Álbum de fotografias da guerra colonial - Angola

A “construção” do álbum

O álbum de fotografias tiradas no decorrer da minha comissão em Angola (1972- 1974), objeto deste meu depoimento, foi “construído” quase uma década depois do meu regresso a Portugal. Durante esses anos, as minhas fotos (cerca de 600), amontoavam-se em envelopes, de forma desorganizada. No período que se seguia ao 25 de Abril, estava muito empenhado no Processo SAAL. O tempo da minha comissão em Angola era algo que queria esquecer.

Foi só no início dos anos 80, já na ressaca dos “sonhos de abril”, que senti necessidade de rever esses materiais e de reconstruir a memória desses tempos vividos numa guerra injusta, num território que infelizmente se confrontava nessa altura com outra guerra.

Ao fim de uma demorada seleção, organizei, com uma metodologia que se pretendia cronológica e temática, um álbum com cerca de 300 fotos que registavam diversas situações vividas no decorrer desses dois anos no Leste de Angola nas chamadas “terras do fim do mundo”.

Esse conjunto de fotografias são o testemunho de alguém que, como muitos milhares de jovens, viveu uma guerra colonial apesar de ter sempre estado contra a guerra. Como escreveu Charles Baudelaire: os álbuns fotográficos constituem  “arquivos da nossa memória”.

Relação com a fotografia

O meu primeiro contacto com a fotografia aconteceu aos 16 anos quando fiz as primeiras fotos tiradas com uma velha máquina alemã do meu pai (Vaigtlander). Em 1969 comprei a primeira máquina (Canon QL). Num tempo em que participava ativamente no movimento associativista (inicialmente em Ciências, depois no Técnico) as primeiras fotos que fiz, e que se encontram noutro álbum, referem-se a bairros de lata em Vila Franca de Xira e a operários no porto de Lisboa. Para além de fotografias de família e de viagens, sempre me interessou a realidade à minha volta em tempos de ditadura. Recordo fotos de manifestações no 5 de outubro e outras, assuntos proibidos e de risco, que conseguíamos registar com algum engenho. Fotografias que não tinham qualquer objetivo de publicação ou exposição, somente testemunhos pessoais. Considere-se que, a partir desse tempo, a minha relação com a fotografia, embora de um modo amador, tornou-se permanente. A velha Canon passou a acompanhar-me sempre.

A vida militar

Terminado o meu curso de engenharia civil (1970) aconteceu-me o que já esperava:  incorporação no serviço militar - Mafra, Tancos, Pontinha, Santa Margarida - e partida para Angola (em setembro de1972), numa companhia de construções na arma de engenharia (arma dita “não combatente”…), colocada no leste de Angola.

E lá vou eu, junto com mais 120 rapazes, num avião da FAP.  A minha Canon fez logo os primeiros registos ainda no aeroporto de Figo Maduro. Começava aí uma nova etapa na minha vida….

A realidade encontrada

Ao sobrevoarmos Luanda, impressionaram-me as enormes áreas de barracas dos musseques (que fotografei). Após aterrarmos, e já a caminho do quartel, atravessámos largas ruas numa cidade com enormes e modernos prédios e trânsito intenso. Apercebi-me logo que estava numa terra com enormes contrastes. Foi também estranho não serem visíveis na cidade sinais de guerra, a não ser as viaturas militares que passavam e grupos de soldados nas cervejarias.

A nossa companhia foi colocada no Luso (hoje Luena) a 1.300 Km de Luanda, leste de Angola numa área designada por “terras do fim do mundo”. Era uma zona mais ou menos plana com baixa densidade populacional. Nesses lugares já eram patentes sinais da guerra. Com as minhas funções de engenheiro civil, numa companhia de construções, acompanhei obras em diversos lugares, o que me permitiu conhecer um pouco do Leste de Angola, fazendo muitas fotos nos lugares por onde passei: Cazombo, Ninda, Gago Coutinho, Mavinga, Luso e outros. Fotos das terras, das gentes (especialmente crianças que corriam atrás de nós pedindo “foto”…), dos sinais da guerra. Marcou-me, apesar da pobreza que muitos negros e negras demonstravam, a sua enorme dignidade na postura, especialmente nos velhos. As fotos que fiz eram sempre com o seu consentimento. Entristecia-me que raramente pudesse satisfazer os seus pedidos para obtenção dessas fotografias. Numa zona em guerra causou-me estranheza não ter tido qualquer limitação militar ou policial à realização de fotografias. 

