Ainda estamos aqui, com a nossa metodologinga

O cursor na tela branca pisca, impaciente. Minhas pernas ansiosas balançam num ritmo ainda criminalizado: o 150 BPM. Eu também me reprimo: ultimamente, sou uma autora que não se autoriza a escrever. O meu lugar de fala tem que transcrito o tempo todo, o que é irritante. Há uma ironia cruel nisso, nessa necessidade branca de registrar tudo, de fixar no papel (ou na tela) o que, historicamente, em tantas tradições negras e indígenas, vive no som, na palavra dita, no corpo e na performance. Nêgo Bispo ironiza esse vício ocidental: “Eu tenho participado de muitas mesas de diálogo, com muitas pessoas da Academia, e eles sempre levam escrito o que querem dizer, levam datashow e reproduzem para o pessoal. E nós, não: nós levamos tudo de memória. Isso significa que eles sabem ler, e ler bem. E a gente sabe falar, e falar bem”. E ele tem razão. Ainda assim, aprendemos a ler, e aqui estamos: escrevivendo. Sem abrir mão da não linearidade, que Leda Maria Martins chama de “oralitura”, essa escrita que dança com a fala, com a musicalidade, com os traços de uma ancestralidade que nos habita e nunca vai embora. E já que estamos na crista espiral de Professora Leda, esse texto também o é: vai girando entre cultura, memória, identidade e palavras que dançam e recusam um só tema, um só núcleo, um só dono. 

Ultimamente, tenho falado muito. Sozinha dentro de casa, com o gravador, em áudios infinitos de WhatsApp para amigues, em vídeos que provavelmente só serão vistos por mim, em sonhos com peixes coloridos que voam sobre o telhado de um hotel de luxo. Quando a escrita acadêmica insiste em me agarrar com sua lógica produtivista, me domar com sua colonialidade linguística, me usar com seu caráter neoliberal para produção de artigos que muitos dos meus nunca irão ler, eu apenas falo. E quando falo, relembro. Relembro as tardes infinitas no quintal das minhas tias maternas, cujas histórias de vida tive o prazer de registrar parcialmente na minha tese de mestrado. O papo começava com a vida do povo da roça no interior da Bahia, passava por histórias de lobisomens, mulas-sem-cabeça e, de repente, estávamos falando do meu avô, que supostamente fez um pacto usando o Livro de São Cipriano e, por isso, sobreviveu a sete facadas no bucho — mas, vejam só, perdeu tudo “por causa mulher”. Essas conversas nunca tinham início ou fim — elas eram espirais, encantamentos, tal como nós.

Mas aqui onde me encontro sou diariamente desautorizada à bagunça, à desordem e, em última instância, à anarquia. Pois é preciso ter coesão e coerência. Referenciar os cânones. Conhecer os que são muito importantes, mas pouco necessários. Seguir a APAtia. É preciso organizar, de forma “cientificamente justificável e pertinente” entre 6000 e 8000 palavras, escrever e publicar numa língua anglo-saxônica que nunca me foi propriamente ensinada, e com a qual a minha alma não sabe dançar. É preciso revisar, editar, escrever, escrever, e depois cortar, cortar, cortar. Encontrar o tom da escrita científica, e estar atenta aos trendy topics das ciências sociais. Ainda que, entre os domínios científicos, ela seja a prima pobre para quem as políticas de estímulo científico mais torcem o nariz. Audre Lorde me lembra que a sobrevivência não é uma acadêmica, mas quando as suas necessidades materiais básicas estão atreladas às competições do capitalismo acadêmico, tudo parece um cenário de Jogos Vorazes: I volunteer as tribute!. 

 

Com quantas palavras se compra a representatividade étnico-racial na produção de conhecimento, de arte, e de cultura? Quantas são necessárias para barrar o tokenismo e o epistemicídio em curso? Para quando uma justiça distributiva onde o financiamento científico e de formação avançada beneficiem realmente aquelas pessoas, grupos e culturas historicamente escamoteados? 

 

No Brasil dos anos 1940, o Teatro Experimental do Negro criou um novo horizonte estético e ético ao inscrever corpos negros na história teatral e inspirar a retomada dos movimentos negros brasileiros, e assim, a própria democracia. Se não fosse tão refém de seu próprio daltonismo racial, Portugal poderia viver um momento semelhante, fertilizando o futuro com outras narrativas e passados. “O que acontece com a arte quando ela constrói a história e não o contrário?”, perguntou uma vez Leda Maria Martins numa palestra. Acho que talvez, por aqui, a resposta está cada vez mais distante. 

 

Isso tudo me lembra a importância de voltar. Olho para o meu corpo, feito de terra, suor e cicatriz. A minha tatuagem de Sankofa me lembra que o pulso firme herdado de mamãe tem base na resiliência, sim, mas também na doçura. “Rapadura é doce, mas não é mole, não!”, ouço internamente. Respiro, agradeço: valeu, mãe.

