Entrevista a João Paulo Borges Coelho

Fotografias de Gonçalo Antunes

 

João Paulo Borges Coelho é historiador. Ensina História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Atua como professor convidado, no Mestrado em História de África da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. Tem-se dedicado à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique. Literariamente, estreou como escritor, em 2003, com o livro As duas sombras do rio, e, já no ano seguinte, recebeu o Prêmio José Craveirinha, um dos mais importantes no gênero, em seu país. Desta data em diante, publicou praticamente um livro por ano, todos pela Editorial Caminho: As duas sombras do Rio (2003), As visitas do Dr. Valdez (2004), Índicos indícios I. Sententrião (2005), Índicos indícios II. Meridião (2005), Crónica de Rua 513.2 (2006), Campo de Trânsito (2007), Hinyambaan (2008). A maturidade e a riqueza da ficção de João Paulo despertam o interesse de muitos estudantes e pesquisadores, tendo também motivado esta entrevista que, com certeza, será de grande valia aos que se debruçam sobre a obra do escritor.

Conversa com a professora Carmen Tindó Secco.  

Fale um pouco de sua história pessoal, de sua identidade plural, já que nasceu no Porto (Portugal), em 1955, mas, tendo vivido durante muitos anos em Moçambique, optou pela nacionalidade moçambicana.

Muitas vezes me fizeram esta pergunta, e confesso que ela me causa um certo desconforto. Não no sentido que seria de esperar, pois me sinto bem na minha pele, (salvo as ocasionais angústias que invadem a todos nós e não temos como evitar), mas, antes, na medida em que, como muitos já disseram, existe uma relação directa entre a visibilidade do texto e o apagamento do autor. Sinto-a, pois, como uma “invasão de privacidade”. Mas, enfim, o que posso responder é que a minha nacionalidade resulta muito mais de uma condição que de uma opção (digo isso sem pretender retirar nobreza ao acto de optar). Tenho família há muitas gerações nos dois países e, dessa condição, me vieram fios cruzados daquilo que se pode designar de sentido de pertença física à terra e uma substância cultural da qual decorre uma visão do mundo. Foi em Moçambique que tive consciência de pertencer fisicamente a uma terra, enquanto que uma parte importante e não renegada da minha cultura é portuguesa. Isso a que chama pluralidade é, pois, um ponto de partida, e não de chegada: não escolhi, “nasceram-me” assim. Isto não tem nada de extraordinário, uma vez que é cada vez mais comum pelo mundo todo, embora o continente africano, por razões que levariam tempo a explorar, seja ainda, infelizmente, mais um espaço de partida que de chegada. Já agora, deixe-me dizer que a procura da chamada “pureza” (da origem, da raça…) é sempre uma construção, e sempre de desconfiar. O que a faz mover são, não só propósitos nostálgicos que têm que ver com mecanismos de defesa, e, portanto, reveladores de fraqueza, mas também – o que é cada vez mais frequente – manipulações obscuras, religiosas ou políticas. Ultimamente tudo se cruza na terra. É, portanto, inevitável que os seus habitantes também o façam. A resistência a esta tendência carece muito mais de explicação que a tendência em si.

Essa duplicidade identitária se reflete em suas obras ficcionais? De que modo?

Pelo que fica exposto, não me parece que a designação de duplicidade identitária seja adequada para caracterizar a minha condição. Até porque, como se depreende, não acredito em unicidades identitárias. Amin Malouf, nas Identidades Assassinas, disse praticamente tudo a este respeito. Para mim a identidade é um processo aberto. A noção da identidade como um todo fechado (monopolar ou bipolar), qualquer que ele seja, é pré-moderna, transforma-nos em vítimas de um destino, retira-nos a condição de agentes. Retira-nos, com isso, a inteligência, uma vez que vai contra a possibilidade de nos transformarmos e evoluirmos. Toda a gente veio de algum lugar e, depois desse acidente, fez historicamente um percurso, cruzou-se, transformou-se. Nada há de extraordinário nisso. Em qualquer condição, mesmo a mais precária, podemos ser tolerantes (gosto desta palavra, frequentemente vilipendiada) e cosmopolitas. Dito isso, claro que a condição se reflecte em tudo o que fazemos. Reflecte-se, portanto, na ficção que escrevo, mas, felizmente, não como uma angústia ou um mal-estar. Dois é mais que um, mil é mais que novecentos. Aliás, esta condição hybrida (o termo latino designa literalmente alguém não só proveniente de país de duas raças diferentes, mas de dois países diferentes) aplica-se, no meu caso, também ao tempo. Vivo um tempo pós-colonial, mas tenho o privilégio de ter a memória de um tempo colonial. Penso que isso me permite (assim o creio) relativizar as coisas e passear-me no espaço e no tempo com mais desenvoltura. Gosto de pensar que isso agudiza em mim uma espécie de sensibilidade crítica e, também, uma modéstia (no sentido de relativizar sempre os absolutos), das quais não estou disposto a abdicar.

