Aristides Pereira nos Trilhos da História

Terça-Feira, 5 de Julho de 2011, cidade da Praia. Cabo Verde comemora o 36º aniversário da sua Independência. É feriado nacional e a Nação espera com expectativa o último discurso do Presidente Pedro Pires, pois em breve terminaria o seu mandato como chefe de Estado.

A equipa, do projecto “Angola - Nos Trilhos da Independência”, segue o seu caminho em direcção a uma casa modesta, situada à beira da praia. À chegada, uma carrinha está de saída e o grupo é simpaticamente convidado a entrar, atravessando o quintal marcado por um jardim algo descuidado.

No andar de cima espera-os a pessoa que foram encontrar. Mais velho, quase mítico, com auxílio de um andarilho, recebe a equipa de pé com um sorriso acolhedor convidando-a a instalarmos o material para a entrevista. Ali estava Aristides Pereira, nos seus 87 anos de idade, já transformado em símbolo. O projecto Angola – Nos Trilhos da Independência estava diante de um dos fundadores do PAIGC, precisamente aquele que, depois do assassinato de Amílcar Cabral em 1973, o haveria de substituir na direcção da luta de libertação nacional, que não tardaria em triunfar pouco depois. Tornar-se-ia, a partir de 1975, o primeiro Presidente de Cabo Verde.

A entrevista estava combinada para durar uma hora. Contando com uma pausa que pediu para, todos juntos, assistirem pela televisão ao discurso de Pedro Pires, a entrevista acabou por estender-se durante três horas de impressionante e elevada clarividência e capacidade de memória. Com uma voz ora cansada ora animada, não se desviou nem uma só vez das questões levantadas, por mais delicadas que fossem. Com ele percorremos os trilhos da vida do imenso nacionalista e do conhecido homem de princípios que aqui partilhamos com os leitores do Novo Jornal.

Poucas semanas depois da nossa partida, chegou-nos a notícia da evacuação urgente do Presidente Aristides Pereira para o estrangeiro: a sua frágil saúde deteriorava-se.

A entrevista que tivemos o privilégio de fazer, em nome e sob responsabilidade da Associação Tchiweka de Documentação (ATD) não teria sido realizada sem a participação da produtora angolana “GERAÇÃO 80” e sem os apoios recebidos principalmente do Comandante PEDRO PIRES, então Presidente da República de Cabo-Verde, da FUNDAÇÃO AMÍLCAR CABRAL de Cabo-Verde, do MINISTÉRIO DA CULTURA de Angola, do BPC, da MOVICEL, da TAAG e da SONANGOL.

 

 

Aristides Maria Pereira nasceu a 17 de Novembro de 1923 numa povoação de Fundo das Fileiras no Norte na ilha da Boavista. Filho de um dos muitos padres que em Cabo Verde formaram família, com mulher e filhos, Aristides Pereira contextualiza “… Eu penso que isso coincidiu com uma fase de afrouxamento do Vaticano quanto à questão de celibato para os padres (…) nessa altura, fins do séc. XIX, princípios do séc. XX, houve muitos padres que se casaram, pediram autorização ao Papa e casaram-se e portanto havia uma certa tolerância. (…) De maneira que o meu pai era padre e professor e a minha mãe era uma camponesa digamos agarrada a todos os valores do nosso campesinato e aos valores da família. Ela teve 14 filhos. Eu sou o 14º e é claro que só o salário do meu pai não chegava, e ela trabalhou determinadamente para que os filhos pudessem ser devidamente educados.”

