Um mundo de ideias, conversa com o escritor Chinua Achebe

Chinua Achebe (Ogidi 1930 – Boston, 2013) fala com Bill Moyers, em 1988, sobre os desafios de forjar a identidade cultural numa África pós-colonial. 

[TRANSCRIÇÃO]

BILL MOYERS: [para a câmara] Boa noite. O meu nome é Bill Moyers. Uma em cada 8 pessoas no mundo vive hoje em África. E a população deste continente está a crescer mais rápido do que em qualquer outro lugar na terra; o triplo do ritmo da América do Norte, dez vezes mais rápido do que na Europa. Só isso deveria ser razão suficiente para prestar atenção a África, para escutar as vozes africanas. Mas há outra. Oiçam o contador de histórias, como o meu convidado desta noite nos diz, e ouvirão a música da história, tecerão o tecido da memória. E talvez também agitem o trono do Imperador. Esta noite: uma conversa com Chinua Achebe.

[voz off] Na sua aldeia na Nigéria, Chinua Achebe é presidente da câmara municipal, um trabalho que lhe traz mais dores de cabeça do que honras. Mas honras tem, de qualquer forma; onze graus honorários de universidades de todo o mundo, e prémios em abundância, incluindo o Commonwealth Poetry Prize. Achebe escreveu o seu primeiro romance, Quando tudo se desmorona (Things Fall Apart), aos 26 anos. Vendeu mais de três milhões de cópias e foi traduzido para mais de 30 línguas. O seu último romance intitula-se Anthills of the Savannah. Também escreveu muitos livros infantis e ensaios políticos. Pouco antes do seu regresso a África, falei com Chinua Achebe na Universidade de Massachusetts em Amherst, onde tem estado a leccionar no último ano.

[entrevistando] Há um provérbio na sua tradição que diz “Onde quer que alguma coisa se levante, outra coisa levantar-se-á ao seu lado.” Como o interpreta? Wherever something stands, something else will stand beside it.

CHINUA ACHEBE: Quer dizer que não há um único caminho para as coisas. O povo que fez esse provérbio, o povo Ibo, insiste muito nisso; de que não há absolutos, nem mesmo em relação a coisas boas. São contra excessos. O seu mundo é um mundo de dualidades. É bom ser corajoso, dizem, mas também é bom lembrar que o cobarde sobrevive ao homem corajoso. É isto que quer dizer.

BILL MOYERS: Então, se tiver o seu Deus não faz mal porque também deve haver outro Deus.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Se há um Deus, óptimo, haverá outros, também.

BILL MOYERS: Duas culturas.

CHINUA ACHEBE: Se existir um ponto de vista, óptimo. Existirá um segundo ponto de vista.

Chinua Achebe Chinua Achebe

BILL MOYERS: Isto teve algum significado especial para si que vive como vive, em dois mundos, entre dois mundos?

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Acho que é um dos temas centrais da minha vida e do meu trabalho.

BILL MOYERS: -certamente da sua literatura.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. E é aqui que creio que se desenvolveu o primeiro conflito com aqueles que vieram melhorar-nos – os missionários – porque, sabe, eles vieram com uma ideia de um caminho, uma verdade, uma vida. Está a ver, eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida. E isto é algo que o meu povo, tradicionalmente, considera tão extremo, tão fanático, que recuariam perante isso. 

BILL MOYERS: Não foi essa uma das razões pelas quais os missionários, os administradores coloniais, os Ocidentais, frequentemente não penetraram na realidade das sociedades africanas porque conseguia abraçar - os africanos conseguiam abraçar o Deus cristão enquanto ainda se mantinham ligados a um sentido de tradição, aos deuses do velho, de certa forma? Está correcto?

CHINUA ACHEBE: Sim, e acho que não era necessário ter atirado borda fora tanto do que foi atirado borda fora em nome da Cristandade ou em nome da civilização. Não era necessário. Creio que muito dos danos, não apenas para a cultura material mas para a mente das pessoas – que não fizemos nada, que os nossos pensamentos eram maldosos, que as nossas religiões não eram realmente religiões; era ou o paganismo ou o hedionismo. E então isto criou um problema nas mentes das pessoas.

BILL MOYERS: Uma vez disse que se fores africano, o mundo está virado de pernas para o ar. Explique-me isso.