A história de Moçambique é uma de suas principais especialidades como historiador, não? Gostaria de que mapeasse as fases e momentos mais significativos da trajetória histórica moçambicana, desde antes dos colonizadores chegarem aos tempos neoliberais atuais.

A escassez, na altura,  de estudos históricos alternativos aos coloniais, associada à necessidade de afirmação identitária que a independência trouxe, fez de nós – os historiadores formados no período dessa mesma independência – historiadores, por assim dizer, “nacionalistas”. Ou seja, inclinados a trabalhar a história da terra. Por isso, se criou esta tendência curiosa de recebermos centenas de historiadores estrangeiros, chegados para nos estudar, enquanto que nós próprios não manifestávamos a menor disposição de fazer a história “alheia”. Se isto é fundamentalmente positivo, tem também aspectos menos bons, no sentido em que, como disse atrás, actualmente, tudo se cruza e essa atitude nos enriqueceu e empobreceu ao mesmo tempo. Em relação à sua pergunta, diria que antes da colonização não existia Moçambique. Existia, sim, uma multiplicidade de unidades políticas maiores (Gaza, Undi, etc.) ou menores (pequenas chefaturas autónomas). Ao definir as fronteiras e ao subalternizar quem vivia dentro delas, o colonialismo português criou o denominador comum da moçambicanidade. Embora num sentido talvez negativo, e seguramente involuntário, foi o colonialismo português que deu o primeiro passo para a criação da nacionalidade. Depois, nos anos sessenta do século passado, o movimento nacionalista de libertação transformou esse factor negativo em factor positivo, a mancha maldita em motivo de orgulho. Criou uma utopia e um sentido de destino. Esse sentido foi ferozmente erodido nos anos oitenta e noventa, por diversas razões que não temos agora espaço de explorar. Experimentámos uma guerra intestina de uma violência inaudita, fruto não só da agressão externa, num contexto regional, que nos era hostil, mas também da falta de flexibilidade e visão de um sistema que tinha por responsabilidade manter em nós o sentido dessa utopia. Actualmente, conquistamos a paz, e o valor desta é incalculável. Com ela veio um certo desenvolvimento material, mas também todos os problemas que normalmente andam associados àquilo que referimos como neo-liberalismo. O neo-liberalismo, hoje, é incontornável em todo o mundo. Mas não estávamos vacinados contra ele, e o resultado é de algum modo preocupante. Politicamente, custa-nos vencer essa transição para a pluralidade. Além disso, vivemos um sistema que se desinteressa da cultura e da solidariedade social. Precisamos urgentemente de readquirir um sentido de destino novo, mas que seja consensual e não resulte da imposição de uma visão monolítica. Precisamos de mais cultura e de muito mais educação, precisamos de espaços de visão crítica alternativa que instalem equilíbrios e contrariem um certo deserto que as visões únicas normalmente criam.

A temática das guerras em Moçambique é recorrente em sua obra. Por quê?  Você crê no poder catártico de a literatura ser capaz de exorcizar traumas e fantasmas ainda muito presentes na  memória da sociedade moçambicana?