CAMINHOS DA CONSCIÊNCIA

Aristides Pereira fez os seus estudos em Cabo Verde “e nessa altura, a questão dos estudos era extremamente difícil porque em Cabo Verde só havia um liceu (…) numa ilha.” Foi pois em São Vicente que Aristides Pereira fez o liceu. Um período onde o termo ‘discriminação’ parece esbatido na sua memória… “Cabo Verde (…) era uma colónia pura e simplesmente abandonada (…). Enquanto o colonialismo era atraído pelas riquezas potenciais de Angola, Moçambique e mesmo São Tomé ou mesmo da Guiné (…), Cabo Verde não tinha nada que atraísse a não ser a sua posição geográfica (…), sempre considerada de menos importância, de maneira que a tendência era para justamente se fazer de Cabo Verde uma amostra (…) das vantagens do sistema colonial português. (…) Quanto à discriminação era uma coisa que por exemplo para mim não havia problemas porque tive a sorte de estando ainda no 1º ano do liceu - foi uma altura em que foram deportados políticos portugueses, (…) então calhou que na casa em que eu habitava (…) foi instalar-se um deportado político, (…) era o Major Matias dos Santos, (…) parecia um homem muito sensato (…) passou a ter conversas muito interessantes comigo, apesar de eu ser um miúdo. E então ele foi a primeira pessoa que me falou dessa discriminação que havia, os estados africanos, os não africanos, etc., e explicou-me também toda a mentira de sermos portugueses, (…) nós somos de Cabo Verde, somos Africanos. (…) Foi a partir daí que comecei a ter uma luzes sobre o sistema colonial e o seu sistema de exploração, esses deportados políticos eram numa certa medida todos democratas, contra o sistema que estava em vigor, portanto esse major foi o meu batedor da minha caminhada para as luzes do esclarecimento.”

A CAMINHO DA GUINÉ bissau

Aristides Pereira manteve-se em Cabo Verde até à época do fim da grande crise dos anos 40, “É nessa altura que a minha geração, que estava aqui presa, não tinha meios para estudos superiores portanto tinha que se submeter simplesmente ao funcionalismo que era praticamente o único empregador (…). A única saída era ir para as outras colónias (…) e foi assim, uma autêntica largada de jovens para Guiné (…) principalmente para Angola que era preciso ir prestar provas em Lisboa; mas as pessoas podiam, conseguiam arranjar o necessário para (…) ir até lá (…). Não se arrependiam porque chegavam lá, havia vagas (…). E assim é que o funcionalismo público de Angola foi invadido pelos cabo-verdianos. O mesmo problema na Guiné, que estava a sair da pacificação que acabou em 36 e (…) tinha que organizar administrativamente o país (…). E é nessa altura que eu vou para Guiné prestar provas pelos correios e fico lá, foi em 1948.”

GUINÉ BISSAU: a influência das independências africanas

Os conceitos adquiridos na juventude em relação à discriminação ganham contornos de realidade nos quotidianos da vida em Bissau “… uma coisa que nos espantou chegado a Bissau (…) havia, de manhã cedo um apito (…) e à tarde, aí às 6 da tarde mais um apito. (…) Esse apito é para os indígenas que trabalham aqui na praça irem todos lá para a tabanca deles. Aí há alguma coisa que não está bem…, (…) é a partir daí e em contacto com os guineenses, foi, para nós, uma tomada de consciência. (…) Isso através do trabalho de estarmos envolvidos implicava um relacionamento entre cabo verdianos e guineenses. (…) Eles iam trabalhar às 7 da manhã e às 6 da tarde iam para a tabanca.”

“Na Guiné-Bissau havia a vantagem de ser um território continental, portanto com fronteiras normais. (…) Lá tínhamos notícias todos os dias (…) do que se passava nos territórios ditos franceses que eram o Senegal. Nessa altura havia todo um movimento na África Ocidental Francesa, (…) para justamente conseguir a independência, mas conseguir a independência como um bloco. Mas depois o De Gaulle estragou tudo (risos). (…) Havia uma grande actividade política nesses territórios que eram a Guiné Conakry, Senegal, Mauritânia, Mali, tudo isso… (…) Via-se que era qualquer coisa imparável e é nessa altura que aparecem esses indivíduos como o Senghor, Mamadou Dia e outros, Modibo Keita e que de facto dão força a todo esse movimento da África Ocidental até aparecer o De Gaulle que vem justamente quebrar (…) essa possibilidade de haver um bloco que aparecesse como África independente. Então há essa separação… vão aparecendo os países um a um, a começar pela Guiné Conakry.”

