Direito à memória e antirracismo: reivindicar o movimento negro de 1911-1933

Resumo

Tem emergido em Portugal um importante debate sobre o direito à memória que pretende questionar e disputar as narrativas históricas dominantes. Este debate tem sido encabeçado pelo movimento antirracista, fundamentalmente pelo movimento negro. Este artigo debruça-se sobre a forma como são construídas as narrativas históricas hegemónicas e como estas são perpetuadas nas nossas Escolas, através de currículos e manuais escolares. Assim, partindo muitas vezes do silenciamento do passado e de falsas mitologias, a história que se conta de Portugal mantém perceções lusotropicalistas, eurocêntricas e racistas do passado, aprofundando com isso desigualdades étnico-raciais, simbólicas e materiais, no presente e para o futuro. Partindo da história silenciada do movimento negro em Portugal de 1911-1933 e da experiência de uma exposição sobre o tema, propõe-se neste artigo que a Escola tenha um papel ativo na criação de contranarrativas. Estas devem disputar falsas perceções históricas e incluir, por exemplo, a importante presença de negros, roma ou muçulmanos no passado do país, contribuindo, assim, para a criação de uma maior igualdade social.

Introdução1

Nos últimos anos, o movimento antirracista tem denunciado a violência policial racista; as desigualdades no acesso à educação, saúde e habitação; a impunidade judicial; o silenciamento da história de negros ou roma ; e o não acesso a dados étnico-raciais (Rodrigues et al., 2017). Por outro lado, diversas organizações internacionais de defesa dos direitos humanos têm alertado e denunciado, nos seus relatórios, graves problemas de racismo existentes no país (ENAR, 2015; ECRI, 2018; Amnistia Internacional, 2018). O Racismo é, sem dúvida, um problema central na sociedade portuguesa que as instituições do Estado têm ignorado.

Em Portugal, a luta antirracista tem uma longa história silenciada. Desde o século XV, negras e negros lutaram por direitos através de irmandades religiosas (Reginaldo, 2009; Lahon, 2012); quando escravizados resistiram através de fugas coletivas ou individuais (Caldeira, 2017); e criaram práticas artísticas e culturais próprias (Tinhorão, 1988). Já no século XX, entre 1911 e 1933, uma geração pan-africanista reivindicou direitos iguais através de diversos jornais e organizações criadas em Lisboa (Varela e Pereira, 2019; Pereira e Varela, 2019). Posteriormente, entre  os anos 1940s e 1970s, uma geração de ativistas anticoloniais levantou no país a necessidade de descolonização. No pós-25 de Abril, ao longo da década de 1990, surgiram várias associações antirracistas, de imigrantes e de bairro que combateram o racismo (Sertório, 2001; Vale de Almeida, 2006); nessa mesma época o movimento musical rap levantou bem alto a bandeira da igualdade racial. Nos últimos anos, a luta antirracista vive um acentuado dinamismo com o surgimento de diversos coletivos políticos, associativos e artísticos negros e roma (Henriques, 2018: 18).

É neste contexto que existe neste momento, em Portugal, um debate sobre o direito à memória, que questiona o silenciamento da história da comunidade negra e roma no país. Esta disputa pretende, entre várias coisas, revelar a importância destas comunidades para a transformação política, social e cultural da sociedade portuguesa no passado. Esta dinâmica leva ao questionamento do imaginário identitário nacional português, que perpetua a exclusão de não-brancos da História hegemónica. Neste contexto, este artigo pretende desenvolver a discussão sobre o silenciamento do passado e o seu impacto na atualidade, que é essencial para enfrentar o racismo na sociedade, nomeadamente no ensino e na construção de falsas narrativas hegemónicas sobre a história de Portugal.

Este artigo estrutura-se da seguinte forma: numa primeira parte farei uma abordagem teórica à problemática do “silenciamento do passado”, discutindo as falsas narrativas perpetuadas pelos manuais escolares e abordarei a problemática do lusotropicalismo. Depois irei focar-me no apagamento da presença negra no país ao longo da História, centrando-me sobre a geração do movimento pan-africanista de 1911-1933. Por fim, analisarei a experiência de contranarrativa da exposição “Para uma história do movimento negro em Portugal, 1911-1933”, procurando daí extrair ensinamentos para disputar memórias históricas.