CHINUA ACHEBE: Olho para o mundo e o espaço que me é permitido na forma como o mundo está organizado é inadequado – para onde quer que olhe, para qualquer direcção que olhe – e não quero ficar nesse espaço porque é sufocante. O racismo, para começar, mesmo no nosso próprio continente – todo o tipo de maus-tratos. O mais recente, por exemplo, é o despejo em África de resíduos tóxicos do mundo industrializado.

BILL MOYERS: Muitas pessoas não estão conscientes deste -

CHINUA ACHEBE: Nem sequer estão conscientes -

BILL MOYERS: - fenómeno recentemente noticiado de que muitas companhias africanas e ocidentais estão a despejar os seus resíduos tóxicos em países africanos, muitas vezes subornando governos para que isto aconteça.

CHINUA ACHEBE: É isso mesmo. Sim, sim, fazem isso também, sim. Então, é isso que quero dizer quando digo que o mundo está de pernas para o ar. O mundo não se encontra bem organizado. Não é bem organizado, e por isso não há maneira de estarmos felizes com isto – não há maneira, nem como escritores. Por vezes os nossos colegas no Ocidente sugerem que talvez sejamos demasiado activistas, que somos muito sérios. “Porque é que não relaxam”, sabe, “Isto não é realmente do foro da poesia.” O ponto é este. Um poeta que se torna – que vê a poesia à luz do que sugiro, provavelmente irá chocar de frente com o Imperador, com o Imperador. E ao passo que um poeta no Ocidente pode dizer “Oh, não, não temos nada que ver com política; não temos nada que ver com história; não temos nada que ver com nada, excepto com aquilo que se encontra na nossa própria cabeça”, bom, o Imperador ficaria muito, muito satisfeito. 

Ver aqui a entrevista. 

BILL MOYERS: Então era isso que queria dizer quando disse um dia que contar histórias é uma ameaça.

CHINUA ACHEBE: É uma ameaça, sim.

BILL MOYERS: Uma ameaça a qualquer pessoa no poder.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Porque um contador de histórias tem uma agenda diferente da do Imperador.

BILL MOYERS: Já conta certamente com a sua quota-parte de ofensas ao Imperador. Na verdade, desenha uma imagem devastadora do governo em África; ministros vivendo em mansões caríssimas enquanto os camponeses e os operários vivem em barracas. Falou sobre a corrupção da democracia, o subúrbio, a vulgaridade, a violência, a brutalidade, as eleições viciadas. Não fica preocupado com o facto de que, com estes romances que estão a ganhar um público cada vez maior no Ocidente, esteja a reforçar os estereótipos que muitos ocidentais têm em relação ao seu povo?

CHINUA ACHEBE: Bom, consigo reconhecer esse perigo, mas isso não me preocupa realmente porque não estou principalmente preocupado com esses. Estou preocupado com as pessoas sobre cuja história estou a contar; e se sou um pouco duro, essa dureza, penso, vem da preocupação. Não é que odeie o meu povo, ou até que odeie aqueles governantes. Nem os odeio a eles. Mas, não sei, quando se olha para as possibilidades, as oportunidades que desperdiçámos num país como a Nigéria, sabe, é realmente tão doloroso porque poderia ser tão diferente. Poderia ter sido dada assistência a… – não apenas aos pobres na Nigéria mas mesmo fora dela, porque a providência tem sido tão prodigiosa nas suas dádivas a um país como a Nigéria. Por isso, quando se olha para essa possibilidade e para o que foi alcançado, sentimo-nos realmente muito, muito amargos.

BILL MOYERS: É bastante duro quando escreve, “Entregamo-nos tão completamente ao altruísmo que magoamos não apenas aqueles à nossa volta, mas a nós mesmos, ainda mais profundamente. Demos assumir um embotimento da imaginação e um sentido de perigo de proporções verdadeiramente psiquiátricas.” É um juízo duro sobre si mesmo. 

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Há exemplos, imensos exemplos de pessoas que desviam a riqueza das suas nações para a Europa, para bancos suíços. Há exemplos de mais oficiais que cobram dinheiro para que resíduos tóxicos possam ser despejados nos seus territórios. Este é o tipo de coisa de que estou a falar, e realmente não se pode – é impossível pensar e contemplar esse tipo de situação sem ficar muito, muito amargo.

