será escrita da frente para trás, de tal forma que nada se saberá do que ela fez na escola com as outras crianças, a que se dedicou quando menina, porque as histórias assim escritas são feitas a partir de feitos e defeitos e, regra geral, o nascimento é recriado para santificar a morte e a morte é formatada para corresponder ao desenho do nascimento, diga-se em abono da verdade, de modo que, tecendo todas estas considerações, decidem as netas como satisfação de última vontade chamar um fotógrafo, ou, melhor dito, o fotógrafo, pois que na freguesia de Santo Amaro Abade só havia um, o Tito, o tal cujo casaco e gravata estava em todos os retratos das ilhas de Santiago e Maio, o Tito, que, infelizmente, se tornara célebre não pela fotografia mas porque ficara sem mãos e sem um olho para piscar desde que entrara com a mota pardieiro adentro num dos seus dias de folga e, por agora, a consequência mais grave da lesão era que tinha deixado centenas de candidatos
a retratos no interior da ilha, mas não faz mal, disseram as netas, é importante e as coisas importantes trazem contra as dificuldades as suas próprias soluções acopladas, e com esse ânimo as netas empreenderam a hercúlea tarefa de localizar um retratista, mesmo tosco que fosse, nas redondezas, dada a urgência que o caso requeria, e começaram a pedir auxílio e, como a morte conglomera esforços, de repente acudiram parentes, amigos, familiares e conhecidos de toda a parte e, discretamente, através de contactos daqui e recados de acolá, conseguiram descobrir que, por essa época do ano, costumava deambular pela ilha à cata de ruínas um fotógrafo italiano de nome Pia, o senhor Secondo Pia, era um homem modesto e prático, bem-humorado e afável e, por isso, não foi difícil abordá-lo, como não foi difícil convencê-lo, porque o facto de ele estar prestes a ser o primeiro ser humano a fotografar uma mulher que nunca fora fotografada e, ainda por cima, que essa mulher estivesse semimorta, tendo sido em vida a mais exemplar das criaturas, uma aspirante a um lugar à mesa de Jesus, deixou o italiano babado e, para acabar de matar, também muito impressionado com a beleza das duas netas da moribunda, o que exerceu um papel decisivo na persuasão, de tal forma que, num abrir e fechar de olhos, como se costuma dizer, Pia já tinha um olho fisgado nas pernas das meninas e o outro encostado à sua máquina a divisar o melhor enquadramento para fixar o que nunca fora fixado, o fotógrafo tinha a consciência da solenidade do acto, estava ali para satisfazer a última vontade de uma cristã, uma mulher especial numa hora especial, e foi então que Pia compreendeu que com um só clique duas pessoas à posteridade poderiam passar, que com uma fugaz obturação de luz uma lenda podia estar a nascer, isso sim, mas longe, muito longe, estava Pia de imaginar que tal ocorrência iria efectivamente mudar a história da Humanidade, aliás, em nenhum momento colocou essa hipótese, porque nada apontava nessa direcção, pois, na verdade, Pia só pensava em ser serviçal, queria apenas deixar para a posteridade uma lembrança, como quando fotografa ruínas, o prazer está apenas em sentir-se útil e, diga-se de passagem, satisfazer a última vontade a alguém é sempre uma magna obra humana, e foi com esse intuito que Pia começou a montar as suas parafernais, colocou os reflectores, porque a luz do quarto era baça, enjeitou o aparelho, porque não podia enjeitar nem mandar enjeitar a velha, mediu as distâncias, tapou a cabeça com um manto negro e, perante o olhar atento de todos, disse as últimas palavras de um fotógrafo,

_Atenção, sorri, olhó passarinho,

E agora prepara-te para ouvir a parte mais incrível, flash, ouviu-se e, nesse instante, provocado por um disparo de luz que incendeia a câmara como um relâmpago, encandeia-se e desaparece também como uma faísca o corpo da velha moribunda, assim como te estou a contar, a mulher esfuma-se sem mais nem menos, converte-se em luz em corpo e alma, e agora era apenas uma massa inerte, algo eterno como éter no éter, e Pia, o fotógrafo italiano, comprometido e assustado como um náufrago, ficou tanso a olhar para a câmara, sem querer acreditar no que estava a acontecer,

_A Vó está dentro da sua câmara,

gritaram as netas,

Nesses momentos ninguém diz coisa com coisa, mas, para a desgraça de todos, o que diziam as netas tinha uma enorme probabilidade de ser certo, independentemente da sua verosimilhança, afinal, da velha no mundo agora restava apenas uma solitária fotografia, pois a moribunda não tinha ninguém na vida, não se lhe conheciam pais ou parentes, não deixara filhos nem viúvo, irmãos e irmãs tampouco e especulava-se que até mesmo as netas lhe eram postiças, isto é, que as duas Marias vinham emprestadas de duas irmãs que morreram no parto,