1. Silenciamento do passado, manuais escolares e lusotropicalismo

No seu livro Silencing the past: power and the production of history, o académico haitiano Michel-Rolph Trouillot mostra como o poder opera na produção da História como forma de dominação social. Referenciando o fracasso do Ocidente em reconhecer a importância da maior revolta de escravizados da história - a Revolução Haitiana (1791-1804) – o autor demonstra como o mecanismo de silenciamento do passado é utilizado para produzir poder na atualidade. Assim, refere que o passado não existe independentemente do presente e que as pessoas participam na História, tanto enquanto atores assim como narradores (Trouillot, 1995: 15). O autor defende ainda que o principal objetivo do poder instituído na produção histórica é a invisibilidade do passado e que o nosso grande desafio é a exposição das raízes dessa invisibilidade (Trouillot, 1995: xix). Assim, o presente é essencial para a construção histórica e a autenticidade do passado reside nas lutas da atualidade (Trouillot, 1995: 151). Por isso, considera que: “A história não pertence apenas aos seus narradores, profissionais ou amadores. Enquanto alguns de nós debatem o que a história é ou foi, outros tomam-na nas suas próprias mãos” (Trouillot, 1995: 153).

Um outro autor, Eric Wolf (1990: x), refere que os académicos não se podem contentar mais em escrever apenas a história das elites vitoriosas e que é necessário revelar a História “do povo sem História”. Defende então que as “pessoas comuns” são agentes no processo histórico e não apenas suas vítimas. Em Portugal, negros, roma ou classes populares brancas são esses “povos sem História”, cujo passado precisa ser revelado como forma de enfrentar hoje o racismo e as desigualdades sociais.

Sobre a construção histórica e a manutenção de narrativas hegemónicas em Portugal, Miguel Cardina (2016) mostra-nos como uma representação seletiva do passado manteve, no período pós-colonial, um discurso oficial de singularidade do mito dos “Descobrimentos” e de especificidade da “presença portuguesa no mundo” e como isso tem um impacto na construção da memória coletiva no presente. Esta narrativa ignora frequentemente a violência do colonialismo e silencia o papel dos não-brancos na nossa sociedade. Por outro lado, os Estados-nação europeus, como Portugal, continuam a reproduzir a ideia de homogeneidade racial (Araújo & Maeso, 2016: 156), onde os “portugueses” são construídos apenas como brancos no passado e presente. Ignora-se assim a longa presença e opressão sobre outros povos no país como os negros, roma, amazigues, árabes, muçulmanos ou judeus sefarditas.

Marta Araújo e Silvia Maeso (2010, 2012 e 2016), nas suas pesquisas sobre as narrativas dominantes nos manuais escolares portugueses, têm revelado como estes contêm visões eurocêntricas que não questionam o racismo. Segundo as autoras, os manuais de História, encontram-se no centro de um complexo conjunto de relações de poder, sendo importantes objetos de estudo por cristalizarem concepções comuns sobre os imaginários nacionais e europeu (2010: 240). Referem, as mesmas, que:

“Nos dois últimos séculos, os sistemas educativos nas sociedades ocidentais constituíram instrumentos cruciais da construção dos Estados-Nação e da reprodução das identidades nacionais. O projeto homogeneizador da nação moderna resultou amplamente na eliminação das diversas identidades e subjetividades dos estudantes, mascarando e legitimando assim a persistência de desigualdades. Isto foi conseguido sobretudo pela via da imposição dos currículos nacionais, que reproduzem representações eurocêntricas da história nacional/europeia” (2010: 243).

As autoras demonstram que em Portugal os currículos e manuais escolares de História do 3ºciclo: não questionam o racismo; solidificam um pensamento eurocêntrico; ignoram a história dos não-brancos; promovem a islamofobia através da narrativa mitómana da reconquista cristã; são acríticos sobre a colonização; representam depreciativamente africanos no presente; e negligenciam a brutalidade do esclavagismo (Araújo & Maeso, 2010). E, esta realidade é, em muito, influenciada pelo mito lusotropicalista.