BILL MOYERS: Foi um grande risco que a Nigéria e outras novas nações africanas correram quando, depois do colonialismo, abraçaram a democracia, porque a democracia muitas vezes oferece a possibilidade de corrupção infinita – os líderes a prometer benefícios ao eleitorado se regressarem novamente ao poder. É necessária muita disciplina, edificação institucional e tradição para tornar uma democracia incorruptível; e, claro, nenhuma democracia é incorruptível.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Bom, acho que tem razão. E creio que vai até para lá disso, porque quando as pessoas dizem, por exemplo, que falhámos na prática da democracia em África, por exemplo, assumem que nos foi ensinada a democracia durante o regime colonial, e que nós de alguma forma traímos a nossa educação. Não é esse o caso. Não é de todo verdade. O próprio regime colonial não era um regime democrático. Era uma forma extrema de totalitarismo. O governador colonial não era responsável perante ninguém no território. Poderia ser responsável perante um ministro em Paris ou em Londres, mas não era certamente responsável perante as pessoas no terreno. E por isso não havia nenhum modelo de democracia. Não estávamos a praticar o modelo de Westminster na Nigéria sob o regime colonial. Estávamos a pôr em prática a ditadura colonial. E por isso, o povo colonial realmente não tinha experiência, até mesmo desta suposta democracia que era suposto terem herdado. Não herdaram nada desse tipo. Então era mais do que uma questão das pessoas não estarem à altura das expectativas. Elas realmente não estavam preparadas. Não estavam treinadas para isso.

BILL MOYERS: Bom, uma admissão tão cândida, novamente, pode ser instrumentalizada pelos inimigos da África negra. Porque tantos ocidentais defendem que “Bom, é verdade, o Sr. Achebe tem razão”, a Nigéria não estava pronta para a democracia, e porque não consegue lidar com a democracia temos de ficar do lado da África do Sul porque eles sabem como manter a ordem, manter a estabilidade, evitar que comunistas cheguem ao poder, ao passo que os governos de África e outros países negros ainda não provaram nada disso.

CHINUA ACHEBE: Bom, isso é, obviamente, totalmente falso. A questão do estar pronto. Gostaria de pegar nisso porque o que estou a dizer, na verdade, é que não se pode ficar pronto sob o regime colonial, porque o colonial – não houve tentativa, não houve caminho, não houve – não fazia parte do programa colonial incutir a democracia. Não há forma de incutir a democracia através da ditadura, entende? Por isso, o sistema colonial, em si mesmo, era a própria antítese da democracia. Então, independentemente de quanto tempo se ficasse ali, não se aprenderia democracia. Veja, havia democracia em muitas partes de África antes do regime colonial chegar. Então dizer “Vamos continuar a dominá-los até aprenderem a democracia” – é verdadeiramente fraudulento.

BILL MOYERS: Bom, foi isso que disseram na África do Sul.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. E claro, dizer que os sul-africanos estão a fazê-lo bem e vamos apoiá-los, porque são os únicos a entender a democracia, resume-se a não aceitar que os africanos são pessoas. Porque se aceitarmos que os africanos são pessoas, não podemos de forma nenhuma dizer que um punhado de gente branca, uma pequena minoria de gente branca, deveria impor a sua vontade ao ponto de retirar até direitos fundamentais de auto-expressão. Todos os direitos que conhecemos na dita democracia são negados, positivamente negados neste sistema. Mas digo que é análogo a, talvez, análogo ao regime nazi na Alemanha. Agora, alguém dizer “esta é a coisa certa para África”, claro, mostra que essa pessoa não reconhece uma humanidade plena aos africanos. E sabemos que existem pessoas assim, mas não vamos realmente dar-lhes ouvidos e, em última análise, não serão elas a determinar o que acontece em África. 

BILL MOYERS: Mencionou África antes dos poderes coloniais chegarem. Há a frase de abertura do seu livro infantil, The Drum, que começa assim: “No princípio, quando o mundo era jovem…” O artista em si alguma vez desejou poder começar toda a história do princípio, poder voltra atrás?

CHINUA ACHEBE: Sim, sim. Bom, essa é toda a força, creio, das histórias, e sobretudo das histórias infantis. Fico contente por ter levantado essa questão porque precisamos de aprender, todos nós, aprender a tornarmo-nos como crianças novamente de vez em quando. Tornamo-nos tão rígidos. Somos sobrecarregados por tanta coisa, tanto conhecimento, tanta possessão, tantos interesses especiais, que perdemos a capacidade, a flexibilidade, das crianças. As crianças conseguem voar, e tudo é possível para uma criança. Isto é algo que as histórias de crianças podem fazer por nós, e isto é algo que creio que devemos aprender novamente. Deveríamos manter-nos jovens dessa forma em particular.