GUINÉ-BISSAU E CABO VERDE: O CONTEXTO DE UNIDADE

Aristides Pereira manteve os primeiros contactos com Amílcar Cabral, ainda antes de este ter partido para estudar. “Quando ele voltou à Guiné eu já lá estava, (…) ele esteve como adjunto do director de serviços da agricultura de Guiné. E é aí então que ele consegue ter conhecimentos que o levam a aprofundar mais a questão da independência e a questão da unidade Guiné e Cabo Verde. (…) Ele foi encarregado pelo governo colonial de fazer (…) o recenseamento agrícola na Guiné. Foram mais ou menos dois anos que ele esteve a palmear a Guiné de metro a metro e foi, ao mesmo tempo, conhecendo as pessoas e conhecendo a história do relacionamento de Cabo Verde e Guiné Foi desse jeito que lhe inspirou a avançar nesse caminho da unidade (…) e é a partir daí (…) que ele sente-se firme para avançar no sentido da mobilização dos guineenses principalmente para se chegar a uma situação de propor negociações com o governo português, que ele teve oportunidade de fazer através de um memorando depois de uma carta aberta ao governo português. Isso foi mais ou menos no ano de 60- 61, mas que não teve resposta nenhuma e que portanto levou às últimas consequências que era justamente a luta armada.”

NA GUINÉ CONAKRY

Os caminhos da luta do PAIGC levam Aristides Pereira à Guiné Conakry onde chega no fim dos anos 60. Já encontra lá a direcção do MPLA. “… o MPLA instalou-se antes de nós e foi graças à ajuda do MPLA que o Amílcar foi (…)instalar-se em Conakry (…). Vivíamos todos juntos. Nessa altura, quando eu cheguei a Conakry (…) ficámos todos metidos em casa do Amílcar até aos anos 64-65. Era um T2, dois quartos de dormir, uma sala comum e os anexos, chegámos a estar lá 14 pessoas (risos) em situações muito caricatas… Porque o nosso secretariado era numa varandinha da casa, havia sombra de umas buganvílias e era ali que a gente trabalhava durante o dia. Durante a noite era preciso esperar acabar todo o trabalho, então as pessoas iam procurar lugar para se deitar (risos)”.

ARMAR PARA A LUTA

Quando Aristides Pereira chega a Conakry, em Outubro de 60 o PAIGC ainda não tinha começado a receber armamento. Alguns meses mais tarde, em Fevereiro de 61, Amílcar Cabral tinha já contacto com algumas embaixadas de países socialistas, das quais se destacava a da Checoslováquia de onde surge a ideia da criação de comités de solidariedade afro-asiática. Do reforço desses contactos Amílcar Cabral “acabou por conseguir um convite do Comité de solidariedade afro-asiático ao PAIGC com duas pessoas que só podiam ser o Amílcar e eu (…). Fomos a esse encontro e já estávamos nessa fase de pensar nas armas, não podíamos comprar armas… então como é que vamos arranjar armas? Era preciso arranjar ou um país que nos desse armas (…). No campo socialista, os checos eram o número um no sentido de fabricar armas. De maneira que o Amílcar foi com essa engatada de meter essa questão do armamento. (…) A conversa que ele teve com o comité de solidariedade foi extremamente interessante. Eles acharam que foi tão interessante que disseram «você, espere aí. Nós vamos arranjar um contacto a nível superior» (…). Então arranjaram esse encontro com o ministro do interior e desse encontro saiu um resultado absolutamente favorável a nós «sim senhor, nós achamos que vocês têm toda a razão e nos prontificamos a vos ajudar com armas e munições, (…) fardamento, etc., mas só pomos uma condição (…) que o governo guineense de Conakry esteja de acordo com isso e se prontifique a receber as armas.» (…) Foi nessa base que a gente regressa. O Amílcar conseguiu uma audiência com o Sékou Touré e ele disse «Não há problema nenhum, eles podem mandar as armas que quiserem nós pomos aqui» (…) Isso foi em Fevereiro de 61, mas isso foi tão rápido que em Junho, e eu digo as datas para verem a rapidez com que as coisas foram feitas, em Junho de 61 as armas que os checos prometeram já estavam em Conakry. Então avisaram, chega o barco tal, armas, munições e fardamento. É claro que foi tudo desembarcado pelas forças armadas guineenses (…). Eles meteram nos seus depósitos e pronto. (…) Isso foi em 61 (…) mas depois passou 61, passou 62 e em 63 ainda não tínhamos conseguido levantar as armas de maneira que nessa altura houve uma reunião do Partido. Já tínhamos uma situação explosiva, porque (…) os nossos combatentes, os mobilizadores das populações avançaram muito mais do que deviam avançar contando com armas.”

