Fomos Enganados

Na nossa passagem de menino a adolescente, ouvíamos falar da ONU, de Albert Bernard Bongó, de Mario Nguabi, a quem cantavam numa canção grande, como todas as daquele tempo. Crescemos um pouco mais e, ainda sem nenhuma informação do que as coisas eram, continuávamos a ouvir falar de Eduardo dos Santos e, mais tarde, de Macías, mas para ninguém falasse.

Na casa em que cresci não falavam de Macías em voz alta e nunca me disseram porquê. Falavam dele como se fosse uma pessoa que estivesse sentada nos bancos de fora e a quem não gostaria que falassem dela, que ficaria aborrecida. Eu não tinha idade para perguntar quem era aquela pessoa e se tivesse sido um menino atrevido e o tivesse feito, ter-me-iam repreendido, quem sabe, com um carolo. Agora, com mais anos nas costas do que os que me viram crescer, sei tudo, um pouco mais sobre aquele falar baixo quando o faziam sobre o primeiro presidente da Guiné Equatorial. Falavam em voz tão baixa porque não havia em toda a Guiné ninguém que tivesse podido falar bem dele. Então, a minha mãe e as suas amigas, que em público o aplaudiam, contavam coisas muito graves daquele presidente e baixavam a voz porque alguém as podia escutar e as denunciava às autoridades.

Isto acontecia em Ano Bom, um lugar em que não havia absolutamente nada, onde ninguém tinha com que alumiar-se e onde quem tivesse um aparelho de rádio, que funcionava com pilhas de vários meses que diariamente aqueciam ao sol, o ouvia na solidão da sua casa porque não queria correr o risco de chegar, por aquela rádio sacudida por ventos burlescos, a notícia de que alguém tinha falado mal de Macías e lhe atirassem com a culpa.

Não havia nada em Ano Bom e a reiteração desse dado nunca daria a medida exacta da escassez em que viviam os naturais daquela ilha. Já adulto, um pouco mais velho para deixar de receber os carolos, soube que não havia nada em Ano Bom porque mesmo na capital da Guiné Equatorial não havia nada, salvo as latas que traziam os chineses. E era tão pouco, que ademais, os que o administravam não reservavam nada aos naturais de Ano Bom porque eles, instruídos por estrangeiros e fazendo-se corajosos, não votaram em Macías e ninguém soube como ele o descobriu. Então, Macías deixou-os abandonados à sua sorte, pois já era um “presidente vitalício e o único milagre da Guiné Equatorial” a ver quem o contradizia no seu caminho de maldades.

Os naturais de Ano Bom passaram, como Caim, uma história que não caberia num livro de cem páginas, mas continuámos a cantar e a erguer o punho para dizer que Macías era “um honorável e grande camarada, general de aço, grande mestre em arte e cultura tradicional, trabalhador infatigável”. Isto em público. Em privado, na obscuridade, ouvíamos como as nossas mães falavam de Macías como se fosse um homem poderosíssimo que podia ouvi-las falar desde o sítio onde estava.

Não sucumbimos àquela miséria material e moral e crescemos o suficiente para continuar a ouvir falar de Albert Bernard Bongó, de Eduardo dos Santos, de Desiré Mobutu e destas personagens cujos nomes ressoavam nas rádios de então. Continuámos a ouvir falar da ONU e dos Estados Unidos. Muito rapidamente, soubemos que a ONU existia, mas que Espanha era uma coisa distinta, era um país onde estavam os que queriam o bem.

Fizemo-nos mais crescidos para ler sem ajuda e continuámos a ouvir da ONU, dos Estados Unidos, de Espanha, inclusivamente do Chile, que tinha sofrido uma ditadura que lançava os homens ao mar. Mas não sabíamos isso quando, durante aquela época obscura de Ano Bom, um avião sobrevoou a ilha e lançou uma mensagem numa garrafa. Não dizia nada, ou o que dizia era uma mensagem de esperança, não se podia contar, pois Macías tinha os seus ouvidos em todos os cantos daquela terra abandonada pela sua cobardia e qualquer um que soubesse o que havia na garrafa podia acabar no cárcere por alta, baixa ou média traição. Eu não tinha idade para conhecer o conteúdo da mensagem.

Aferrávamo-nos na leitura e continuámos a ouvir falar da ONU, da União Africana e acreditávamos que um governo era uma coisa boa, acreditávamos que a ONU podia ajudar aos países que gemiam debaixo de regimes que traziam dor e pensávamos que os militares dos países dos brancos podiam salvar-nos das pancadas que nos infligiam os soldados de Macías, que actuavam como se fossem mercenários e que tinham sido chamados para humilhar os equatoguineenses.