BILL MOYERS: Durante um tempo da sua vida deixou de escrever romances e escreveu para crianças. Porquê?

CHINUA ACHEBE: Bom, porque achei que era muito importante. É muito, muito importante. Tive umas experiências muito interessantes e muito estranhas, também, ao educar os meus próprios filhos, que verdadeiramente confirmaram os meus medos em relação ao perigo, ao sarilho, que estávamos a passar por não contar histórias às nossas crianças, entende? Os nossos pais fizeram-no. Os nossos avós fizeram-no. Mas a partir do momento em que a escrita chegou, nós mais ou menos nos esquecemos dessa responsabilidade de contar histórias às nossas crianças.

BILL MOYERS: Então o que aconteceu? O que mudou?

CHINUA ACHEBE: Então o que mudou foi que todo o tipo de histórias más, todo o tipo de lixo, mais uma vez – isto é como os resíduos tóxicos novamente, compreende, a serem despejados – e reparei que a minha filha – nós fomos pais muito cedo por isso não tínhamos realmente experiência e costumávamos ir ao supermercado em Lagos e pegar numa história brilhante, simpática, grande. Nós próprios nunca lemos histórias infantis, por isso não sabíamos o que continham. Mas depois descobrimos, a minha mulher e eu, que a nossa filha estava a começar a ter umas ideias muito estranhas, sabe. Foi nesse momento que começamos a olhar com cuidado para aquilo que andava a ler, e realmente havia muito veneno. Havia ali muito veneno, histórias cheias de racismo, cheias de ideias sobre África, mais uma vez, como o outro lugar, como as costas do mundo. E era isto que estávamos a sentir.

BILL MOYERS: Por isso decidiram -

CHINUA ACHEBE: Por isso decidimos, eu decidi na altura – bom, não decidi na altura escrever, mas percebi na altura a importância das histórias infantis e soube que estávamos a falhar como pais por não reunirmos as crianças depois do jantar como os nossos antepassados faziam para lhes contarem histórias, nunca tinha escrito nenhuma antes, não sabia como iria funcionar, mas estava pronto para tentar, e isso colocou-me nessa direcção.

BILL MOYERS: O poder da reminiscência é muito importante para si.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim.

BILL MOYERS: Porquê?

CHINUA ACHEBE: Bom, se olhar para o mundo em termos de contar histórias, tem o guerreiro, tem o baterista; o homem que abala as pessoas antes de todos, o homem que agita as pessoas, chamo-lhe o baterista. E depois tem o guerreiro, que avança, sabe, e luta. Mas também tem o contador de histórias, que se chega à frente para recontar o acontecimento. E este é aquele que sobrevive, que sobrevive a todos os outros. É o contador de histórias, na verdade, que nos torna no que somos, que cria história.

BILL MOYERS: A memória. A continuidade das gerações.

CHINUA ACHEBE: É isso. A memória que os sobreviventes devem ter, de outra forma a sua sobrevivência não teria significado.

BILL MOYERS: O reconhecimento de que outros sofreram e morreram-

CHINUA ACHEBE: -sofreram aqui, e foram para a batalha aqui. Isso é muito, muito importante. E esse é o significado de Anthills of the Savanna, veja. É esta memória, a memória que é necessária se pensarmos que sobreviver é mais do que apenas uma coisa técnica.

BILL MOYERS: O que é? O formigueiro sobrevive de forma a que no próximo ano -

CHINUA ACHEBE: Para que a nova erva tenha memória da devastação da savana.

BILL MOYERS: Do fogo.

CHINUA ACHEBE: Sim, do fogo que aconteceu na savana na anterior estação da seca.

BILL MOYERS: Então o formigueiro transporta a memória para a nova erva, para a nova geração -

CHINUA ACHEBE: Sim, sim -

BILL MOYERS: E tece em conjunto uma memória colectiva.

CHINUA ACHEBE: Sim.

BILL MOYERS: Então o que está a dizer é que cada sobrevivente tem a obrigação de se lembrar.

CHINUA ACHEBE: Sim, sim.

BILL MOYERS: Como é aquele velho ditado judeu? Que na recordação está o segredo da redenção.