Aristides Pereira recorda esse período como uma situação de desespero e que exigiu uma reunião da direcção do partido para a decisão do passo seguinte “… então dissemos «não senhor. Não podemos ficar de braços cruzados. Vamos pôr armas na Guiné custe o que custar. (…) Toda a gente faz contrabando, nós também vamos fazer» (risos). Nessa altura as relações com Marrocos eram excelentes. (…) Então o Cabral consegue uma audiência (…) expõe a questão «temos as armas em Conakry dadas pelos checos, mas nunca mais conseguimos levantar as armas». Então o rei Hassan II, apesar de estar em dificuldades internas nessa altura, disse-lhe assim «olha, tu tens as armas que quiseres, vais dar as instruções, vais já aí ao campo tal, levas as armas que quiseres e a quantidade que quiseres. (…)». E foi assim. Nessa altura então servimo-nos (…) da grande capacidade de imaginação de Luís Cabral (…) que tinha ideias a fervilhar na cabeça a toda a hora, ideias novas. Então o Luís propõe-se imediatamente: «Eu trato disso.» Começámos a levar as coisas aos poucos, (…) levávamos em sacos de mão de avião. Começámos a levar algumas pistolas, começámos a dar aos nossos combatentes algumas pistolas, algum material de fardamento.”

CONCP UMA FRENTE DIPLOMÁTICA

Aristides Pereira foi membro fundador da CONCP em Abril de 61 e considera a organização uma plataforma fundamental para coordenar as acções (…) dos movimentos de libertação nas colónias portuguesas “… Nessa altura não se falava de São Tomé porque não pertenciam à CONCP. (…) A CONCP garantiu também e principalmente o facto de aparecer em bloco, em várias vezes tivemos dificuldades a nível quer do MPLA quer do PAIGC. Solicitámos a intervenção da CONCP para dar as devidas soluções e nessa altura agiu, como por exemplo às dificuldades que tínhamos com o Senegal. Houve uma altura que foi preciso o Marcelino dos Santos como secretário-geral da CONCP, conseguir uma audiência junto do Senghor para fazer ver que não estava a ser justo com o PAIGC. (…) Havia bastante coordenação e foi nessa altura que conseguimos mais audiência da nossa propaganda da luta de libertação nacional, porque era tudo através da CONCP. Aproveitámos justamente o facto de Rabat estar já perto da Europa e consequentemente tinha mais facilidades de acesso aos meios de comunicação e, qualquer comunicado que o PAIGC emitisse em Conakry (…) era imediatamente transmitido à CONCP que por sua vez também fazia o mesmo. De maneira que fazia uma espécie de caixa-de-ressonância com muito mais força na Europa.”

A CONCP cedeu ao momento da História em que a luta pelas independências se tornou prioritária. “Não há dúvida nenhuma que houve uma baixa da acção da CONCP (…). A CONCP estava talhada para ter um papel coordenador com os elementos que dispúnhamos na altura… Mas depois tudo isso evoluiu (…) nós avançámos para uma fase de luta muito mais intensa principalmente a luta armada que absorvia bastante a nossa atenção. E daí, várias decisões que tínhamos que tomar tinham que ser, principalmente porque estávamos em guerra, justamente na altura tem que se tomar uma decisão, não pode esperar consultas nem nada disso.”