_Pior seria que ela desaparecesse sem deixar qualquer marca de sua existência, rematou Secondo Pia,

Mas não era propriamente o que se esperava, consolo nenhum dava essa perspectiva do fotógrafo, todos sabiam que mais cedo ou mais tarde aquilo que jazera sobre a cama também desapareceria sob a terra para nunca mais, chegaria um momento em que para nada mais serviria, porque o morto nem para dizer adeus tem vocação, e ninguém se conformava com que o corpo se eclipsasse daquele jeito sem deixar traço, uma silhueta de vida no colchão sequer, coisa triste e insólita, não faltava mais nada, e agora só subsistia a verdade de que a velha podia estar dentro da câmara fotográfica de Secondo Pia, e só então, depois de descodificar bem as mensagens que escapavam dos choros, compreendeu Pia a sua afronta, a dimensão exacta da tragédia, a sua e a dos outros, e se a dele era compreensível porque se julgava o culpado da desgraça e já nem conseguia olhar para as pernas das raparigas que lhe suplicavam a devolução da avó, nem por isso estavam as netas desesperadas com o acontecimento, pelo contrário, aceitavam-no e, apesar da tristeza, mostravam-se maravilhadas com o sucedido, tentavam consolar o italiano pelo prodigioso serviço prestado à família da defunta, à sociedade e à memória, felizmente, nem tudo estava perdido, e agora um povo inteiro acredita que é possível recuperar a velha, restituir‑lhe ao menos a essência, e tudo isso estava a passar da fantasia à realidade com uma concretização vertiginosa, e a cada segundo Pia ficava mais desamparado, embora acreditassem as pessoas que a morta jazia retida na câmara, o fotógrafo não tinha razões para se deixar convencer disso e, para desviar as atenções, perguntou,

_Porque é que as meninas não chamaram o padre, ou o médico?, se é que desejavam guardar em vida a vossa avó?, pois eu sou um simples e ordinário fotógrafo,

E as netas responderam entre choro e afazeres,

_A Vó detestava os padres, temia os médicos,

E Pia replicou,

_E gostava de fotógrafos?!, porra, não sabia a vossa avó que foi um médico e não um fotógrafo quem inventou a fotografia?,

_Como assim?,

Perguntaram as netas e replicou o fotógrafo

_Sim, o médico inglês Richard Leach Maddox, o tal médico que, a partir de bromuro de prata, inventou as capas gelatinosas sensíveis à luz,

_,,, sob as quais deve estar a repousar agora a nossa avó,

concluíram as netas,

E dito isto, Secondo Pia levantou o saco em que arrumara as suas tralhas, lá dentro estava cuidadosamente guardada a sua câmara fotográfica, uma Voigtlander-Bergheil de 1905, que ele apresentava como a sua companheira mais estimada, pois tomavam banho juntos duas vezes por dia, dormiam a sesta, untavam-se com remédio contra a poeira, manuseavam-se sempre com luvas de látex e ele chamava-lhe a menina dos meus olhos, o que queria dizer tudo, sobretudo agora que essa menina também levava no seu ventre convexo o corpo e a alma de uma mulher que nunca na vida dera à luz,