O lusotropicalismo mitifica uma suposta excepcionalidade nacional, que promove a ideia de que a sociedade portuguesa é menos racista que outras (Vala, Brito & Lopes, 1999; Vale de Almeida, 2000). De fato, silencia a violência do colonialismo, esclavagismo, racismo, genocídio ou violação sistemática de mulheres negras e indígenas (Nascimento, 2016 [1978]). E, até hoje, o lusotropicalismo é uma importante representação da identidade nacional portuguesa (Vale de Almeida, 2006), promovida pelas instituições do Estado, bloqueando assim o debate antirracista no país (Sertório, 2001: 9). A perpetuação da ideologia lusotropicalista nos currículos e manuais escolares, impede uma autocrítica que enfrente as desigualdades étnico-raciais na atualidade. Por outro lado, coloca a sociedade branca num pedestal (os “descobridores”, os “aventureiros”, os “bons colonizadores”) e os não-brancos em degraus inferiores, como agentes inertes do passado. Assim, é essencial hoje recuperar a memória dos “povos sem História”, enfrentando o silenciamento do passado e ultrapassando o lusotropicalismo que ofusca a História de Portugal e prolonga as opressões no presente.

2. O silenciamento da longa presença negra em Portugal

A narrativa hegemónica é profundamente silenciosa sobre a importância histórica dos negros em Portugal e esta circunstância tem levado à ideia de que estes são exteriores ao país ou - quanto muito - testemunhas silenciosas do passado.

Desde de meados do século XV, podemos facilmente identificar em documentos escritos a presença de negras e negros em Portugal. No entanto, se nos referirmos a afrodescendentes antes da construção da categoria “negro”, podemos ir mais além: até à presença cartaginesa na Península Ibérica (575 AC a 206 AC); ou à vinda de amazigues durante o Al-Andalus (711-1492).

Durante séculos, a presença de negros livres e escravizados foi constante, principalmente no sul do país; e a influência da população negra foi sentida na agricultura, na dança, nas festividades, na literatura, na música, na religião, no teatro ou no vocabulário (Saunders, 1982; Tinhorão, 1988). Didier Lahon afirma que em 1550, em Lisboa, os escravizados (maioritariamente negros) seriam 10% da população e entre o século XVII e o século XVIII, a população negra poderia ter representado cerca de 15% da população da cidade (Lahon, 2004: 73-80).

Nos inícios do século XX, vestígios muito evidentes dessa presença foram retratados por estudos antropológicos em povoações junto ao rio Sado (Vasconcelos, 1920). No entanto, durante o século XIX e início do século XX, a evidência da presença negra na história de Portugal era um empecilho para muitos académicos nacionais. Subestimando esse passado e reivindicando o estatuto de Portugal na Europa “branca”, os académicos tentavam provar que a influência negra tinha tido pouco impacto na sociedade ou na sua genética (Tinhorão, 1988: 359-376; Araújo & Maeso, 2016: 156). Contudo, desde os anos 1980s têm sido realizadas importantes pesquisas académicas sobre a história dos negros em Portugal, que vêm mostrar a sua importância no passado, nomeadamente através de estudos sobre: esclavagismo (Saunders, 1982; Fonseca, 2000; Marques, 2004; Lahon, 2004; Henriques, 2009; Caldeira, 2017); irmandades religiosas negras (Reginaldo, 2009; Lahon, 2012); a longa e silenciada presença de negros no país (Tinhorão, 1988; Lahon, 1999); e ainda através de estudos genética humana (Pereira, Cunha, Alves, & Amorim, 2005).

Já no século XX temos também uma presença constante de negros em Portugal: uma geração, nas primeiras décadas do século, que tinha entre eles estudantes e muitos profissionais qualificados; uma segunda geração, entre a década de 1940 e 1970, com muitos estudantes universitários; e também a partir da década de 1960, uma importante migração – dos antigos territórios colonizados - que vem até aos dias de hoje.

O silêncio sobre a presença negra em Portugal e sobre a história dos territórios africanos no geral bloqueia o acesso dos afrodescendentes no país à sua memória. Este silêncio tem efeitos reais nas suas vidas e promove um racismo estrutural que perpetua desigualdades sociais, económicas e simbólicas. Há assim a necessidade de as salas de aula poderem ser espaços que integrem a diversidade, enfrentando as narrativas que promovem o racismo.

