A meditação do cadáver - pré-publicação Miguel Gullander

Imagens de Jordi Burch

O pirata do norte. 

 A cabeça espreita, pelos buracos do saco de plástico pendurado, num prego.

Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece…

 O clamor do ruído não cessa a bordo.

Gemidos e gritos, o sangue que escorre, borbulha e espirra. Lâminas rombas, cordas esticadas, decepam membros e garroteiam gargantas. A caravela, enorme, inclina-se vertiginosamente e com ela todos os seus crimes no convés oscilam na dança, passando de um pé para outro. Balançando, oscilando, a roda da fortuna troca as sortes na dança. De um pé para o outro.

Um oficial português ainda olha para cima, para os causadores da carnificina. O navio pirata, Ozymandias, com uma orgulhosa cabeça de dragão, horas antes abalroara a sua caravela, e todos os piratas concretizaram a abordagem contra os seus homens.

A peruca é-lhe arrancada, para que a mão chegue ao cabelo verdadeiro. O cabelo arrepanhado é puxado para trás para expor, ao sol escaldante dos trópicos, o rosto. O rosto é belo, jovem, sem barba. Ao redor dos olhos rugas precoces comprovam a dureza da vida do mar, do sal, da falta de vitaminas. O cabelo arrepanhado é acompanhado por um gemido, enquanto a cabeça é puxada para trás com a violência duma mão nórdica, inimiga de latinos, inimiga de todos os homens neste barco. Inimiga de todos os homens.

Uma mão humana é sempre uma mão inimiga de todos os homens.

É-lhe, então, arrancado o olho com uma ponta de faca, cujo o cabo é feito de osso de rena. O animal que o pirata pastoreava nas vastas tundras sob o sol da meia-noite, entre tempestades de auroras boreais – tempestades do próprio sol da meia-noite. O pastor, feito agora pirata, cospe na cara do homem assim maltratado e atira-lhe o rosto contra as tábuas que pisa, onde este português deverá chorar a sua última súplica de perdão. Por um olho só. Um só olho, que espreita por entre as tábuas aqueles a quem deve dirigir as lágrimas da sua última súplica de perdão:

Ali, nas sombras do porão, movendo-se como sombras, pessoas tornadas sombras, sombras que deste seu negócio de tráfego humano, o acompanharão na morte precoce – uma culpa sem fim que ele espreita por um olho, entre as tábuas.

Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece…

 Entre as tábuas o rapaz português vê a menina, uma sombra de terror, a ser arrastada pelo pirata que agora entrou no porão, mesmo debaixo de si. Talvez lhe chore em cima uma lágrima, ténue chuva para apaziguar o fogo do nórdico enraivecido pelo álcool, sangue – e o veneno do cogumelo amanita muscaria com que se intoxicou antes de iniciarem o ataque a esta caravela de esclavagistas portugueses.

O gigante ruivo brande a espada, e arrasta pelo braço uma menina aterrorizada. Todas as sombras gritam de horror, de saudade dilacerada pelos amigos que não as podem ver nem proteger nem acudir.

Todas as sombras gritam por Kalunga – oh Deus, oh Deus, que este bárbaro da cor de um espectro da morte está a arrastar-nos pelos braços, está a brandir uma catana afiada, está a apavorar-nos com os seus olhos transparentes!

O pirata do norte é o famigerado Homem-dos-Mil-Olhos. Desde que começou em raids no mar nunca mais viu a sua mulher de tranças, nem os sardentos filhos. Nunca mais percorreu, com uma estranha paz, as longas estepes pontilhadas de dóceis animais e neve. Nunca mais viu o sol da meia-noite. Na verdade, deixou mesmo de ver o sol, de todo. Até de dia o astro tornou-se apenas num olho raiado de finas veias de raiva, como os seus próprios olhos injectados, após beber do cogumelo da invencibilidade.

Deixou de ver o sol, por isso precisa de novos olhos, pois os seus não lhe servem.

O sol é apenas uma acusadora testemunha de Odin, neste combate sem fim da vida humana. Tudo por um banquete de guerra no fim. O Valhalla é carne de porco e álcool puro. Esta roda da Fortuna, que na sua dança, logo de um pé passa para o outro. O sangue escorre, borbulha e espirra. Trespassado e pendurado num colar de olhos, onde o bárbaro planeia colocar mil globos, o olho do jovem português testemunha o trocar de passos da dança da Fortuna.