As guerras estão presentes no que escrevo, em primeiro lugar, porque elas estiveram terrivelmente presentes na nossa história recente. Mais de metade dos últimos 45 anos foram vividos em guerra, praticamente nenhuma família moçambicana escapou aos seus efeitos directos ou indirectos. Milhares de mortos, milhões de deslocados e refugiados. Além disso, pesquisando profissionalmente a história recente, tenho trabalhado sobre esses conflitos. Quanto ao papel da literatura na exorcização de traumas, a existir, será modesto. Tão modesto, quanto o lugar que a literatura ainda ocupa na sociedade moçambicana.

Em seu percurso profissional, você acumula as carreiras de Professor de História e de escritor. Como conjuga essas atividades? Sintetize sua experiência como pesquisador e docente em cursos de Pós-Graduação em Moçambique, Portugal e em outros países.

No professorado tenho de facto uma carreira de muitos anos, mas não na literatura. A literatura (pelo menos no sentido do texto publicado) é uma prática recente e não-planeada. Envolvo-me nela como gostaria de me envolver em muitas outras coisas (pintar, por exemplo, ou estudar filosofia, ou tocar um instrumento musical). Mas enfim, são duas ocupações que convivem sem sobressaltos, porque, de alguma maneira, se complementam. O único problema é o dia ser sempre tão curto, nunca haver tempo para nada.

As fronteiras entre a história e a ficção são, muitas vezes, bastante tênues. Como isso está presente em sua obra? Discorra um pouco sobre os processos ficcionais utilizados por sua escrita literária.

Tais fronteiras podem, de facto, parecer ténues, mas, para mim, são muito claras. Li, algures, acerca da indignação de Umberto Eco com o Código da Vinci, de Dan Brown, pelo facto de este último autor fazer passar especulações por indícios de verdade. De facto, para mim, é este o limite último da ficção, a única coisa que não lhe é permitida, a linha que jamais pode ser transposta: confundir-se deliberadamente com a verdade. Numa das suas aulas de literatura na Universidade de Cornell, o escritor Vladimir Nabokov afirmava que A literatura é invenção. A ficção é ficção. Chamar a uma história uma história verdadeira é um insulto tanto para a arte como para a verdade. Em suma, há uma definição muito conhecida de ficção que a apresenta como uma espécie de contrato em que o escritor finge dizer a verdade e o leitor finge acreditar. Trata-se de um contrato que não pode em circunstância alguma, repito, ser quebrado. Sob pena de anular irremediavelmente a magia (a verdade) da literatura. Dito isto, não quer dizer que a ficção não aspire a uma certa verdade dentro dela, a “sua” verdade. Ou seja, ela deve desempenhar a sua parte do contrato com competência, buscando a verosimilhança, aquilo a que António Cândido chamou o sentimento de verdade. Mas não é uma verdade literal, objectiva. É, antes, a verdade que cada leitor retira privadamente da leitura. Neste momento, trabalho num romance histórico que flirta com esta questão, correndo até uns certos riscos ao movimentar-se ao longo dessa fronteira que não pode nunca ser cruzada, fazendo conviver personagens inventados com figuras que, de facto, existiram, acontecimentos hipotéticos com acontecimentos que a história narra como verdadeiros. A questão-chave que me coloquei foi: E se o desfecho de um determinado acontecimento historicamente verdadeiro, do conhecimento de todos, não tivesse sido como foi? E se ele tivesse sido de outra maneira? Mas, no fundo, trata-se de um exercício que não aspira à verdade literal, nunca poderia fazê-lo. Recorro, até, à introdução de personagens historicamente muito conhecidas para criar uma certa inverosimilhança, e, assim, ir lembrando ao leitor de que nada do que conto é verdadeiro. Até porque, no nosso caso, em que a cultura da leitura é mais recente e frágil, o risco se apresenta redobrado. Enfim, verdadeiro é o sal que resta no fim de toda a invenção, verdadeiro é o que o leitor retira da leitura.

O Zumbo aparece em muitos dos seus textos. Por que a afinidade com essa região de Moçambique?