3. As origens do movimento negro e antirracista em Portugal

Entre 1911 e 1933 surgiu um movimento negro em Portugal que estava integrado no pan-africanismo internacional e que lutou contra o racismo no país (Varela & Pereira, 2019; Pereira & Varela, 2019). Entre a Primeira República e a implantação da ditadura do Estado Novo, esta geração vai fundar diversos jornais e várias organizações associativas e políticas em Lisboa. No entanto, até hoje existe um enorme silêncio sobre este movimento, incluindo nos trabalhos dos historiadores portugueses que retratam esta época. Não é, assim, um acaso que o principal trabalho sobre esta geração seja do intelectual angolano, Mário Pinto de Andrade: “Origens do Nacionalismo Africano” (Andrade, 1997).

Este movimento iniciou a sua luta durante a Primeira República, um período de grande mobilização social (Rosas & Rollo, 2009) e desapareceu em 1933 quando se institucionalizou o Estado Novo. Foi um movimento diverso na sua composição social e ideológica e, as mulheres, assumiram em algumas das organizações papéis de relevo (Roldão, 2019). Os membros desta geração estavam estabelecidos em Portugal e mantinham ligações à realidade política africana. A nível internacional, estavam integrados no movimento pan-africanista, tendo como importante referência ativistas negros norte-americanos. Em 1923, W.E.B. Du Bois, um dos principais líderes e intelectuais afro-americanos, deslocou-se à capital portuguesa para se reunir com a Liga Africana, no que ele descreveu como a sessão de Lisboa do III Congresso Pan-africano, mas que foi retratado por José de Magalhães, líder da Liga, apenas como uma sessão com Du Bois (Varela & Pereira, 2019).

Através das suas organizações e jornais, esta geração vai ao longo de mais de duas décadas travar um combate contra o racismo: denunciando casos concretos, exigindo igualdade e debatendo argumento científicos. Esta geração constituiu-se, assim, como o primeiro movimento antirracista português. O direito a uma educação sem racismo foi uma das suas bandeiras. Não é um acaso que o primeiro jornal desta geração, O Negro (1911), fosse um órgão de imprensa dos estudantes negros em Portugal; e, em 1923, W.E.B. Du Bois destacasse a presença de estudantes negros nas reuniões com a Liga Africana. Desta forma, logo no seu primeiro número, o jornal O Negro denuncia casos de racismo nas escolas: “Consta-nos que em certos estabelecimentos de ensino os estudantes negros são tratados com menos correção, havendo mesmo por parte de determinados professores injustiças que nos enojam.” . Por outro lado, a Junta de Defesa dos Direitos D’Africa, a primeira grande organização desta geração, pretendia, como defendiam os seus estatutos, zelar pelos estudantes africanos em Portugal, protegendo-os contra abusos e perigos.

Neste sentido, é necessário trazer para a atualidade o papel histórico deste movimento e aprender com as suas reivindicações. Por exemplo, o desvendar desta geração nos manuais escolares e currículos colocaria as negras e negros com um papel de destaque na História portuguesa e, como importantes atores de mudança positiva da nossa sociedade. Este é um dos diversos exemplos de “histórias” que precisam de entrar nas nossas salas de aula de forma a enfrentar o eurocentrismo e racismo que dominam as narrativas hegemónicas.

Primeira geração de ativistas negros em Portugal.Primeira geração de ativistas negros em Portugal.

4. Disputando narrativas: a experiência da exposição “Para uma história do movimento negro em Portugal, 1911-1933”

Mesmo depois de importantes pesquisas académicas nas últimas décadas sobre a influente presença negra em Portugal, não há uma mudança na abordagem da narrativa hegemónica ao tema, nem nos currículos, nem nos manuais escolares. Isso mostra-nos, como refere Trouillot, que o passado não existe independentemente do presente e que, portanto, o passado é uma posição que é preciso confrontar politicamente. Assim, como se demonstra, a narrativa da História hegemónica é fundamentalmente uma questão de poder e não apenas de dados e comprovações académicas. Infelizmente isso mostra-nos que a pesquisa historiográfica não é suficiente para alterar narrativas hegemónicas e que a investigação deve ser aliada a uma disputa política por narrativas no presente. Assim, o direito à memória é um combate político mais geral, que se estende ao ensino nas escolas, através, por exemplo, de uma discussão e exigência de mudança nos currículos e manuais escolares.

