Abram as janelas, já é tarde

Tem algo com as persianas que faz com que elas sempre emperrem. Mais dia menos dia uma das lâminas de madeira vai prender no cordão e, quando todas tentarem descer juntas escamoteando a luz, a peneira vai ficar torta capenga e incapaz de tapar o sol ou a idade, muito menos a poeira. As janelas da minha infância eram de madeira, pesadas, abriam para fora em duas folhas, não sabiam o que é uma analogia e mesmo assim também emperravam. Para vencer o vento, no entanto, contavam com um gancho de metal preso à parede do lado de fora. Todas elas, as persianas, tinham a mesma função de emoldurar o fora e fingir que tudo que era para ser visto, estava visto. Mentira da arquitetura.

Um dia a filosofia devia se debruçar sobre as janelas, literalmente, afinal foram elas que deram às mulheres a ilusão de estarem a ver o mundo. Por cerca de dois mil anos, principalmente depois da invenção da burguesia, uma janela foi praticamente tudo o que uma mulher pôde ter na sua vida de gaiola dourada, como um quadro que enfeita a sala, e não é à toa que algumas janelas sirvam exclusivamente de decoração, grudadas na parede sem nenhuma abertura para olhar. Toda ilusão é decorativa.

Faz cinco anos que participo de um grupo de estudos de filosofia com um professor de São Paulo. Comecei na janela on line da pandemia, já aqui em Portugal, tentando entender qual território eu poderia (e gostaria de) habitar. Começamos estudando Nietzsche, depois Espinosa, sempre Deleuze e Guattari. Mil Platôs virou meu livro de cabeceira, protetor de sonhos e linhas de fuga, além de segurança contra pesadelos de um corpo sem órgãos que adoece. Ao mesmo tempo havia acabado de ler, como uma estudante de vestibular, os dois volumes de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, a melhor e pior experiência da minha vida. Estava tudo lá, e era duro ver que estava tudo lá, tão claro, evidente, inegável: nossas janelas não são as mesmas janelas dos homens, se é que temos mesmo janelas, suspeito que sejam venezianas emperradas desde que decidiram estruturar o patriarcado para manter o capital nas mãos dos homens. 

Helena AlmeidaHelena Almeida

Em uma das aulas, falávamos sobre o colonialismo e levantei a mãozinha do zoom para citar a Gerda Lerner, autora de um dos livros mais seminais sobre o assunto, A criação do patriarcado. Desculpe, professor, é que a frase dela é mais do que necessária: “Não teria havido escravidão nem imperialismo se o homem não houvesse, antes, aprendido a dominar a reprodução e o corpo feminino.” Antes de refletir sobre como essa experiência de laboratório da humanidade foi cruelmente importante, no entanto, meu professor pediu para eu repetir o nome da autora. Disse que nunca tinha ouvido falar dela. Depois de ouvir a frase, ele deu uma risadinha que interpretei como falta de jeito, a mesma que também notei quando falei da Hélène Cixous, amiga de Derrida e sobre quem o mesmo chegou a dizer que existia, no mundo, um “idioma Cixous”. Também foi ela quem criou, na Universidade Paris 8, o primeiro doutorado em Estudos Femininistas da Europa, mas isso nem tive vontade de falar. Esta falta de jeito do meu professor se repetiria muitas vezes depois nas aulas, onde mais de 80% dos autores citados são… homens. É claro. Como eu não tinha visto isso da minha janela?

Sócrates foi ensinado por uma mulher, Aspasia, mas a História a transformou num mito. A História da Arte, escrita por homens, nos fez acreditar que as mulheres não eram grandes artistas, sem lembrar que a elas era vedado o acesso às Academias e que mesmo assim muitas produziram obras incríveis assinando apenas com as suas iniciais ou com os nomes dos maridos. Ou alguém ouviu falar de Anguissola, Fontana, Sirani? Isso sem contar é claro que, nas Ciências, para cada homem importante há uma ou duas mulheres colocadas na sombra. 

Quando era criança e ainda acreditava em janelas, cheguei a escutar do meu pai que as mulheres não são boas em matemática. Eu ainda não tinha como rebater o argumento, apesar de achar incoerente o fato de que eu mesma tirava notas boas nesta matéria. Nenhuma das mulheres da minha família fez faculdade, antes de mim. Nem minhas avós, nem minha mãe, tampouco irmã mais velha, tias próximas ou cunhada. Ninguém parecia achar isso estranho, mesmo numa família privilegiada de imigrantes que conseguiram se estabelecer bem no país. Até que um dia, já na minha vida adulta, minha mãe me disse que o sonho dela era ter entrado para uma universidade. Lembro que me senti um pouco mal por, de certa forma, estar roubando o sonho dela, vivendo o que poderia ter sido o seu passado, um passado diferente. Também ouvi que o seu casamento havia sido um infanticídio e isso foi parar num livro. Recebi uma reprimenda e não foi por causa do boletim de matemática. Ouvi que minha mãe nunca tinha falado isso. O fato de que ela havia falado pra mim, e várias vezes, parecia não fazer a menor diferença, era como se meus ouvidos não existissem.

Mas eis que nossos ouvidos existem, nossos olhos e bocas também, e quando o nosso corpo fala, é com carne e sangue e voz de mundo. Ele grita nas ruas, ele fala alto onde pode e também onde não pode porque burlar regras é o que aprendemos de melhor desde cedo, identificando hipocrisias com facilidade, afinal são aquelas insistentes poeiras que entram pela janela. Estudei em uma escola católica recheada de freiras amarguradas e, quando exigiram a frequência em missa e assinatura do padre para comprovar (o que Kafka adoraria), minha mãe disse, me entregando a bicicleta, para pegar a primeira assinatura e falsificar as outras durante o resto do ano. Foi um excelente exercício de caligrafia.

Somos nós, mulheres, que escrevemos certo por linhas tortas. Ninguém segura um conhecimento desses, dentro e fora do corpo. Também somos nós que, como lembra a filósofa Silvia Federici, carregamos o PIB do país nas costas com todo o trabalho não remunerado da reprodução e do cuidado, provendo mão de obra barata ao capitalismo. Se as mulheres pararem, o mundo também para. É por isso que ou o futuro é feminista, ou não há futuro. 

Por isso, rapazes, não dá mais para dizer que nunca ouviram falar e dar uma risadinha sem jeito, ou continuar dizendo bobagem nas revistas e na internet como fez o outro, o filho de músico, apenas mais um homem incapaz de se implicar como motor de mudança, morto de medo de perder seu palco e seus privilégios enquanto as mulheres continuam morrendo como moscas em feminicídios.

As referências estão aí a um clique do google, há ótimos conteúdos sendo produzidos na internet e nunca vi tantos livros excelentes sobre feminismo sendo publicados ao mesmo tempo. Está na hora de mudar a ementa dos cursos, os tópicos das conversas, as piadas do whatsapp. Como dizem os portugueses, não há volta a dar.

Em 2026 abram as janelas, deixem entrar ar fresco e façam seus deveres de casa. Já é tarde.

Boas leituras.

por Carla Mühlhaus
Corpo | 14 Dezembro 2025 | feminismo