De volta ao convés, esmagando a menina pelo braço, os corpos mutilados de todos os portugueses mortos misturam-se com os de muitos nórdicos mortos e outros feridos. Os oficiais inimigos são melhor tratados: cortam-lhes o nariz com tenazes em brasa; chicoteiam-nos para depois lhe lavarem as costas com baldes de água do mar; garroteiam-no enquanto lhes cauterizam os cotos das mãos com pez fervente.

Com uivos de dor todos os sobreviventes são degolados pelo Homem-dos-Mil-Olhos, enquanto pela outra mão arrasta a menina em transe de horror com tudo o que presencia.

“Digo-te…” pensa o nórdico fazendo uma promessa absurda a alguém que já não conhece, pois aqueles que outrora conheceu foi por amor. E disso ele já não sabe nada, portanto já não conhece ninguém. “Quando tiver mil olhos, verei o sol.”

O sangue escorre, borbulha e espirra, correndo como pequenos efémeros regatos, de volta ao caudal de fúria e raiva, que subjaz a toda esta vida. As botas empapadas correm sobre um convés de matadouro. O caudal que se escoa para o mar, tingindo as bordas da caravela em tons rubros, tomará novas formas, novas modalidades de ser, que incessantemente voltarão a dar corpo a tudo o que neste momento se quer esquecer. Todos os fluidos dos corpos mutilados escorrem suaves para a sua própria foz, engrossando o gigantesco corpo de fúria e raiva do caudal da existência – que escorre, borbulha e espirra – e nunca esquece.

Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece…

 “Observa” diz o homem branco numa língua selvagem, mas que a menina negra compreende pelo medo. Ele aponta-lhe um corpo de um menino português que, ninguém sabe, mas também foi um pastor antes de o terem embarcado à força. O menino está muito maltratado. O pirata ri uma gargalhada por conseguir assustar uma menina.

“Observa” chama o corpo morto do pastorinho. O corpo morto que murmura: “Tal como um sábio vendo um corpo morto, dividido em partes, desmembrado, inchando de hemorragias, azulado de sangue pisado, assim eu quero que apliques esta percepção ao teu próprio corpo e penses – verdadeiramente o meu corpo, também, é da mesma natureza; nisto se tornará e a isto não escapará.”

A menina estrangula um soluço, pois sabe que vai sofrer – mas, também, acabou de descobrir que é mais do que o seu próprio corpo. Está prestes a deixar de ser escrava. Pois, apesar dos corpos destruídos e dos sopros perdidos –

Sempre resta uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece…

O pirata ri uma gargalhada por conseguir assustar uma menina. O homem do rosário, com contas de mil olhos mutilados, atira a menina pela amurada fora após tê-la estuprado.

“Restituo-te, assim, a tua dignidade, escrava” murmura enquanto as ondas gigantes a levam como um pouco de frágil espuma.

O navio com cabeça de dragão.

 Quando o Ozymandias se saciou de milhares de guerras, tendo bebido milhões de litros de sangue, entrou como uma baleia suicida deserto adentro. Aí vomitou prolongadamente algum do sangue que o ressacava. Como um velho bêbado, intoxicara-se até ao fel do cálice.

“Um coração humano bombeia 343 litros de sangue por hora, 8000 litros por dia, e três milhões de litros de sangue por ano” pensou para si mesmo o velho navio, com uma profunda repulsa. “Três milhões de litros por ano, por cada homem…”

O sangue escorre, borbulha e espirra.

A este barco, vários milhares de homens dedicaram toda a sua vida, do primeiro ao último bater cardíaco. A muitos outros, homens e mulheres, o navio reclamou, duma só vez, todos pulsares a que os seus corações ainda tinham direito: roubou-lhes o pulsar de paixão pelo amor saudoso, esmigalhou o pulsar da despedida forçada e nunca redimida, cortou irreversivelmente o pulsar de um reencontro agora interrompido…

Todo esse seu sangue pertencia às suas tripas de aço e madeira. Até que o sangue lhe enjoou de morte. Em todo o seu redor, esses milhares de homens e os seus milhões de litros de sangue, tornaram o mar insuportável, inabitável, uma agonia intragável – e o navio Ozymandias como uma fera, cego de fúria e intoxicado de morte, arremeteu em fuga – uma besta perseguida pelo fogo.