Visitei o Zumbo algumas vezes, por razões profissionais. É um lugar particular por mais do que uma razão. Desde logo, porque é aquilo a que se poderia chamar um lugar remoto, “esquecido”, de muito difícil acesso. Das três vezes que lá fui no imediato pós-guerra, não havia estrada de acesso pelo território nacional. Era necessário ir de avião para Harare, a capital do vizinho Zimbabwe, e, dali, percorrer cerca de 500 quilómetros, na sua maior parte, por estrada de terra, até chegar à fronteira e voltar a entrar em Moçambique. Sempre que chego a estes lugares, não consigo libertar-me da sensação de que eles gritam em silêncio, que não têm como ser ouvidos. Além disso, é um lugar que me ensinou a importância do rio, um lugar, onde as pessoas convivem com os espíritos e com a magia, com uma naturalidade desconcertante. Ali existem também vestígios muito antigos da presença portuguesa, do século XVI, e o facto de se tropeçar, constantemente, em pedras e inscrições “não-preservadas”, dá ao lugar uma característica muito especial. Há uma espécie de promiscuidade com a história que anula o sentido do tempo. Tudo isto se conjuga para fazer do Zumbo um lugar especial. Finalmente, foi, a partir de notas e registos de trabalho deste lugar, que escrevi o meu primeiro romance. Fora tudo isto (que não é pouco), o Zumbo não me é mais especial do que outros lugares. Do que o norte da província do Niassa, por exemplo, onde vivi experiências importantes na minha juventude e sobre o qual espero escrever um dia.

As duas sombras do rio (2003), sua primeira obra literária publicada, narra histórias passadas em Moçambique. Aí, a metáfora do rio é muito significativa. Fale um pouco da significação literária e histórica desse rio dentro e fora de seu romance.

Esse livro é-me particularmente caro, porque, como disse, foi nele que, pela primeira vez, me dei conta de que podia transformar material de outra natureza em ficção. De alguma forma, ele incutiu em mim uma forma de escrever ficção a partir da surpresa provocada pelos lugares. O rio é importante, de facto, por ser ele que marca indubitavelmente a vida das comunidades retratadas e porque ele é uma espécie de chave do Moçambique actual, tal como se configura. Aquele rio é imenso, um dos maiores do mundo (um dos mais fundos, no sentido divisório). O rio distingue sistemas de estruturação social, mitos e línguas. Separa a terra feminina da cobra, no norte, da terra masculina do leão, no sul. Separa a água do fogo. Sempre olhei com grande preocupação a ausência de uma ponte – facto que em si constituía uma poderosa ameaça. Hoje, decorridos mais de trinta anos de independência, conseguiu-se finalmente fazer uma ponte. Passei pelo lugar há muito pouco tempo e pude constatar que está quase pronta e é majestosa. A visão encheu-me de contentamento. Voltando à ficção, o rio serviu vários propósitos: traçando uma poderosa fronteira entre dois distintos mundos, “serviu-me” para tratar a questão da guerra. Transformado em veia imensa e pulsante, ajudou-me a perceber que, ao sairem por ele os escravos, saía também o sangue daquela terra. No Brasil fala-se muito da tristeza que foi a vida numa terra de escravos. Aqui, da tristeza, quiçá ainda maior, de um lugar de onde foi arrancada a sua gente enquanto escravos. Uma tristeza associada a um vazio.

As visitas do Dr. Valdez (2004) ganhou o prêmio José Craveirinha pela Associação de Escritores Moçambicanos. Que importância teve esse prêmio para sua carreira de escritor? Comente algumas passagens e personagens que considera fundamentais nesse livro.

Obviamente que foi um prémio que me lisonjeou, um prémio que – como tudo o que contribui para o alargamento do espaço da literatura moçambicana – considero importante. Relativamente ao impacto na carreira não saberia o que dizer. Pelo menos, até agora, não vejo na prática da escrita uma carreira, mas apenas isso mesmo, uma prática. Interessa-me, mais que uma coerênca que configure um itinerário, a experimentação, o prazer de tentar coisas novas. E asseguro que esta não é uma resposta blasé: não vivo da escrita, ela não tem impacto no meu orçamento. Quanto ao livro, ele trata de um tempo e de uma experiência pessoal e familiar. Para quem o conhece, surpreenderia a “percentagem” elevada que ele tem de não-ficção. As três personagens centrais (e mesmo a personagem fantasmagórica, o Dr. Valdez) existiram realmente. Eu próprio, quando era criança, brinquei com a cadeira de rodas da minha tia-avó Mameia.

