Colagem / Coragem (excerto)

Encontrei na colagem um antídoto para a cobardia. Nada procura. Está para lá do bem e do mal, mesmo quando corto orelhas e amputo senhoras bem vestidas. Um corpo não é um corpo. Viro cães de pernas para o ar, coloco uma língua no lugar de umas sobrancelhas. Onde havia uma flor, descubro um rabo. Onde foi Lisboa, um punho. Ao comando de uma quadriga, um molho de cenouras.

Na festa da colagem, não há letreiros, legendas, ordem, nexo ou lei. Não é terra de ninguém, mas um cemitério de abominações sem placas funerárias. Animais com cara de homem, mulheres com bico de pássaro, peixes com mãos, olhos com cabeça, cebolas de brinco, ervilhas-pupila.

Nesse avesso dos contos de fadas, a coragem pulsa. Onde houve coração, há uma ponta e mola.

Para machucar a realidade, basta uma tesoura. O conhecido reconfigura-se a partir de um gesto tão singelo quanto cortar papel, tecido, fita-cola. No início, não houve o verbo, mas o vórtice e um estilete — para cortar a língua.

Lá, onde ninguém fala, porque ninguém tem a boca no sítio, reina o silêncio e a confusão carnavalesca, onde reinava a intimidação e a censura. Não consigo explicar o eclipse da lógica, na colagem, sem concluir que as palavras, afinal, estragam tudo. Submeto-me ao mutismo da tesoura.

Nesse teatro de guerra encontro descanso, ainda que ‘descanso’ seja a floresta de sinistrados que deixo para trás ao atirar o desperdício ao lixo: bocadinhos de olhos, papel colorido, pestanas, lábios, partes sem todo.

Na colagem, sou corajosa. Mas será que posso falar de coragem? Será que, entre os mercenários, de tesouras em riste, há ainda nome para isso? Mas, não tenho medo de dizer o que penso nem do barulho do meu silêncio. Não me censuro. Não temo o que pensarão dos meus pensamentos. Não temo os meus pensamentos. A loucura procura o padrão. A colagem procura o padrão. A loucura encontra o padrão. A colagem encontra o padrão. A loucura procura o ritmo. A colagem procura o ritmo. A loucura encontra o ritmo. A colagem encontra o ritmo. A loucura procura a música. A colagem procura a música. A colagem, loucura. A loucura, colagem.

Colagem / Coragem: talvez porque não use palavras, frases, parágrafos. Aquilo que quero dizer fica a meio, sem que me vigie ou preocupe em terminar. Por vezes, nada digo. Na colagem, não me importo de berrar nem de ranger os dentes. Posso ser agressiva ou canhota, masculina, mula, boi, bruxa, conspícua, vaidosa. Deus está de costas viradas para a colagem: ponho-lhe uma venda nos olhos, se me vigia. Corto-lhe a língua, os cabelos, os pés. Ele não leva a sério horas mortas. Alforriada, vacilo, entre a liberdade e a alegria.

“Pára. Mete-te na cama”. Finjo não ouvir. Continuo, apesar dela, como se entrasse no liceu apesar dos bullies. De vez em quando, vence-me. São os dias da colagem. Aqueles em que a cabeça concorda com o ruído do mundo enquanto este passa, no intervalo dos livros. Vou à janela. A rua incita-me ao silêncio. “Não inventes. Cresce. Cala-te. Morre.” 

A intimidação terá origem no medo da morte ou no desejo de morte? Tesoura: (mais um) amuleto contra a intimidação. 

Corto, recorto. Não penso. Estou alheada, esquecida de mim. Sigo por intuição, sem tentar entender o que faço. Não faço perguntas nem procuro a coerência. Começo da intimidação e contrário da arte: procurar entender por que faço o que faço, por que faço como faço, por que corto como corto, por que sou como sou, por que sou quem sou. Liberdade: calar a dúvida — cortar.

Corto e colo: não me interessa ser séria nem parecer bem. É o avesso do perfeccionismo. Não me importo de ser imoral. Sigo a cor, o movimento da tesoura. Interessa pouco se o resultado é belo. Cura-me do mundo, subtraindo-me do mundo. Aceito o erro, sem questionar. Sou caridosa comigo. A matemática da colagem é a da surpresa no lapso, da descoberta da forma no acaso, do padrão vislumbrado na contingência. Abre a porta da ficção, como apenas a senti abrir na noite em que dei banho a uma mulher sem mãos.

 

A mulher chorou nos meus braços porque premi com demasiada força um dos dedos dos seus pés. Não deitava lágrimas. Num quarto ao lado, um homem era alimentado com uma papa amarela através de uma seringa espetada no estômago. As mãos podem encontrar o que não procuraram. Por vezes, não sabendo o que isso é, apenas nos baralham. Gostava de sucumbir à imaginação e à sugestão como se andasse pela rua sem me afligir por não saber o caminho.