Em Maio de 2019, integrado no “Roteiro para uma Educação Antirracista” da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE-IPS), foi montada no politécnico a exposição: “Para uma história do movimento negro em Portugal, 1911-1933” . Esta exposição pretendia trazer para a atualidade a silenciada luta pela igualdade de negras e negros em Portugal ao longo do tempo, tendo um foco específico na geração pan-africanista do início do século XX. Pretendia-se, desta forma, resgatar a memória sobre a geração de afrodescendentes que constituiu o primeiro movimento antirracista em Portugal, questionando as narrativas hegemónicas e abrindo espaço a novas e transformadoras “histórias”.

A exposição foi criada por Cristina Roldão, José Pereira e Pedro Varela , e tinha por base as investigações académicas dos mesmos autores sobre origens do movimento negro e feminismo negro no país (Varela & Pereira, 2019; Roldão, 2019). Os seus principais objetivos eram sensibilizar estudantes universitários, do secundário e básico, professores e também ativistas, sobre a importância do movimento negro antirracista no país.

A exposição iniciava com as seguintes palavras que demonstravam os seus principais objetivos:

“Durante séculos, os afrodescendentes transformaram e lutaram pelos seus direitos na sociedade portuguesa. Resgatamos aqui parte da memória do movimento negro em Portugal ao longo dos tempos, designadamente, trazendo até à atualidade a geração Pan-africanista de 1911-1933. O silenciamento da história dos negros em Portugal, assim como a dos roma, muçulmanos ou judeus tem permitido a exclusão destes do passado e presente. Este silenciamento chama-nos à atenção para uma atualidade onde a desigualdade prevalece e onde o racismo continua a acentuar o desnível no acesso a direitos que deveriam ser universais. Sem reconhecer o nosso passado dificilmente poderemos construir um futuro digno, para todos. Esta, também, é a nossa história.” (Roldão, Pereira & Varela, 2019)

A exposição era composta por nove placares que iniciavam com a temática do silenciamento da história dos negros em Portugal, passando depois para o movimento pan-africanista de 1911-1933, onde se dedicava espaço aos seus jornais, diversidade do movimento, às suas figuras, a sua relação com o movimento internacional da época e o relevante papel das mulheres. Depois, debruçava-se sobre o movimento anticolonialista e, por fim, sobre o movimento negro na atualidade.

Construída de forma didática, onde as imagens tinham uma relevante centralidade, a exposição teve um impacto social importante: a RTP África realizou uma rubrica sobre a exposição no programa “Causa e Efeito” (RTP África, 2019); o audioblogue Rádio AfroLis dedicou uma entrevista com um dos autores (Afrolis, 2019); o Grupo EducAR escreveu uma reportagem sobre o acontecimento (Cardoso & Parzianello, 2019); realizaram-se visitas guiadas; e, no seminário de encerramento do Roteiro, a exposição foi novamente montada no cinema Charlot em Setúbal.

Esta exposição trouxe outras narrativas que enfrentam conceções racistas e eurocêntricas da História portuguesa. E, assim, através de um conhecimento acumulado na academia, pretendia revelar para a sociedade em geral e para os alunos e professores em específico, uma outra História: (des)silenciando memórias que se querem apagadas e disputando narrativas do passado para transformar sociedade e combater as desigualdades no presente.

Reflexões finais / Conclusões

Em 2017, através de um processo de Orçamento Participativo do Município de Lisboa, ganhou um projeto para um memorial da escravatura na capital. A proposta da Djass (Associação de Afrodescendentes) pretendia:

“[…] partir do processo de escravização para compreender o racismo contemporâneo. Contar histórias de afrodescendentes na contemporaneidade, várias formas de resistência, de afirmação de subjetividade e de influência na cultura actual.” (Dias, 2019).

