“Não podemos por o gênio de volta na lâmpada”: uma conversa com Chiké Frankie Edozien

No episódio de hoje, tenho o prazer de conversar com Chiké Frankie Edozien. Frankie é o Diretor da Universidade de Nova York em Acra. Ele é jornalista, e tem escrito sobre questões governamentais, de saúde, e culturais para vários veículos de imprensa. É o autor de ‘Lives of Great Men’, publicado em 2017 e recebeu o Prêmio Literário Lambda. O livro explora as vidas de homens e mulheres queer no continente africano e na diáspora. 


Vamos começar falando sobre o livro. Por que você decidiu escrever o livro naquela altura?

Inicialmente, o que eu queria fazer era recolher histórias sobre pessoas que eram como eu. E o motivo pelo qual eu comecei o projeto foi muito simples. No início da década de 2010, eu estava morando em Gana durante o verão. Todos os dias havia qualquer coisa de muito pejorativo sobre as pessoas LGBTQ na primeira página dos jornais. Como jornalista, eu via que aquilo era sempre muito unilateral. Fiquei perplexo, e me perguntava porquê aquelas histórias anti-LGBTQ estavam sendo publicadas naquela época. Obviamente, estas coisas não acontecem no vácuo, então tive que olhar para o que estava acontecendo ao nosso redor e que deflagrava aquela situação. Isso estava acontecendo em simultâneo com as repercussões da legislação homofóbica conhecida como “kill the gays bill”, no Uganda. Então o que uma pessoa via, ou pelo menos o que notei nesses países, incluindo a Nigéria, onde eu passo muito tempo e de onde eu venho, é que havia uma forte repercussão sobre o que se estava a passar no Uganda. Mas o que realmente me impulsionou foi que o ex-presidente nigeriano, Goodluck Jonathan, assinou um dos mais draconianos projetos de lei anti-LGBTQ no continente, e o fez na véspera de sua reeleição, que ele acabou perdendo.

É claro, este caso ganhou visibilidade global, e todos os média internacionais estavam a escrever sobre ele. Mas, como jornalista, uma das coisas que me impressionava nessas narrativas era a escassez de vozes das pessoas diretamente afetadas. Claro, havia um ou dois ativistas que falavam com os jornalistas, mas as pessoas comuns, as pessoas do dia-a-dia, que são LGBTQ ou que estão a questionar a sua sexualidade, e que agora corriam o risco de serem criminalizadas apenas por existirem, essas vozes estavam ausentes. Então eu comecei a pensar que se essas pessoas não conseguiam encontrar ninguém para conversar, e se este seria o registo das nossas vidas naquele momento histórico, eu precisaria fazer um mergulho profundo nessas vidas, nessas histórias. À medida que o projeto foi avançando, ficou claro para mim que a melhor coisa que eu podia fazer era escrever um livro.

E porque decidiu escrever uma memória, e não um livro jornalístico, ou outras formas de não-ficção?

Quando estava a completar a primeira versão do texto, o meu agente literário disse: ‘isso é interessante, mas talvez você queira falar um pouco mais sobre você, se concentrar na sua própria jornada, nas suas próprias memórias’. E eu também pedi conselhos a um amigo meu sobre como publicar livros, e ele me disse: ‘tens de matar o jornalista em ti para este projeto. Escreva a sua própria história, e depois vamos ver o que acontece.’

Foi assim que ‘Lives of Great Men’ surgiu. É um livro de memórias, mas também traz um tom investigativo, porque eu conversei com muitas pessoas, homens e mulheres que me deram o privilégio de me contar as suas histórias, e de uma maneira honesta. E ninguém pode dizer, daqui para frente, que nós não existimos nesses países, ou que não podem nos encontrar para conversar, porque temos evidência do contrário.

Algo que me interessou no livro foi o foco no amor, em relações amorosas entre pessoas queer. Porque decidiu escrever sobre o amor?