 

Imaginar: ratoeira. Tento. Custa deixar-me ir. Parece-se com atirar-me de uma janela de livre-vontade. A vertigem aflige-me, toma conta do meu corpo. Imaginar: confiar no acaso, não temer a forma dos meus sonhos. Tento. Primeiro, estendo os braços para o escuro. Depois, inclino o pescoço, aproximando os olhos da folha de papel. Mergulho, dando impulso com as pernas. Não se vê nada. Fantasmas da véspera emergem das sombras como gente parada num beco, à conversa, encostada à parede. No chão, ao fundo, o anel que perdi uma vez. Tento apanhá-lo. Voa. Ao lado, dois rapazes de boné riem-se de mim: não os conheço — mas um deles sou eu. Que sentirão? O que dizem? Como se chamarão? Parecem-me cheios de angústia, enigmas, incitam-me. A. adormeceu à sombra, escrevo. Aquilo que imagino é frívolo, como não me sabia. Verde, frouxo, bichado, vazio. Tento de novo. Os rapazes, no fundo do beco, prosseguem fumando, bichanam, murmuram. Resigno-me ao aspecto dos meus devaneios. Aprendo a desculpar a sua vulgaridade, desculpando a minha. Imaginar: aceitar-se; uma arte de não ser injusta comigo nem demasiado dura. 

É possível nunca conhecer a forma manifesta da imaginação. Se deixamos vir à tona o imanente, ele morde-nos (e à ideia que dele fazemos). Aquilo que imaginamos revela-nos em absoluto, mesmo quando não nos preocupamos em fazer sentido e mesmo que não seja orientado para o sentido. Não falo das nossas fantasias, mas do músculo do imaginário, perro, esquecido, vestigial.

 

Essa mordedura é a de um espírito que nos conhece de há muito, melhor do que ninguém. O divino surpreende-se nas tarefas mínimas, talvez nos observe; talvez faça pouco da nossa necessidade de ocupar o tempo, formiguinhas suas. À semelhança do diabo, está nas surpresas mínimas, nas ironias.

Não encontro o milagre na majestade da criação, na Natureza, mas nos acasos, na irrupção acidental da ironia, do amor. Preguiçoso, o espírito goza de nos ver imaginar formas de encher a vida. Alimenta-se da nossa pressa. Enquanto envelhecemos, dorme numa rede. E, de vez em quando, embalado, ressona.

 

Imaginar: perdoar-me. Aceitar as marcas do meu rosto, as falhas do meu corpo. Abraçar o limite do meu alcance. Aceitar o que imaginamos como às nossas imperfeições. 

Imaginar: superar o nó no estômago de estar frente a frente com aquilo que inventamos, a nossa carinha de sempre, que nunca víramos.

Colar e cortar são instrumentos do músculo do imaginário, um portal para a fantasia. A sua fonte é a matéria do mundo, que a tesoura desconcerta, corta e reconfigura. Calar a pergunta: ‘que quero dizer com estas pernas em cima desta palmeira?’. Não perguntar nem sequer ‘que dizem elas sobre mim?’. Nada a declarar. Nada a perguntar. Nada a responder.

Muitas vezes, imagino o paraíso como o lugar onde se calaram as perguntas, o juízo, a curiosidade (que me assola, nesses momentos, como danação). Imagino a sabedoria dos anjos como a chegada da idade em que nada se ensina, nem se julga. Mas, estar vivo não é aprender todos os dias? Cada dia me esforço por perguntar menos e ouvir as cores, à coca do espírito maroto, que se entretém de nos ver baralhados à procura de uma razão em tudo.

Colagem enquanto transcendência: não questionar por que corto como corto. Colagem: antibullying.

Às vezes, imagino-me limpa. Na colagem, não preciso de guardanapos. Sento-me numa cadeira de mãos lavadas. Sujo os dedos de cola e de pó de papéis velhos.

Colagem: a papelada recorda-me a minha morte: o dia em que alguém arrombará a porta, porque nunca mais apareci no café. Corto papéis como um deus ressuscita mortos. Na colagem não há passado. Também não há futuro. 

Estarei à procura de uma vida nova para os papéis, recortes, fotografias, tecidos — ou para mim? Recortar, rasurar, sublinhar, cortar, amachucar reabre uma segunda infância que eu julgava estar-me vedada. A colagem não é o início de uma coisa nova, mas um regresso. Às vezes, é assim. Pressentimos estar perto de uma porta que não sabemos onde vai dar, para um lugar que não sabemos se já tínhamos habitado ou se é o futuro. 

Temos apenas uma entrada na vida, agarrados a um único corpo e espírito. Mas, será mesmo? Pelo caminho, pelos corredores, pressentimos portas que ainda não conseguimos ver (muito menos abrir) e nos conduzem ao lugar onde as nossas recordações — e o presente — nos espreitam.

A colagem instaura uma segunda infância, que nada tem que ver com a primeira. Espalhados sobre a secretária, os meus olhos de três anos, a silhueta da minha mãe, o nariz de Arafat, o último tormento de Kadafi, observam-me, recortados de álbuns, folhetos e jornais, desintegrando uma antologia do presente. Posso ressuscitá-los — ou voltar a matá-los. Torturá-los. Cortar-lhes os narizes e as mãos. Arte de massacrar: colagem; colagem: carnificina.

Um homem pode ter um pescoço de girafa. Uma mulher pode vestir uma carapaça. Uma cereja cristalizada, uma ilha no meio do Atlântico, de súbito.

Colagem, reino divertido da anarquia. Instaura a desordem no que tomámos como a inalterabilidade do passado e sacode a nostalgia, baralhando as cartas. Corto e recorto com um gozo infantil. À minha volta, o mundo pula, muda e nada muda.