CHINUA ACHEBE: Diria que está certíssimo, sim.

BILL MOYERS: É por isso que escreve?

CHINUA ACHEBE: Bom, não diria isso. Quer dizer, escrevo em parte porque gosto de o fazer. Mas também, creio, porque sabia que alguém tinha de contar a minha história. Há mesmo – para mim, sabe, estávamos num período tão diferente de tudo o que tinha acontecido, que tudo o que estava presente para nós tinha de ser visto duas vezes. Passei pela universidade, a primeira universidade da Nigéria, fomos e fizemos um curso em literatura inglesa e ensinaram-nos o mesmo tipo de literatura que ensinam aos britânicos nas suas próprias universidades. Recomendaram-nos livros para ler. Mas comecei a olhar para estes livros sob uma luz diferente. Compreendi subitamente que era, na verdade, um dos selvagens. Quando era mais novo li estes livros de aventuras sobre o bom homem branco, sabe, a aventurar-se na selva, dos perigos e dos selvagens que estavam atrás dele, e colocava-me instintivamente do lado do homem branco, do bom homem branco. É isto que a ficção pode fazer. Posso colocá-lo do lado errado se não for desenvolvido o suficiente. Na universidade vi subitamente que estes livros tinham de ser lidos sob uma luz diferente. Ler O Coração das Trevas, por exemplo, que era um livro muito, muito apreciado, e ainda é muito apreciado e, quer dizer, não era -

BILL MOYERS: É considerado um clássico, no Ocidente.

CHINUA ACHEBE: - e compreendi que era um daqueles selvagens a saltar para cima e para baixo na praia. Não estava no barco a vapor de Marlow, compreende, como pensava antes. E a partir do momento que esse tipo de iluminação chega, chega a compreensão de que é preciso escrever uma história diferente, que alguém precisa de escrever uma história diferente. E como eu tinha, de qualquer dos modos, essa inclinação, porque não eu? E por isso, o que estou a dizer é que havia uma certa medida de seriedade para além do prazer, apenas o prazer de criar histórias, de contar histórias – mas era uma intenção séria. E por isso quando alguém se levanta e diz “Oh, mas a literatura ou a poesia não deviam ter nada que ver com a sociedade ou com coisas pesadas como a política”, simplesmente não consigo entender.

BILL MOYERS: Bom, fazem isso a toda a hora. Desenham a nossa imagem do mundo, certa ou errada, verdadeiro ou falso. Disse um dia que os africanos esperam que o Ocidente, e a América em particular, irão ouvir. Se ouvirmos, o que iremos ouvir? O que tem África a dizer ao resto do mundo?

CHINUA ACHEBE: Bem, antes de mais, somos pessoas. Não somos seres engraçados. Não somos seres engraçados, sabe? Se pegar em qualquer jornal aqui, provavelmente não veria África a ser mencionada de todo durante meses. Depois talvez um dia por ano haja uma estranha, alguma história estranha – tem de ser aquele tipo de história que nos habituamos a associar a África. Eu diria simplesmente: ”Olhem para África enquanto um continente de pessoas.” Há pessoas ali – apenas pessoas. Não são demónios; não são anjos; são apenas pessoas. E escutem-nas. Nós próprios temos feito um imenso exercício de escuta. A ponto da pessoa mais forte até se esquecer que a pessoa mais fraca poderá ter algo a dizer, veja, porque está simplesmente ali; é um acessório, simplesmente fala com ele, compreende? Um governador, um governador britânico do sul da Rodésia, disse um dia “A parceria entre nós, os brancos e os negros, é uma parceria entre o cavalo e o seu cavaleiro.” E não estava a tentar ser engraçado. Ele pensava assim, a sério. É disso que queremos que o Ocidente se livre, porque nos falta imaginação quando não conseguimos colocar-nos no lugar da pessoa que oprimimos. Se fossemos capazes, se tivéssemos imaginação suficiente para nos colocarmos nesse lugar, as coisas começariam a acontecer. Por isso é importante que escutemos, que desenvolvamos a capacidade de escutar os fracos, não apenas em África mas mesmo na nossa própria sociedade. Os fortes devem ouvir os fracos.

BillMoyers.com Staff 29 de Setembro de 1988

Translation:  Patrícia Azedo da Silva

por Chinua Achebe
Cara a cara | 6 Novembro 2019 | Chinua Achebe, literatura africana, Nigéria