Porque eu acredito que o amor está no centro da vida de todos nós. Mas quando se trata de pessoas LGBTQ, muitas vezes somos vistos através do prisma do sexo, e esta não é a imagem completa das nossas vidas. Então, se eu queria suceder em conseguir realmente mostrar como nós vivemos as nossas vidas, eu tinha que fazê-lo de uma forma que fosse completa. Muito na nossa vida, nas nossas ações, muitas das escolhas que nós fazemos, são muitas vezes guiadas pelas nossas emoções, pela busca do amor, de uma conexão. E nem sempre é o amor de um casal.

Pessoas LGBTQ ao redor do mundo, não apenas em África, são especialistas em encontrar e escolher uma família: quando não recebemos amor e afeto das nossas famílias de sangue, há sempre outras pessoas que nos podem dá-los. Não falamos muito sobre isso em voz alta, mas é assim que vivemos. E as pessoas que nos ridicularizam parecem estar sempre obcecadas pela nossa vida sexual. Mas as nossas vidas sexuais são apenas as nossas vidas sexuais, não são as nossas vidas inteiras. É algo que nós fazemos, não é aquilo que somos. Então, escrever sobre o amor não era um objetivo consciente a princípio, mas ao examinar a minha vida e a vida das pessoas LGBTQ ao meu redor, o amor está sempre no centro. Este tema simplesmente surgiu, organicamente.

Outro assunto que atravessa todo o livro é a centralidade do casamento na sociedade Nigeriana, o que muitas vezes pressiona pessoas queer a entrarem em casamentos heterossexuais. Você diz que no passado julgava estas escolhas negativamente, mas eventualmente mudou de opinião. O que o levou a esta mudança de atitude?

Eu acho que quando somos jovens, tendemos a olhar para a vida através da nossa própria experiência vivida. E à medida que envelhecemos, talvez abramos espaço para uma perspetiva mais ampla. Quando eu estava ainda construindo a minha carreira, eu morava e trabalhava em Nova York. Quando eu conhecia outro africano LGBTQ que estivesse fazendo o mesmo que eu, mas estivesse no armário, eu o desprezava um pouco. Eu fazia concessões para os meus amigos que viviam na Nigéria, porque eu via muitas pessoas LGBTQ se casando por questões de carreira. Eu via a pressão que as famílias exercem sobre os filhos para que se casem e tenham filhos. Então, quando você pensa em alguém que está tentando ter uma carreira sólida, mas tem promoções negadas por ser solteiro, em alguém que é pressionado pelos pais, eu conseguia entender por que algumas pessoas sucumbiam e acabavam se casando. Eu não conseguia entender as pessoas na diáspora fazendo o mesmo. Eu criticava muito as pessoas LGBTQ que estavam na diáspora, que tinham feito carreiras para si próprias, e que depois voltavam para a Nigéria e entravam de volta no armário.

À medida que envelheci, eu fui tendo mais compaixão, porque senti que precisava de ver o quadro mais amplo, e não podia ser tão crítico em relação às pessoas que faziam certas escolhas para poder sobreviver. Se você vai viver na nossa sociedade e vai tentar fazer uma diferença por si mesmo, é muito difícil ser solteiro, e dizer que seu parceiro na vida é uma pessoa do mesmo sexo. Em nosso continente, não é fácil. Existem lugares onde isso não importa, obviamente, é um continente enorme. Mas em muitos países, é muito difícil. Então foi assim que me tornei menos crítico e mais compreensivo, à medida que envelheci. 

Chiké Frankie EdozienChiké Frankie Edozien

Vamos falar sobre mulheres agora. Embora não seja esse o foco do livro, você escreve sobre algumas mulheres…

Eu não escrevi muito sobre mulheres lésbicas simplesmente porque conheço muito poucas. E uma vez que o foco do livro mudou para ser sobre as minhas memórias, eu tinha que escrever sobre as pessoas que estavam minha vida. Portanto, eu apenas escrevi sobre as poucas mulheres LGBTQ que eu conhecia. E eu também reconheci que esse livro não podia fazer tudo.