Tatuagem SankofaTatuagem Sankofa

Sei que tem algo aqui que precisa ser reparado, talvez a restituição da nossa interioridade e imaginário negros de que nos fala Djaimilia Pereira de Almeida. Talvez a reparação da língua ferozmente proposta por Apolo de Carvalho, talvez as reparações da Declaração do Porto, tão certeiramente costuradas pelas mentes, mãos e corações presentes na Oficina de Reparações. Provavelmente uma junção de tudo. Uma destrui/repa-ação integral que nos permita mais ser do que estar, mais viver do que sobreviver, mais falar do que escrever? Talvez uma reparação que nos permita menos

 

Talvez, o que precisamos, mesmo, mesmo, são os nossos espaços autônomos de criação e resistência, para além dos limites hegemônicos das instituições, das políticas, das Torres de Marfim. Se isso é possível para corpos migrantes e dissidentes, é um debate um pouco mais complexo — e me faltam as palavras escritas para isso agora — mas quero acreditar que parte da pedagogia da transgressão passa por reivindicar a nossa complexidade e a nossa autonomia de não ser incluídos, mas sim libertos

 

“Pois as ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre. Elas podem nos permitir temporariamente a ganhar dele em seu jogo, mas elas nunca vão nos possibilitar a causar mudança genuína. E este fato é somente ameaçador àquelas mulheres que ainda definem a casa do mestre como a única fonte de apoio delas.” - Audre Lorde (1979). 

 

Sem território (porque estamos constantemente sendo taxados como “outros”), e sem a possibilidade de sonhar (porque o abismo sistêmico provocado pelo capital nos consome), cada dia fica mais difícil “esperançar”. Mas é justamente porque a esperança é uma necessidade ontológica que precisa da prática para tornar-se concretude histórica que ainda estamos aqui. Alertas, e com as nossas metodologingas. Capazes de criar um TERREIRO no meio de Lisboa, com quase nenhum recurso financeiro e muita magia. Capaz de fundir (e exigir) novas dimensões possíveis para as muitas reparações urgentes. Ainda que Portugal — nem a Academia — não nos caiba, a nossa ginga, o nosso carnaval. 

Terreiro da UNA, setembro 2023Terreiro da UNA, setembro 2023

Estamos numa encruzilhada histórico-diaspórica. Quebrar o pacto narcísico da branquitude de que nos fala Cida Bento é um dos caminhos possíveis para potencializar em vez de reprimir, mas isso exige coragem. Coragem para fazer a coisa certa. Para ir além das palavras - faladas e escritas. Para abrir portas, mas também quebrar janelas. Retirar do mapa as fronteiras. Trazer outros nomes, cores e culturas à roda, e abdicar do palco. Coragem, do latim “agir do coração”. Não o coração de Dom Pedro, recebido por fascistas brasileiros com condecorações bregas. Mas a coragem que faz uma Escola de Samba cortar a cabeça do mesmo Dom Pedro e colocar nas mãos de um pagé, dizendo ao mundo todo através da cultura e da arte: aqui, é cocar antes de coroa. 

Carro alegórico da escola Acadêmicos do Tucuruvi, no desfile das Escolas de Samba de São Paulo. Em 2025, a escola contou a história do manto tupinambá. No carro “O Ritual Ibirapema”, o destaque era a imagem de um pagé segurando a cabeça decapitada de Dom Pedro I.  Imagem: Reprodução Globoplay 

 

Com a confluência de: 

Acadêmicos do Tucuruvi. “Assojaba – A busca pelo manto” - Desfile das Escolas de Samba de São Paulo 2025. 

Bento, Cida. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das Letras.

Brunner, José Joaquim; Labraña Vargas, Julio Roberto; Ganga, Francisco & Rodríguez-Ponce, Emilio. (2019). Idea moderna de universidad: De la torre de marfil al capitalismo académico. Educación XX1, 22(2), 119-140. https://doi.org/10.5944/educXX1.22480

De Almeida, Djaimilia Pereira. (2023). O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo. Companhia das Letras.

Folha de S. Paulo. (2024, Abril 13). Antônio Bispo: Estado e partidos são colonialistas . YouTube. https://youtu.be/a_FJIaINm0Y?si=Kjat2n9KINEo0oxf  

Lorde, Audre. (1979). Discurso no painel “O Pessoal e o Político”, Conferência do Segundo Sexo, Nova Iorque. 

Roldão, Cristina. (2022, março 31). Torre de marfim. Público. https://www.publico.pt/2022/03/31/opiniao/opiniao/torre-marfim-2000784 

por Gessica Correia Borges
Mukanda | 4 Março 2025 | audre lorde, Cida Bento, Lela Leda Martins, Teatro Experimental do Negro, tokenismo