O mar queimava o Ozymandias, e milhões de vozes, de uivos, de mãos, arranhavam-lhe o casco, fazendo de cada onda, de cada brisa uma perversa carícia de napalm – como o toque de um cruel amigo que insiste em que bebamos, e nos aproxima o veneno da boca, quando já quase não conseguimos reagir. O corpo entorpecido, lânguido de nojo tenta não fazer nada, pois mal consegue gemer. Mas logo a insistência do toque do copo nos nossos lábios, os risinhos dos amigos que nos tentam forçar a beber – logo, o sabor do aquavitt nos lábios se torna um tormento – e num último impulso arremetemos sala fora, com um urro, cegos de fúria e raiva, atirando-nos para a frente, como os heróis fazem, cobardes que fogem para a frente e –

E o Ozymandias metera-se pela terra adentro, uma visão aterradora para quem assistiu: ver um enorme navio, altiva cabeça de dragão, arrastar-se pelo deserto da costa namibiana adentro, a sul dos portos de escravos dos portugueses e holandeses, onde criminosos compram pessoas a Sobas irresponsáveis e mais outros líderes corruptos.

O Ozymandias avançou até onde pode, arrastando a carcaça suicida pela areia e parou junto das dunas, já bem longe do mar. E vomitou.

O mastro ergue-se imponente no meio das areias. A cabeça gigantesca do dragão, enterrada até ao queixo, está rachada pelo meio das ferozes sobrancelhas, cortando em dois os lábios de cruel autoritarismo e comando. 

O sangue escorre, borbulha e espirra. O navio pirata trabalhara arduamente na expansão de um império de terror – e contribuíra numa longa lista de conquistas humanas que em tudo orgulham a nossa raça assassina. Onde quer que passasse o Ozymandias era frequentemente a maior fera no território, exceptuando casos como quando se cruzava com caravelas e outros monstros ainda maior envergadura, que o excitavam para o combate.

Percorrera, glorioso, o norte e sul das Américas, onde já foram extintos três quartos dos mamíferos de grande porte sob a mão humana. Percorrera a Europa e a Ásia onde já metade de todas as espécies de grande porte também desapareceram. Ozymandias sentia-se verdadeiramente grande, e tinha razão para o seu orgulho! Na sua viagem à Austrália descobriu que noventa e cinco por cento de todos os grandes animais já não mais eram. Então decidiu ir para África e começar a predar entre as gentes e a caçar humanos também.

Mas agora um delirium tremens, uma intoxicação excessiva fazia o velho e orgulhoso navio abanar, chocalhar, tremer. As tábuas cediam, as velas enrugadas rasgavam-se, o mastro pendia perigosamente para um lado ou outro, ameaçando quebrar-se sobre o resto do corpo. As gaivotas e albatrozes rodeavam-no. Na costa do Senegal e de Bombaim também os abutres o seguiram durante horas. Gemendo ao vento, uivando sob as ondas ardentes, o Homem-dos-Mil-Olhos ouvia o monstro marinho agonizar enquanto procurava para onde fugir, ferido de morte, enjoado até às fezes pelo oceano de sangue – onde, a custo, cortava ondas vermelhas, de encontro a pores-do-sol, também eles, vermelhos, junto às costas desérticas do Kalahari. E o Ozymandias, terror dos mares, pesadelo de homens e mulheres, destemido orgulho da marinha predadora afundava-se enquanto os tubarões lhe chicoteavam o leme:

“Observem, loucos! Tal como um sábio vendo um corpo a ser atirado para um cemitério, a ser comido pelos corvos, falcões, abutres, cães, chacais ou outros tipos de larvas, assim apliquem esta percepção ao vosso próprio corpo e pensem – verdadeiramente o meu corpo, também, é da mesma natureza; nisto se tornará e a isto não escapará.”

E entrou areia adentro, dunas adentro, assinando com o corpo o fim do seu mapa. No casco arrebentado do navio, sob a ditatorial cabeça do dragão está uma placa escrita:

“O meu nome é Ozymandias, rei dos reis dos mares: olhai os meus feitos, ó Poderosos, e desesperai!”