As mulheres têm suas próprias histórias, e devem contá-las por si próprias. Desde que meu livro foi publicado, temos visto outros livros sobre mulheres queer publicadas na África Ocidental. Há um livro de memórias chamado ‘Embracing My Shadow’, e uma antologia chamada ‘She Calls Me Woman’, que são sobre histórias de mulheres LGBTQ na Nigéria. Ninguém que seja objetivo pode hoje dizer que isso não existe no nosso país, porque temos todas essas narrativas emergindo: histórias de homens e de mulheres, de pessoas mais velhas e pessoas mais jovens, de pessoas conservadoras e pessoas liberais, de pessoas muito cristãs e pessoas muito islâmicas. Essas histórias estão aí, e estão encontrando caminhos para serem contadas.

É bom saber. Parece que as coisas estão a mudar. E ao pensar em mudanças ao longo do tempo, como é que o livro tem sido recebido na Nigéria, nos últimos anos?

O livro teve um bom desempenho na Nigéria. Acho que teria se saído melhor se houvesse editores que fossem ousados ​​o suficiente para fazer uma recensão baseada no mérito do livro, ao invés de terem medo do conteúdo. Houve algumas recensões publicadas on-line, mas as principais publicações impressas ignoraram o livro. Eu fiz algumas entrevistas no rádio. Bem como leituras públicas do livro na Nigéria, e as pessoas apareceram por curiosidade. Ainda recebo cartas de leitores. E o que é mais comovente, mas também o mais comum, são as pessoas dizendo que pela primeira vez se veem representadas na nossa literatura, e que se veem como pessoas completas, não como caricaturas. Então, no geral, eu diria que o livro superou as minhas expectativas na Nigéria. Me sinto orgulhoso pela forma como os nigerianos o abraçaram.

Falemos um pouco mais sobre a questão da mudança. Parece que tem havido um interesse cada vez maior por narrativas e histórias queer. Considera que isso indica que há mais oportunidades para que essas histórias sejam publicadas?

Acho que isso indica que as pessoas estão dizendo: ‘as nossas histórias são as nossas histórias, e não temos que permanecer calados’. Não podemos por o gênio de volta na lâmpada. Claro que há um lado comercial nisso, e nem todo livro vai vender um imenso número de cópias. Mas os livros estarão lá, e isso é importante porque essa é realmente a história das nossas vidas, registada para o futuro. Não importa os obstáculos que as editoras tradicionais coloquem no nosso caminho, porque elas sempre vão dizer que esses livros não vendem. Mas eu tive uma editora na Nigéria que não pensava assim. E ela achou que este era um livro importante para se publicar. Portanto, claro que algumas dessas considerações são, sim, comerciais. Mas, ao mesmo tempo, não acho que um livro precise ser super bem-sucedido comercialmente para produzir uma mudança. Temos que acreditar que as nossas histórias são válidas, e não necessariamente naquilo que os profissionais do mercado editorial nos dizem. E quando uma porta se fecha, você continua até encontrar a próxima.

Falando em conseguir publicar as nossas histórias, para concluir eu quero deixar uma mensagem de encorajamento para jovens queer, em África e não só, que estejam a lutar para encontrar uma voz, para publicar suas histórias. O que lhes diria?

Eu direi que é preciso se esforçar, trabalhar. Escrever não é fácil. Produzir um bom livro é difícil. Se eu fosse qualificado para dar conselhos a alguém sobre isso, eu diria: apenas faça o trabalho que tem que ser feito. Não desanime, porque se você trabalhar e tiver orgulho do que fez, o texto falará por si e encontrará o local certo para ser publicado. As pessoas podem pensar que as histórias que queremos contar não são comercialmente viáveis. Não é verdade. Todas as nossas histórias são válidas, cada uma delas, e temos que trabalhar para contá-las da maneira adequada.

Obrigado por se juntar a nós, Frankie. Foi uma ótima conversa.

Obrigado.

por Caio Simões de Araújo
Corpo | 23 Junho 2021 | chiké Frankie edozien, jornalismo, LGBTQ, Nigéria