Naquele tempo, acreditávamos que se chegássemos à ONU com as cicatrizes das nossas feridas e com os hematomas das pancadas recebidas, a ONU se compadeceria e nos acompanharia para castigar os que nos tinham debaixo de uma severa opressão. Acreditávamos que se dizíamos em Espanha que já não podíamos suportar aquela vida, viria a guarda civil para socorrer-nos. Nos tempos passados, as nossas mães falavam dos guardas-civis como se os tivessem conhecido e que eram militares de bom coração. Naqueles tempos de dor, acreditávamos que os africanos gostavam muito uns dos outros e que bastava que saíssemos da Guiné Equatorial para que encontrássemos alguém que nos ajudasse a esquecer as dores do nosso país.

Mas enganaram-nos. Fomos enganados. Nunca teríamos pensado que um governo é uma pandilha de homens que defendem os seus interesses. Nunca teríamos pensado que a ONU é um sítio onde os mais fortes se unem para evitar que outros sejam como eles. Nunca teríamos pensado que de Espanha podia sair um único fuzil que ajudasse a causar alguma desgraça em algum país africano. Não pensávamos que Macías podia ter estado a rir-se com algum espanhol sobre a vida que levávamos. Acreditávamos que na Europa as pessoas se aborreciam quando não havia justiça, e acreditávamos, desde que aprendemos com a escravidão, que os Estados Unidos nunca mais subscreveriam que uns negros submetam a outros negros. Não teríamos pensado que um país tão poderoso como os Estados Unidos podia colocar-se de joelhos perante um chefe da Guiné Equatorial por qualquer motivo. Acreditávamos que podia colher qualquer coisa pela força, mas ninguém pensava que seria a troca de fazer-lhe algum favor que logo nos doeria.

Pelo que víamos, não acreditávamos que nenhum chefe dos que conhecemos na Guiné Equatorial podia entrar em alguma casa de algum país europeu ou que podiam comer com ele os presidentes de outros países. Acreditávamos que se incomodavam com a sua conduta e ainda que oferecesse o seu dinheiro, não o aceitariam. Jamais teria passado pela nossa cabeça a ideia que há um país não africano que lhe podia vender armas. Teríamos jurado pela nossa vida se alguém nos tivesse dito que a denúncia das violações dos direitos humanos seria tomada como uma piada grosseira.

Se alguém nos tivesse dito que, desde há 20 anos, todos os governos do mundo são formados por um grupo de poderosos que defendem os seus interesses e os dos que os apoiaram para alcançar o poder, teríamos dito que era uma calúnia. Inclusivamente em tempos recentes, acreditávamos que os governos da Europa eram tão transparentes que se surpreendessem um político numa mentira ou num roubo o despediam de maneira fulminante e este pediria perdão com a esperança de que deixassem de vê-lo com maus olhos quando voltasse à vida civil. Desde a nossa África, ninguém da nossa geração poderia pensar que os jornalistas eram agentes pagos pelos governos para defender os interesses dos ricos que são os que têm dinheiro para alcançar o poder. Acreditávamos que os jornalistas eram os únicos a quem podíamos confiar os nossos segredos sociais.

Não acreditávamos, ademais, que as cidades europeias não eram mais que lugares inóspitos, onde todos se vêem obrigados a consumir o que produzem os ricos, que são os mesmos do poder, onde outros trabalham para que o resto dos cidadãos acreditem que viver fora das cidades e não consumir é a pior condenação que poderia cair sobre eles. Nenhum de nós teria pensado que viver numa grande cidade hoje, é estar submetido moral e psicologicamente aos desejos dos que decidem todos os assuntos, alterando a realidade social, económica e humana para fazer crer aos demais que ninguém pode viver sem estes, que qualquer intenção é a irremissível perdição.

Enganaram-nos, fomos enganados. Mas se fosse só isso, se pudéssemos escapar da sua rede maliciosa e viver arredados do seu jugo, olharíamos de longe para ver se tudo o que descobrimos continua a ser um engano ou se vemos tudo torcido pela nossa própria incapacidade. Mas não podemos. A rede dos poderosos, tecida com os tentáculos da mesma ONU, que antes acreditávamos ser a nossa salvação, impediu que em 40 anos pudéssemos acreditar que, todavia, haveria alguém que se salvaria da acusação de ter tomado parte na maldade constante de que temos sido testemunho. Enganaram-nos todos.

 

Barcelona, 25 de Fevereiro de 2011.

Translation:  Cátia Miriam Costa

por Juan Tomás Ávila Laurel
Mukanda | 22 Março 2011 | Ano Bom, greve de fome, Guiné Equatorial, mentira, pobreza