_Que alívio!,

disseram as netas,

E o incógnito Pia, que todos os anos vinha às ilhas fotografar carcaças de barcos e passava pela vila do Lém na freguesia de Santo Amaro Abade para também fotografar paredes cobertas de teias de aranha, passou de incógnito a célebre num clique, e já da boca do povo se ouvia que Pia era filho de uma portuguesa chamada Berta e esta, por sua vez, tinha nascido de uma cenoura, como nascem da abóbora os meninos bastardos das ilhas, filho de pai desconhecido, Pia trocou cedo o leite da ama por sumo de cenoura, rejeitava tudo quanto não continha cenouras, sejam rebuçados, gelados, chupetas, xarope, ou creme solar, cresceu só a comer cenouras, raladas, fritas, doces, compotas e outras receitas caseiras, tem cólicas o nené, dá-se-lhe gotas de cenoura prensada, tem febre o menino?, usava-se pílulas e supositórios de cenoura, e assim cresceu Pia, e quando adulto providenciou e mudou o nome de baptismo da mãe para o de senhora Berta Caroteno, e hoje a língua do povo, que é a mais afiada de todas as armas e o mais atiçado de todos os fogos, propala que o próprio Pia era um senhor assim tão ruivo porque a dita sua mãe, a senhora Berta Caroteno, leite nas mamas não tinha, mas sim concentrado de cenouras muito doce e laranja da cor da urina nas tetas, e a novidade correu que nem um furacão, junta com a notícia da morte, e agora toda a gente já sabia, uns mais do que os outros, mas todos segundo a mesma versão mais ou menos corrigida e aumentada que o fotógrafo Secondo Pia tinha metido uma velha devota da freguesia dentro de uma câmara de fotografia, e até houve uma corrente mais filosófica que defendia que sim que não, que não, que a velha fora fotografada ainda antes de se finar e que, portanto, vivia lá dentro, ou seja, estava lá à espera da Revelação para vir outra vez ao mundo, é verdade e é verdade porque todo o mundo já sabe, e assim souberam as pessoas de coisas que sempre souberam e que nunca souberam que sabiam, só agora davam conta de que a velha não tinha deixado descendentes directos, tampouco autobiografia, que vivera uma vida de asceta, morrera virgem, era crente fervorosa, leitora incansável, tinha riquezas e relíquias acumuladas, se considerava em vida uma réplica de Jesus na terra, e isto e aquilo, de tal género que em pouco tempo já era preciso reconstruir uma nova vida à coitada da senhora para atender às demandas de informação e suprir a tamanha escassez de dados e branco total que era a desinteressante vida da velhota, é, é, paciência, mas assim acontece com quem se torna célebre depois de morto, e o ambiente era propício, a causa justa, e só precisava de adeptos, ora, o povo não espera por mais e então à rua começaram a sair curiosos e interessados de toda a parte, moradores, vizinhos, forasteiros, gente e cada vez mais gente, de tal modo que nos dias seguintes em casa só ficaria a memória da defunta abandonada, púdica e circunspecta como sempre fora, e na rua toda a gente, mas literalmente toda, desde os longínquos familiares às beatas companheiras da velhice, às autoridades insulares, às crianças, aos sindicatos dos reformados, aos comerciantes da loja maçónica, aos carpinteiros fabricantes de caixão, aos viúvos, todos os dezanove mil pensionistas do Arquipélago, aos leprosos do Fogo, aos queimados pela saga arrasadora dos fogões Hipólito, autênticas bombas a petróleo conhedidas na ilha por fogão-prima, às senhoras da idade das rugas, às netas de todas as defuntas, mulheres com elefantíase que tinham severas experiências da morte, companheiras e concubinas de náufragos, mulheres de desaparecidos, grávidas que nunca chegaram a dar à luz, a personagens discretos como José Cardoso, mais conhecido por José Cavalo, cantador de ladainhas, Oldegário Leão, catequista e produtor de grogue, Belmiro da Costa, zelador municipal, Papito, funileiro da ilha de São Nicolau, a primeira pessoa a associar a música aos funerais, tocava sozinho e em simultâneo tuba, clarinete, bombo, pratilhos e banjo, todos montados num engenho meio mochila, meio bicicleta, que ele próprio tinha fabricado, às irmãs de caridade, aos anormais babosos que abundavam na vila e que desfilavam para tudo e qualquer coisa, Cacá, o emigrante francês, Jerónimo Militão, Gregório, o das hérnias no toutiço, aos bêbados dos bares recentes e os dos mais antigos, e aos matadores municipais de cães, aos quais se vão juntar os três coveiros da ilha, os camionistas habituais dos cortejos, os marujos portugueses, os aposentados americanos, a legião dos reumáticos, e não te apoquentes com a longa descrição porque há cada vez mais gente, também se associaram pessoas que nada tinham ouvido, para todos juntos fazerem um mar de gente, um povaréu colorido e festivo que contrastava com o sombrio dos funerais, e na coda do tumulto, os mancos, até os mancos, que eram uma coisa rara neste mundo, pois, sabes que na minha ilha os mancos eram-no todos da perna esquerda, tanto que os parcos da perna direita não saíam à rua com medo de serem chacoteados, mas até eles vieram, vieram desmarcando os passos sobre a calçada como quem dança um carimbó, e saíram também mulheres semivestidas apanhadas pela pressa, trajadas como figuras de Carnaval, com os rolos encaracolados na cabeça e ainda meio em casa meio na rua, e falando de rua, já não cabem mais criaturas, e então, alguns não vão poder descer, e ficarão como velhotas à janela, os putos sobem aos telhados, enfim, como puderem, mas ninguém escapará ao arrasar contagiante da novidade, profusão inesperada e nunca vista em toda a história das ilhas, gente, gente, chusma, multidão, plebe, povo, grita, todos movidos por uma mesma curiosidade tantas vezes dita e redita e, como se sabe, nessas efervescências não mais do que uma voz é precisa para que logo o coral se arme e dê nascimento ao que todos anseiam, e foi assim que tudo começou,

 

Novíssimo Testamento de Mário Lúcio Sousa (D.Quixote - colecção literatura lusófona e futuramente na Língua Geral, Brasil)

por Mário Lúcio Sousa
Mukanda | 17 Setembro 2010 | literatura caboverdiana, Novo Testamento