E desenhando a sua vontade por meio de um rasto pela areia, ficou enterrado até ao pescoço diante de uma ruína de antigos colonizadores germânicos. Passadas horas, a areia estava de novo lisa pelo vento e a sua assinatura perdida – para sempre desaparecida, em toda a extensão ao redor daquele colossal náufrago.

O quarto mágico.  

 Quando o nórdico avistou o proprietário da ruína, sentiu o que os homens sentem quando se cruzam com outros homens.

Vontade de aniquilar.

 Ao longe o proprietário da ruína vira o navio rasgar as dunas e morrer sem som – apodrecendo rápido sob o sol, sal e areias do deserto. Estava sentado a contemplar o mar da janela da sua preciosa ruína colonial, ali no deserto namibiano. Depois calculou que a sua casa seria cobiçada, tal como já ele próprio a cobiçara antes.

Soube que aquele gigante ruivo, que caminhava na direcção da sua casa, quereria ficar com ela.

Era uma ruína muito muito grande, mas dois homens nunca dividem nada. Isso é histórico e vai contra o espírito humano. A questão não está propriamente no como ter algo, mas sim no como garantir que o outro não o tenha. Talvez seja esta a verdadeira política subjacente a toda a ciência económica: garantir que o outro não tenha, independentemente do quanto existe. Pois acaso o segundo tenha, o primeiro nunca descansa sempre supondo haver a possibilidade de que ele próprio, talvez, tenha menos. Logo, o melhor é o outro não ter nada: e assim a nossa própria posse, por mais mesquinha que seja, torna-se total em comparação ao zero alheio.

O mercenário do norte, com um rosário de olhos em torno do pescoço, diz-lhe:

“Precisava de matar mais dois homens para saciar a minha conta e terminar o meu rosário de dor” arqueja enquanto se aproxima.  “Mas como só existes tu, arrancar-te-ei um olho e depois esperarei por mais alguém.”

O proprietário da ruína refugia-se dentro de um Quarto Mágico que existe naquela casa, tal como existe um nas casas de toda a gente.

“Se me deixares ficar neste quarto, ficas com o resto da casa. Aqui vivo a paz” explica o homem.

“Que existe aqui que te faça renunciar a um bom combate?” pergunta espantado o pirata nórdico.

“Aqui neste quarto, de onde quer que me posicione, apenas vejo três paredes. Sou totalmente livre” explica o proprietário da ruína. “Posso mudar de posição, sentar-me, deitar-me – ir para ali, ou acolá – mas do meu ponto de vista nunca vejo a quarta parede. Atrás de mim tenho sempre um espaço infinito, e diante de mim gosto de colocar a vista do mar, agora manchada com o cadáver do teu barco. Mas também isso desaparecerá.”

O pirata inspecciona o quarto que nada tem de especial. Uma  varanda de um lado, uma porta do outro, com um saco de plástico furado, pendurado ao lado da entrada. O deserto pela frente é cortado pela linha fulgurante, em azul violento, do mar. O sol africano queima toda a paisagem com a sua presença e testemunha. O nórdico escrutina todo o seu redor.

De facto, para onde quer que olhe apenas vê três paredes! A quarta, a que está imediatamente atrás de si, é invisível, é sempre um espaço aberto, sem fim. Muda de posição, mas continua sem nunca conseguir ver a quarta parede. Este quarto é mesmo mágico, duma liberdade total! Ele poderia colocar uma cadeira, de modo a ficar com o mar diante de si – e a parede da porta, pela qual entrara, desapareceria, e ele ficaria, assim, como que numa cabine de convés, com todo o infinito para trás e todo o oceano pela frente.

Olha, junto à porta, o saco de plástico pendurado de um prego na parede.

“O que tem aí dentro?” pergunta.

“Uma herança, uma cabeça humana” responde o proprietário da ruína. “O anterior dono desta casa. A condição de proprietário implica sempre morte.”

O nórdico abre o saco e pega na cabeça. O riso dos dentes quebrados é como o bater das ondas no casco dum navio desamparado, e como o sopro desesperado dos escravos atirados borda fora, em alto mar.