Rua 513.2, seu quinto livro, focaliza o Moçambique dos anos 80. A rua que dá título a essa obra teve existência real em seu passado ou é apenas um espaço criado ficcionalmente?

A minha ficção tem partido quase sempre de uma base real. A Rua 513.2 foi, de algum modo, a minha rua, nesses “anos de brasa”. O que é curioso (e me deixou muito satisfeito) é que muita gente me disse ter reconhecido nessa rua a sua própria rua. Essa rua é, portanto, a minha rua e, simultaneamente, todas as ruas da cidade nessa altura. Esse livro é um balanço de um certo passado, nem positivo, nem negativo. Um ajuste de contas no sentido literal. De arrumação, com um relativo rigor.

Além dos romances mencionados, escreveu outros, entre os quais, mais recentemente, Campo de trânsito (2007). A temática desse livro e a dos demais também aborda fases e episódios significativos do contexto histórico moçambicano?

O Campo de Trânsito flirta com a realidade dos campos de reeducação do nosso passado socialista, mas, desde o princípio, que visava a algo mais geral. Num certo sentido, é mais abstracto que os livros anteriores e procura colocar algumas questões relativas ao absurdo na nossa civilização global. Ou seja, não se trata de uma abordagem “cautelosa” dos campos de reeducação. Quando quiser abordar essa mancha da nossa história, fá-lo-ei frontalmente, apesar da dificuldade que a pesquisa encerra, pelo secretismo que ainda cerca tudo o que com esses campos se relaciona. Entristece-me um pouco que o livro seja reduzido a uma abordagem cautelosa desses campos.

Que autores das literaturas moçambicana e universal o influenciaram?

É uma pergunta para a qual não tenho resposta. E esta ausência de resposta prende-se à forma como escrevo. Não concebo a priori um projecto, nem procuro um estilo. Simplesmente, sigo um instinto e prezo muito essa componente “não-racionalizada” da escrita. Só assim consigo vivê-la como libertação. Talvez pudesse responder que tudo o que li de algum modo me influenciou. Embora, claro, esse já lido não seja uma massa informe. Há, dentro dela, uma hierarquia, obviamente, mas não sei através de que mecanismo misterioso esta é transposta para as opções tomadas no acto da escrita. Talvez possa responder de uma outra maneira, dizendo que, na juventude, me marcou a clareza do português de Eça de Queiroz (a ironia e o humor…), o mistério de Poe, o absurdo kafkiano, tal como me impressionam hoje os incontroláveis impulsos de Lobo Antunes e a serenidade de Chinua Achebe, e como invejo o rigor e a austeridade de J.M. Coetzee.
Quais os seus livros de cabeceira?

Tenho o privilégio de não ter de ler ficção profissionalmente, de o fazer apenas por fruição. Não tenho, portanto, qualquer método de leitura (a havê-lo, será inconsciente). Sigo o acaso, embora, por vezes, me surja um veio que a curiosidade obriga a seguir durante um certo tempo. Ultimamente, surgiu-me um caso desses com o escritor W.G. Sebald, que nunca havia lido. Li em poucos dias, e, de seguida, o Campo Santo, a História Natural da Destruição, e estou agora a ler Austerlitz. Da mesma maneira, segui recentemente o veio do filósofo Giorgio Agamben (Profanações, A Ideia da Prosa, Bartleby – Escrita da Potência). Há livros que permanecem muito tempo na cabeceira, por serem longos ou exigirem ser lidos muito devagar (a Recherche de Proust, traduzida pelo poeta Pedro Tamen, que me acompanha há dois anos). Não me move a busca de erudição, longe disso, mas apenas a fruição. Por outro lado, a minha relativa falta de memória acaba por ser-me útil, pois leva-me a regressar a algumas obras com certa regularidade, a ter o prazer de as descobrir mais do que uma vez (O Quarteto de Alexandria, de Durrell). Há autores de que leio tudo o que sai e assim que sai (J.M. Coetzee, sempre em inglês, pela escrita magra e rigorosa, e por ter muito a ver conosco), outros que entram e saem da cabeceira, mas, enquanto permanecem, brilham como estrelas (entre os brasileiros, Laços de Família, da Lispector, Lavoura Arcaica, de Nassar). Na cabeceira, há sempre alguma poesia (Kavafis, Akhmatova). Nada de diferente, portanto, de um leitor comum. Se me perguntasse o mesmo, daqui a uns tempos, a resposta seria quase inteiramente diferente.