Na mesma altura, o projeto de criação de um museu sobre os “Descobrimentos” em Lisboa, que ao que tudo indicava pretendia glorificar o colonialismo português, levou a importantes debates na praça pública. Perante a polémica, diversos setores se mobilizaram e numa carta aberta, publicada no jornal Público com o título “Não a um museu contra nós!”, dezenas de assinantes afrodescendentes escreveram:

“Não aceitamos um Museu construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História, com o dinheiro dos impostos de negras e negros deste país, que não respeita nem valoriza a evolução da própria historiografia e a revisão histórica já feita e em curso, da necessidade de reinterpretação e reconceptualização dos impérios coloniais e do colonialismo. Não em nosso nome! Porque este é um Museu contra nós, que pretende ser erigido ignorando as nossas demandas, o nosso contributo e a nossa resistência. Nós, negras e negros em Portugal, exigimos à CML uma aposta séria num Memorial de homenagem às pessoas escravizadas, num Museu do Colonialismo, da Escravatura ou da Resistência Negra […].” (Público, 2018)

As reivindicações desta carta demonstram a disputa que existe neste momento pelas narrativas históricas em Portugal. Por um lado, as instituições e o poder hegemónico a manter velhas narrativas eurocêntricas - que perpetuam desigualdades e opressões -, e por outro, setores antirracistas, a exigir que uma outra História seja contada, com narrativas verdadeiras e não excludentes.

A relação entre Ensino e sociedade é dialética e as Escolas têm um poder central na mudança social. Assim, as falsas narrativas hegemónicas que se mantêm nas salas de aulas devem-se alterar de forma a enfrentar o racismo e as desigualdades na nossa sociedade. Estas novas narrativas devem abarcar a diversidade que existe nas nossas Escolas, acabando de vez com “histórias” que colocam alunos brancos em “cima” e não-brancos em “baixo”, ao mesmo tempo que silenciam o seu passado.

As nossas salas de aula devem ser lugares de real diversidade e de verdade histórica: onde se conta, por exemplo, a importante presença de negros, roma ou muçulmanos, durante séculos no país; onde o Al-Andaluz deixe de ser um empecilho do passado mas uma importante herança; onde se pare de retratar uma suposta invasão muçulmana e um mito de “reconquista” que há décadas têm sido desmontados por diversos historiadores e arqueólogos nacionais, onde se destaca Cláudio Torres; onde se fale da História das grandes civilizações que os marinheiros portugueses encontraram em África no passado; assim, como da resistência de vários povos negros, roma e ameríndios ao esclavagismo, colonialismo, fascismo e racismo português. A Escola deve ser, assim, um espaço igualitário onde o direito à memória exista realmente e onde se confrontem falsas narrativas históricas que perpetuam o racismo na nossa sociedade.

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Vasconcelos, José Leite de (1920). Espécime português de raça negra. Boletim de etnografia – Publicação do Museu Etnológico Português. Lisboa: Imprensa Nacional, 1920.

 

Artigo pubicado originalmente na Medi@ções – Revista OnLine da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Cristina Roldão (coord), v. 7, n. 2 (2019): Educação (anti)racista: Que políticas, práticas e perspectivas?

  • 1. Este artigo resulta da pesquisa realizada por Pedro Varela a partir de fundos nacionais, através da FCT, no âmbito da Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/129171/2017. E, ainda, no âmbito do projeto COMBAT, com apoio financeiro da FCT, através de fundos nacionais e cofinanciamento do FEDER, através do Programa Operacional Competitividade e Inovação COMPETE 2020, no âmbito do projeto PTDC/IVC‑SOC/1209/2014– POCI‑01‑0145‑FEDER‑016806.

por Pedro Varela
Jogos Sem Fronteiras | 11 Dezembro 2020 | a importante presença de negros, assim, contribuindo, para a criação de uma maior igualdade social., Partindo da história silenciada do movimento negro em Portugal de 1911-1933 e da experiência de uma exposição sobre o tema, por exemplo, propõe-se neste artigo que a Escola tenha um papel ativo na criação de contranarrativas. Estas devem disputar falsas perceções históricas e incluir, roma ou muçulmanos no passado do país