A história de algumas fotografias

Revendo as fotografias do álbum, algumas delas trouxeram-me à memória histórias que merecem  destaque especial:

- Foto em que estou com alguns catangueses – foi tirada por um alferes amigo e nela figuram três oficiais das forças catanguesas. A história destes homens é, incompreensivelmente, pouco conhecida e era merecedora de divulgação. Muito resumidamente: lutaram bravamente pela independência da região do Katanga (República Democrática do Congo), foram derrotados e fugiram para Angola. O governo português deu-lhes duas hipóteses: ou recebia-os na condição de passarem a combater o MPLA ao lado das forças portuguesas com comando próprio ou a PIDE entregava-os aos congoleses. Sem alternativa, aceitaram a primeira hipótese e foram decisivos na derrota do MPLA na zona leste. Após a independência de Angola, o MPLA propõe-lhes combater a UNITA ou enviá-los para o Congo. Optam pela primeira hipótese e provocam grandes estragos na UNITA. A continuação desta história, que desconheço, justificava um estudo.

- Foto da participação sul-africana na guerra colonial – quando estava numa obra no Kazombo observei helis e pilotos sul-africanos participando numa operação. Fardado, e com a minha Canon, fiz algumas fotos dos helis e dos pilotos. Sem qualquer problema…..Quando vim de férias a Portugal dei algumas a uma amiga que as levou para Paris destinadas a um publicação anti-colonial. No álbum aparece a de um heli sem identificação.

-Fotos tiradas ao longo de viagens de comboio – no álbum surgem cerca de 20 fotografias que mostram a extrema pobreza das populações das zonas do interior de Angola. Por todo o lado bandos de meninos, até nas zonas de mato, aproximavam-se do combóio pedindo “latinha”. Também em cidades como no Luso, viam-se miúdos nas ruas por todo o lado. Os seus olhares risonhos ou tristes faziam-nos pensar muito no futuro daquela terra.

E aconteceu o 25 de abril 

No dia 25 de abril encontrava-me em Ninda fazendo uma obra. A guerra, especialmente com o MPLA, terminou de imediato. No dia 1 de maio regressei à sede da companhia no Luso e aí integrei a comissão do MFA para a Zona Militar Leste. Na minha companhia, coordenei uma campanha de “consciencialização e politização” dirigida aos militares: jornais, cartazes, sessões de esclarecimento, ocupação do Rádio do Moxico.

Duas das últimas fotos do álbum, feitas em Nova Lisboa (agora Huambo), com alguns furriéis, já a caminho da “Metrópole”, ilustram  bem o nosso estado de espírito.

Nota final - No álbum, para além das fotos, existem também alguns desenhos. 

Destaco em especial um desenho que fiz de um pequeno pioneiro do MPLA cuja cópia está no final do álbum e cujo original ficou em Angola para a Organização dos Pioneiros.

Poema de António Cardoso

(natural de Luanda, publicado no jornal da companhia  de julho de 1974)

Quando será que este cacimbo nos abandona

E o Sol virá sorrir por cima do meu telhado?

… antigamente, nos meus tempos de menino, 

o meu telhado de zinco

tinha furos pequenos

por onde espreitava o Sol…

Antigamente…

Quando será que este céu pesado de chumbo nos abandona

E aquele azul antigo

Virá sorrir por cima do meu telhado

Luanda 1963

 

Projecto Álbuns de Guerra, parceria entre BUALA e Foto-Síntese