AMILCAR CABRAL O LÍDER

“Amílcar Cabral, eu tenho que assinalar que ele foi estudar já muito tarde (…). No ano em que eu saí do liceu, ele estava a chegar, estava a matricular-se no liceu. Foi nessa altura que a mãe dele resolveu estabelecer-se em São Vicente par poder educá-lo (…), fazendo costura e vendendo comida, peixe frito com arroz pintado como se dizia. Com esse trabalho é que ela conseguiu educar o filho, e por isso mesmo é que Amílcar tinha uma admiração muito especial pela mãe (…). Ele foi com a fama de ser um aluno extraordinário. Só isso é que eu sabia, mas no entanto chegámos a encontrar-nos quase logo a seguir porque ele depois foi, concluiu os seus estudos e foi o beneficiário de uma única bolsa (…). Mas ele tinha que esperar pela bolsa alguns meses então é nessa altura que ele vem à Praia procurar meios de vida e então esteve como aspirante na imprensa nacional e é aí que nos conhecemos um bocadinho (…). Era uma altura em que apareciam os rádio-clubes e essas coisas… Havia um rádio-clube aqui e nessa rádio havia uns programas interessantes. Então ele deu-se voluntário para fazer os programas (…) que depois foram cortados pela censura. (…) Nessa altura ele já era conhecido por ser um jovem rebelde, que não se calava e que dizia as coisas tal qual elas eram, principalmente face ao abandono a que Cabo Verde era entregue.”

A relação com Amílcar Cabral marca todo o percurso de Aristides Pereira que o recorda também no papel fundamental ao nível da CONCP… “As teorias que levanta, ele demonstra que a propósito (…) da Unidade e Luta, sem unidade não é possível. Isso está escrito. Ele escreveu isso. E mais, no seio da CONCP era um elemento extremamente activo e procurava passar essas ideias através da CONCP aos outros. E é nesse sentido que ele apreciava muito o Neto, mas havia coisas em que eles divergiam a sério. Mas evidentemente divergiam mas, no meu ponto de vista, divergiam porque as realidades que eles enfrentavam eram diferentes também (…)”

Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry a 20 de Janeiro de 1973. Na mesma noite Aristides Pereira foi raptado e encarcerado, amarrado, no porão de uma das lanchas da marinha do PAIGC, onde foi maltratado e torturado. A lancha em causa foi interceptada por uma unidade naval soviética que se encontrava no porto de Conakry, a pedido do Presidente Sékou Touré. A memória de Aristides Pereira regista pouco desse período… “Eu estava muito maltratado na altura (…) de maneira que infelizmente é um período que pouco posso falar. (…) Já no barco, eu estava em muito más condições (…) e praticamente perdi a consciência. (…) Levaram-me a ver o funeral [de Amílcar Cabral] mas eu não vi coisa nenhuma. (…) E assim estive até ser evacuado para Moscovo onde fui tratado (…) e só voltei de Moscovo em Junho, e por insistência minha. (…) Só a minha teimosia é que me levou a partir.”

PROCLAMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA EM MADINA DO BOÉ EM 1973

Aristides Pereira regressa para participar no Congresso do Partido…Ah sim. Justamente, a minha preocupação era isso. (…) Fez-se o Congresso para eleger o novo Secretário-Geral depois da morte de Cabral, então sou eleito pela primeira vez Secretário-geral do PAIGC e depois, num outro Congresso, decidimos a proclamação do Estado da Guiné-Bissau.”

Sob a presidência de Luís Cabral, a Guiné-Bissau foi reconhecida internacionalmente tornando-se a primeira colónia portuguesa africana a conquistar a independência. O percurso de luta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, que até aí tinha sido comum seguia agora caminhos diferentes.

