Potes antropomórficos

Este livro sobre Reinata Sadimba, tal como o anterior dedicado a Matias Ntundo, prossegue importantes objectivos: documentar a vida e a obra de artistas que marcaram as últimas décadas da nossa história recente, recolher depoimentos relacionados com diversas fases do seu percurso, provocar e reunir reflexões e estudos que, gradualmente, vão escrevendo ou reescrevendo a história da arte moçambicana. Haverá melhor maneira de homenagear um artista? Os próprios artistas, ao colaborarem tão estreitamente com o projecto de se darem a conhecer através de um livro, parecem dizer-nos o quanto lhes agrada a ideia de serem mais e melhor conhecidos, de se exporem a outros olhos e vozes, de corrigir mesmo o que, em seu entender, terá sido mal percebido sobre a sua obra.

Como ilustração de quão importante é este contributo para o estudo e investigação da produção artística local, começo por reproduzir as palavras que escrevi, há já alguns anos, quando iniciava o meu projecto de doutoramento e me propunha estudar a complexidade do contexto artístico moçambicano. Os potes antropomórficos e as primeiras esculturas de Reinata haviam sido seleccionados e integravam a exposição permanente do Museu Nacional de Arte, aberta ao público em 1989. No meio artístico local manifestara-se alguma estranheza em relação à escolha de Reinata. Visando clarificar os conceitos subjacentes à selecção feita e/ou à estranheza que causava essa selecção, perguntava eu: Reinata faz cerâmica ou escultura? É uma artista popular ou, simplesmente, uma artista? Volvidos alguns anos, melhor equaciona- das algumas das questões que então se colocavam, mais do que dar respostas, interessa-me aqui, tendo como referência o que Karin Barber escreveu sobre as artes populares em África, chamar a atenção para a importância de continuar a estudar o trabalho de Reinata Sadimba. Mais investigação se faz necessária. Artista do povo, artista popular, artista tradicional, artista de elite, artista que se situa entre uma e outra categoria, artista sincrética, onde cabe a individualidade, a novidade e a vitalidade de Reinata? São precisas estas categorias para apreender as qualidades das formas expressivas do seu trabalho? Como interpretar a liberdade de que goza o trabalho de Reinata, a forma como combina diversos elementos culturais, do mundo rural e da cidade, ou dá resposta às profundas transformações sociais?

Um livro como este ajuda também a dar mais visibilidade à arte moçambicana uma vez que pouco se tem escrito e/ou publicado sobre o assunto. O trabalho de Reinata, coleccionado e/ou mostrado fora de Moçambique, não tem sido excepção. Oscilando entre diferentes categorias artísticas, nem sempre tem sido divulgado através dos canais oficiais reconhecidos. Vale a pena referir o recente livro de Chris Spring, curador das galerias africanas do Museu Britânico, em Londres. Em Angaza Afrika: African Art Now destaca 63 artistas, de perfil diferenciado, activos na cena artística africana, que caracteriza como diversa e plural, desafiando, assim, ideias feitas sobre África e o artista africano.

Reinata Sadimba está entre os artistas seleccionados. Mostra-se um conjunto de peças, de colecções particulares, produzidas pela artista aquando da sua participação no Triangle Arts Pamoja Workshop, havido em 1995, no âmbito da iniciativa Africa 95, visando celebrar as artes de África. Conhecedor do trabalho recente de Reinata, o autor considera-o como uma história que continua a ser contada ou como um conjunto de histórias, sendo cada uma delas parte dessa mesma história, a história do povo Makonde. É Reinata quem também o afirma. Reivindicar as práticas sociais e rituais da sua cultura faz de Reinata uma artista tradicional? Herdeira de uma tradição que considerava a cerâmica uma actividade exclusivamente feminina, Reinata cedo se confrontou com outra tradição que vedava às mulheres a produção de escultura figurativa e foi capaz de quebrar essas divisões históricas. Afirmou o seu estilo pessoal e original. Mas foi capaz de ultrapassar outras fronteiras? Inspirar-se com a arte de outras culturas e tempos? Conquistar públicos diferenciados.

Reinata Sadimba é também uma das poucas mulheres artistas cuja vida e criatividade este livro procura dar a conhecer a outras mulheres artistas, a mulheres estudantes de arte, a públicos interessados pelas histórias pessoais, experiências físicas, emoções, criação intuitiva, amor pela beleza presentes no seu trabalho. Olhar a arte praticada por Reinata, adoptando uma perspectiva simultaneamente regional e nacional, que considera a zona oriental de África e as suas complexas histórias, migrações prolongadas e muitas culturas diferentes, troca de ideias e estilos, adaptações culturais e transformações, mas também as especificidades mais recentes de cada história/país, poderá trazer novos campos de estudo. Dar es Salaam, Nairóbi, Pemba e Maputo são cidades que marcaram a vida de Reinata. A sua arte foi (é) marcada pela sua experiência nestes contextos, os diferentes públicos e a influência da coexistência de mercados de arte diversificados. O seu trabalho insere-se nas múltiplas formas e temas, fusão de fontes, influências, materiais e modos de expressão que caracterizam a arte praticada nos nossos dias, na geografia que habitamos. Perceber isso talvez implique revisitar os anos 60 do século passado, a cidade que era Dar es Salaam, os artistas de diferentes origens que aí se encontravam, o conflito cultural entre tradição e modernidade, o nascimento do ‘estilo Tingatinga’ que perdura para além da morte do seu iniciador, a ‘revolução’ operada na escultura produzida pelos Makonde e todas as adaptações e transformações ocorridas desde então. Implica também revisitar a nossa própria história. Este livro e os artigos nele incluídos vão certamente contribuir para aprofundar o conhecimento sobre a vida, a visão e as respostas que esta artista vem dando ao seu mundo mais próximo e mais longínquo.

Prefácio de ALDA COSTA ao livro Reinata Sadimba, esculturas e cerâmicas, de Gianfranco Gandolfo, design e paginação de livro de Ivone Ralha, Kapicua 2012.