Objectos encontrados, viagens: o fecho de um ciclo criativo e outros reencontros -ANTÓNIO OLE

“É o fecho de um ciclo”, diz-me António Ole enquanto conversamos num café de uma das ruas mais movimentadas da Praça do Chile, em Lisboa. Falamos a propósito da exposição que estava para estrear em Luanda, no Centro Cultural Português, e que decidiu estruturar a partir de uma das séries de trabalhos mais internacionalmente conhecidas – as Township Walls, ou paredes de “bairros de lata” (favelas) –, fechando assim um ciclo criativo que na verdade se recicla, proporcionando outras abordagens artísticas.

Township Wall 10 (2004) na exposição itinerante Africa RemixTownship Wall 10 (2004) na exposição itinerante Africa Remix

Falamos mais concretamente da Township Wall que António Ole apresentou em 2004 no Museum Kunst Palast, em Düsseldorf, integrada na exposição Africa Remix, e da origem desse trabalho. Fazemos uma primeira viagem no tempo: recuamos dez anos. Estamos em 1994, data da primeira de várias instalações complexas onde o artista recontextualizou objectos encontrados em viagens prospectivas, reconfigurando a história do seu país e a memória cultural das suas gentes, numa aproximação artística, de cariz etnográfico explícito (certamente influenciado pelo seu amigo antropólogo Ruy Duarte de Carvalho), em tornos de processos identitários.

 

Intitulada Margem da Zona Limite, essa instalação foi montada naquele que tem sido até hoje o atelier do artista – o antigo Teatro Elinga, em Luanda – e era composta por uma parede feita de pedaços de sucata (chapas metálicas, portas e janelas já usadas) acumulados em justaposição, criando uma fachada tipo patchwork, uma encruzilhada de vestígios de uma realidade encontrada nos chamados “musseques” (bairros pobres) da capital angolana.

 

Com a ajuda de alguns refugiados da guerra civil que, desde a independência (em 1975), assolou o país por quase 30 anos (até 2002), Ole construiu então, nessa primeira versão da Margem da Zona Limite, uma espécie de abrigo, feito de tijolos, ao qual se juntava um barco dividido em duas partes e um conjunto de fotografias a preto e branco, datadas dos anos 70. Esse barco – símbolo por excelência da viagem, da passagem, da transitoriedade de estados e lugares (do estar “entre”) – estava também ele cheio de tijolos de barro (terra), num dos lados, e, no outro, por uma pilha de documentos policiais amaralecidos pelo tempo. Quais guardiões, dois corvos embalsamados encimavam cada uma das partes, dirigindo o olhar para um monitor televisivo onde podíamos ver uma imagem contínua de um mar calmo, imagem essa profundamente abstracta (sem referente geográfico e, também por isso, universal), que, segundo o próprio artista, é possível associar à visão cinematográfica de Poltergeist.

 

Não deixa por isso de ser sintomático, como nos lembrou o conterrânio José Eduardo Agualusa, que calunga, do Kimbundu (uma das línguas faladas na costa norte de Angola), significa “mar”, sendo também sinónimo de abismo, imensidão, mistério (o “indecifrável”).

 

Fragmentos dissonantes mas complementares, portanto, num cenário cujo fundo se compunha ainda com retratos fotográficos que Ole captou de modo cúmplice no seio das famílias dos musseques, em vésperas da independência de Angola do jugo colonizador português.

 

António Ole, que começou por ser António Oliveira (como também nos recordou Agualusa), nasceu em Luanda no ano de 1951, oriundo de uma família mista – angolana e portuguesa – e durante a sua infância viveu mesmo algum tempo com os seus avós em Portugal. Regressou depois a Angola para frequentar a escola secundária e, desde então, apenas se ausentou por mais do que umas semanas no período em que estudou cultura afro-americana e cinema na Universidade da Califórnia (UCLA) e no Institute for Advanced Film Studies (Los Angeles/EUA, 1981-1985). Pouco antes, tinha viajado até à província de Lunda, onde descobriu as pinturas murais Chokwe, tendo esse vocabulário sígnico causado grande impacto na obra desenvolvida desde meados dos anos 70.

António Ole na 50 Bienal de Veneza (2003), frente a 'Margem da Zona Limite (série Township Wall)', 1994-95António Ole na 50 Bienal de Veneza (2003), frente a 'Margem da Zona Limite (série Township Wall)', 1994-95

Fruto da profunda viragem política quer em Angola (com a Independência em 1975 e consequente adopção de um regime socialista), quer em Portugal (com a implantação da democracia em 1974, depois de quase cinquenta anos de ditadura fascista), o início dos anos 80 é marcado pela afirmação crescente dos trabalhos de António Ole enquanto apropriação, reciclagem e síntese entre as tradições culturais africanas e as influências artísticas ocidentais, cumprindo uma motivação simultâneamente crítica e estética face à realidade social envolvente.

 

Daí a abordagem experimental e recontextualizadora de instalações como Margem da Zona Limite, apresentada na primeira Bienal de Joanesburgo logo em 1995 (ano em que também itinerou até ao Espaço Oikos, em Lisboa), cuja fachada “favelada” de sucata, configurada como um autêntico repositório de histórias, rapidamente se tornou um modelo de sucesso, dando origem a toda uma série de Township Walls concretizadas até muito recentemente nas mais diversas geografias pós-coloniais: Chicago (2001), Veneza (2003), Lisboa (2004), Düsseldorf (2004) e Washington (2009).

Township Wall 11 (2004), Colecção de Arte Contemporânea da CULTURGEST, LisboaTownship Wall 11 (2004), Colecção de Arte Contemporânea da CULTURGEST, Lisboa

Tendo também como ponto de partida as fotografias que António Ole, em pleno rescaldo da Independência, tirou às construções dos próprios musseques, bem como o olhar atento da sua câmara em documentários como o que realizou sobre a banda musical revolucionária “Ngola Ritmos”, estas fachadas arquitectam uma simultaneidade de viagens temporais fazendo coexistir, num mesmo espaço e em camadas sobrepostas, os mais diversos objectos (testemunhos) encontrados e recolhidos nas imediações dos lugares onde são orquestradas e mostradas. São um imenso arquivo cultural.

 

Constituem-se assim novos lugares onde a criatividade também é cívica e humanista, há que dizê-lo: um exercício de liberdade, até um próximo reencontro com uma das maiores referências da contemporaneidade trasnacional: António Ole.

 

 

 

Lisboa, 9 de Novembro de 2009

 

por Lúcia Marques
Cara a cara | 25 Janeiro 2011 | António Ole