Que autores da geração contemporânea de Moçambique e do exterior tem lido? Quais o agradaram mais? Por quê?

Como deve calcular, nem sempre é fácil acompanhar novidades literárias, onde quase não chegam livros (o que chega é frequentemente mau – a famigerada auto-ajuda, por exemplo – e muito caro). Dos brasileiros li ultimamente Bernardo Carvalho e Milton Hatoum.

Mia Couto, Ungulani Ba ka Khosa, além de Paulina Chiziane, Lília Momplé, Suleiman Cassamo e outros são escritores moçambicanos que também operam com a história de Moçambique em seus romances. Que diferenças e semelhanças pode apontar entre a ficção deles e a sua?

Sendo eu historiador, talvez a diferença esteja em que eles procurem ir ao encontro da história e eu tente libertar-me dela, sem, até a data, o conseguir. Às vezes tenho a sensação de que a história nos esmaga, nos impede de fazer uma literatura mais atenta ao quotidiano. Aliás, penso que África, de certa forma, padece de um excesso de história, que se enreda nessa teia que, por vezes, assume foros de armadilha, e que isso lhe dificulta abordar com mais eficácia o presente. Mas é justo não esquecer que, além da história, sinto com o mesmo peso a geografia, a respiração dos lugares. Enfim, de entre os autores que mencionou, acho que o Ungulani recorreu à história de uma forma não maneirista e particularmente eficaz.

Entre as literaturas da América Latina, incluindo o Brasil, e as da Europa, em especial a portuguesa, consegue depreender algumas tendências que dialogam com a literatura moçambicana. Quais?

Depende muito daquilo que entendemos por diálogo. É sabido que no passado colonial os escritores moçambicanos acorriam às livrarias a buscar os livros de Jorge Amado ou os romances neo-realistas portugueses. Sabemos também, por exemplo, que a linguagem de Guimarães Rosa inspirou Luandino Vieira e Mia Couto. O que posso dizer a este respeito é que, para a nossa realidade, me parecem interessantes muito mais propostas do que seria de esperar. Não no sentido utilitarista ou instrumentalizador, mas como refracção positiva que, a meu ver, o cosmopolitismo sempe traz. Por exemplo, a contundência e a austeridade de Juan Rulfo ou a indignação de Raduan Nassar, o sentido de saga de García Marquez, mas também o subjectivismo e o ritmo de António Lobo Antunes. Até a lógica particular de alguém que parece a milhas de distância, como o Gonçalo M. Tavares, me parece interessante do nosso ponto de vista. Busco uma literatura aberta, não conformada aos estereótipos que pululam por aí. Uma literatura que tenha os pés assentes no chão, mas o olhar perdido por aí, atento ao que se vai passando. A ideia de que o nosso papel é transmitir mensagens de um pretenso âmago não me entusiasma, nada me diz. A literatura é soberana, e isso não significa descomprometimento, significa, sim, que não é posta ao serviço de absolutamente nada, nem ninguém. Estabelece ligações com o mundo a seu bel-prazer. Ela paga por isso o preço elevado de não ser decisiva em nenhum contexto. Relativamente ao diálogo entre literaturas, gostaria ainda de dizer que me parece importante buscar outras literaturas africanas fora do âmbito da língua portuguesa. Quando falo em diálogo com literaturas que nos são próximas, mas escritas numa outra língua (inglês, por exemplo), os pretensos “amantes do português” afivelam normalmente um ar de preocupação ou desinteresse, que é a expressão daquilo que consideram ser um ataque à língua portuguesa. Acho que é uma visão curta, um absurdo. Nenhuma língua me é mais cara do que o português. Por isso mesmo penso que, pelo contrário, dessa atitude só pode advir uma dinâmica de alargamento da língua portuguesa.

Ilha de MoçambiqueIlha de MoçambiqueVocê poderia apontar as principais tendências da poesia e da ficção moçambicana contemporânea?