A caveira sorridente sussurra:

“Observem, loucos! Tal como um sábio vendo um crânio, atirado para um saco, reduzido a ossos esbranquiçados, da cor de conchas polidas nas rochas da praia, assim apliquem esta percepção ao vosso próprio corpo e pensem – verdadeiramente o meu corpo, também, é da mesma natureza; nisto se tornará e a isto não escapará.”

“Se esta cabeça está aqui, é porque tu próprio não aceitaste a proposta que me fazes” conclui o nórdico atacando o outro homem até à morte.

Depois de se descartar do velho crânio, atirando-o ao mar, decepa a nova cabeça, arranca-lhe um olho que acrescenta ao seu rosário de globos irados. “Só me falta um e voltarei a ver o sol da meia-noite, mesmo daqui, do meu Quarto Mágico, das duas paredes e mar pela frente.”

E pendura o saco de plástico, com a sua herança de proprietário, atrás de si, no prego ao lado da porta.

O silêncio sob a pegada. 

 Os anos passam-se no Quarto Mágico até que o navio Ozymandias se torna um esqueleto sem carne, apenas tendões secos – e daí passa a ossadas desgarradas, uma mão solta aqui, uma canela porosa ali – até que vai quebrando-se sozinho, em estalidos secos, em poeira e areia. A partir de certa altura é apenas um desenho de esqueleto na areia. Uma impressão digital de cobra nas dunas. Uma pegada que se desvanece.

Sentado na sua cadeira o nórdico olha o mar e, para trás de si, aprecia o sabor do infinito espaço que a quarta parede lhe oferece. Olha a parede da direita, as suas rachas e manchas do tempo e idades. Olha a parede da esquerda, onde a areia se acumula até à altura dos joelhos em montinhos fofos e brilhantes. Os montinhos que não cessam de aumentar, enquanto a areia vai invadindo tudo.

Diante de si, o mar. Infinito: Kalunga.

Atrás de si, o mistério. Infinito: Kalunga.

O pirata já esqueceu o porquê de estar ali. O pirata apenas vê as formas, efémeras, surgirem e desaparecerem. Vê as ondas no mar que se formam, rugem como leões, mas desabam mansinhas na borda da areia. Vê as tempestuosas nuvens formarem navios de guerra, combaterem com trovões e relâmpagos, para depois, no fim, contemplar o sorriso de um arco-íris entre os farrapos de chuva que se dissipam. Vê que a pedra é apenas um remoinho do mar, cristalizado – e que uma duna é apenas uma onda maior, mais lenta. Ele vê a carne das suas mãos desaparecer, minguar como as sucessivas luas, entre as falanges que se vão tornando liquidas. Ele sente a sua cabeça a tombar, ora para um lado, ora para outro.

E um dia ela chega. A mulher negra apenas queria terminar também com a sua dor, a sua raiva, a sua revolta. A sua injustiça. Desde que fora atirada borda fora procurara este homem para lhe fazer compreender que nada fica por fazer, nem por terminar.

O corpo apodrecido do pirata olha em frente. Um falcão voa para longe do seu colo. Como quem fizera um cómico esforço para ver algo que não consegue, a língua esfarrapada espreita da boca, e um olho está pendurado. O outro já foi comido pelas aves de rapina.

A mulher pega no derradeiro olho e enfia-o no rosário de pecados que o nórdico tem ao pescoço, debaixo da camisa – cumprindo-lhe, assim, o destino. No próprio fio só a sucessão de maldades sobrou. A mulher descola a cabeça do corpo, olhando o crânio do assassino. Enterra o corpo, queima o rosário agora completo – e coloca a cabeça dentro do saco, substituindo a anterior. Pendura-a no prego ao lado da porta.

“Acabou-se a tua saga Homem-dos-Mil-Olhos” pensou a mulher. “Encontrei-te a tempo de te fazer ver que –

Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece… 

E pelos buracos no saco de plástico a caveira espreita o quarto que se transforma em areia. Ao longe, o mar em cristas gigantescas recria de si mesmo, o tumulto e a dissolução.

 

Através da Chuva, de Miguel Gullander, a sair em breve pela Editora Língua Geral

por Miguel Gullander
Mukanda | 20 Agosto 2010 | barco, cadáverm, literatura angolana, náufrago, piratas, selvagem