“É um Partido que está a lutar pela independência da Guiné e de Cabo Verde, mas que a luta aqui na Guiné progrediu de uma certa forma, e a luta em Cabo Verde progrediu só do ponto de vista clandestino, muito limitado, principalmente a nível dos centros urbanos e mais nada. (…) Mas fica sempre a questão de Cabo Verde. O que fazer? Ora, partimos foi do princípio do seguinte: temos que partir das realidades. Temos de facto na Guiné uma situação de um território independente e soberano que tem parte ocupada por tropas estrangeiras. Sim senhora, muito bem! Mas Cabo Verde está numa situação ainda de luta clandestina. (…) E portanto, temos que respeitar esta situação que existe. Cabo Verde é neste momento uma colónia portuguesa, ainda. (…) Portanto temos que nos cingir a esta realidade. Batermo-nos para inverter esta situação (…) para também poder proclamar o Estado e fazer a sua independência e consequentemente avançar no plano de unidade. (…) Sim senhor, havia uma situação de dois países, portanto tinham de ter sempre em atenção que eram dois países. Não eram países que estavam ligados por laços culturais ou por, digamos, territórios nacionais. Ora, nós já conseguimos a independência da Guiné. Vamos nos bater para conseguir a independência de Cabo Verde. (…) Isso, que não se realizou, o que deu lugar a tudo o que a gente viu. A questão da incompreensão e também houve, digamos que podemos concluir, uma certa traição aos próprios objectivos que nós tínhamos fixado no estatuto do Partido.”

O assumir da liderança

A morte de Amílcar empurra Aristides Pereira para a liderança não desejada, mas em consciência considerada necessária. “Isso vem de uma convicção profunda de que cada um de nós tem um papel a desempenhar conforme as suas possibilidades. E, no meu caso pessoal tive a sorte de encontrar pelo caminho um líder com o nível de Cabral. E eu devo dizer nunca me passou pela cabeça liderar fosse o que fosse. Não, eu queria era que a situação na minha terra mudasse e para isso atirei-me ao mar. “Vamos nos bater. Vamos conseguir isso”. E é nessa base que atiro-me de cabeça sem ter nada mais em conta se não que o objectivo final que é a criação de condições mínimas que é para que a nossa gente possa viver de maneira digna, de uma maneira aceitável para todos. (…) No entanto, depois, o destino quis que as coisas se atrapalhassem um bocado, com o assassinato do Cabral, com isso… tudo ficou baralhado. E tive que fazer face a toda esta situação. Porque não há dúvida nenhuma que com o assassinato de Cabral criou-se uma situação de, ou havia um resgate do Partido ou então seria o fim do partido. (…) Então é aí que fiquei a pensar quem seria a pessoa indicada para substituir Cabral. E infelizmente, fazendo a pesquisa de ponto de vista íntimo a este respeito, e sem sombras de falsa modéstia ou coisa parecida, cheguei à conclusão de que tinha que ser eu absolutamente, apesar de todos os contras que pudessem existir.”

“Quando morre um velho africano, queima-se uma biblioteca” (Amadou Ampaté Ba)

A 22 de Setembro passado morreu Aristides Pereira. O queimar de uma biblioteca que tinha plena consciência da necessidade de preservar a história para as gerações que se seguem.

“Eu acho que há um esforço positivo neste sentido. Mas penso que está longe ainda das necessidades. Eu penso que os governos, os nossos respectivos governos deveriam dar um pouco mais de atenção a esta questão. Porque isso é uma questão da história. A nossa história passada condiciona todo um futuro. Temos consciência disso. E penso que mais meios, quer humanos, quer materiais, devem ser empregados neste sentido. E estimular todos aqueles que têm iniciativas neste sentido de maneira a garantir não só a verdade dos factos, (…) mas também a prioridade daquilo que deve ser a verdadeira ética daquilo que deve ser o historiador dos nossos dias. E isso, penso que vai levar o seu tempo, mas estou crente que passando de governo para governo, vamos chegar á conclusão que de facto, com a contribuição que já se está dando, vai se chegar a bom termo dentro de alguns anos. É claro que já não será nos meus dias mas As bases serão lançadas.”

 

por Associação Tchiweka de Documentação
Cara a cara | 2 Outubro 2011 | Aristides Pereira