Não sou um estudioso da literatura moçambicana, sou apenas um leitor, e, frequentemente, menos atento do que gostaria de ser. Nessa qualidade, o que me ocorre dizer é que me parece que a literatura moçambicana é, neste momento, demasiado frágil para se verificarem nela tendências. O fim da utopia significou também o fim de uma tendência nacionalista. A literatura entrou num longo período transitório, individualizou-se e subjectivou-se. Para haver tendências, a literatura tem de viver. Penso que, neste momento, ela apenas sobrevive.

Apesar da potência demonstrada nos últimos anos, as literaturas africanas de língua portuguesa ainda continuam a ter tímidos espaços nos fóruns internacionais. Por que razões? Que soluções amenizariam tais limitações?

Penso que essa situação tem a ver, em primeiro lugar, com o mercado e as suas perversidades. O que torna visível um bom livro, hoje em dia, está longe de ser apenas, ou sequer principalmente, a “qualidade”. Intervêm muitos outros factores, poderosos a ponto de conseguir transformar coisa nenhuma num best-seller. O gosto educa-se, manipula-se. Por outro lado, há também uma expectativa estereotipada, construída no mercado “do norte”, que o leva a procurar na literatura africana a imagem que tem de África, em doses variáveis: alguma nostalgia do passado colonial, o exótico e a tragédia (esta última despertando solidariedades, mas também um voyeurismo mórbido). Tudo isto condiciona a literatura africana, pressiona-a a assumir um determinado tipo de perfil para que possa ocupar, ordeira e docilmente, um espaço perfeitamente delimitado nos escaparates das livrarias. E se o livro tiver um glossário de termos exóticos no final, ainda melhor; quanto mais gordo for esse glossário, mais garantias há de que o livro é genuinamente africano. Mas, por outro lado, existe também uma outra vertente, quiçá mais fundamental, para explicar essa fragilidade, e que tem a ver com a inexistência de mercados nacionais do livro, onde ele é escrito. Nos países africanos de língua portuguesa, o mercado do livro é modesto, diria mesmo que quase inexistente. Pouca gente escreve, quase ninguém lê, e eu diria que menos pelas elevadas taxas de analfabetismo (embora estas sejam uma realidade), que pelo facto dos livros não estarem ao alcance da maioria das bolsas. Daqui resulta que o percurso de um livro africano escrito em português depende, sobretudo, do seu sucesso no mercado português e, progressivamente, também no brasileiro. Ou seja, configura-se uma espécie de síndrome esquizofrénica, em que se escreve para leitores que estão longe de nós sobre realidades que estão longe deles. Obviamente que o mercado não se cria de um dia para o outro, depende da confluência de muitos factores. Um deles, que considero muito importante, é a mudança de atitude das elites que nos governam relativamente ao livro. África tem um passado espiritual que o neo-liberalismo se dedica afanosamente a destruir. Hoje, quem manda patenteia uma extrema agudeza relativamente ao que é material, mas negligencia totalmente o âmbito espiritual e cultural (a não ser que deles se possa tirar proveito político ou material imediato). Não prometendo ainda a circulação de grandes valores financeiros, a ficção só lhes interessa enquanto propaganda e corroboração. É, portanto, muito importante que isto comece a mudar. Só valorizando a nossa literatura, podemos esperar que ela seja valorizada noutros lugares. A sociedade procura fazer a sua parte, nas centenas de jovens entusiastas que acorrem aos eventos literários. É altura dos governantes fazerem a deles. Voltando àquilo a que chama de fóruns internacionais, devemo-nos interrogar por que razão se destingue literatura universal por um lado, e literatura africana por outro. Ou seja, remetem-nos para um gueto e é-nos muito difícil sair dele.

Que planos tem para o futuro?

Não tenho planos literários. Apenas usufruir o prazer da leitura e exercer o vício da escrita. Ler e escrever o que me der na real gana, motivado por indefinidas necessidades pessoais e sociais.

 

publicada originalmente em Metamorfoses 10. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. A publicação foi feita pela Editora Caminho de Lisboa e da UFRJ, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2010-1.

por Carmen Lucia Tindó Secco
Cara a cara | 17 Setembro 2010 | literatura moçambicana