A morte de Edouard Glissant
Quem sabe que, na passada quinta-feira de manhã, morreu, em Paris, um homem com uma incrível importância para nós todos? Chamava-se Edouard Glissant. Nascido na Martinica em 1928, era acima de tudo poeta, mesmo quando era filósofo e romancista (prémio Renaudot em 1958 para La Lézarde, o nome do rio vizinho do seu morne Bézaudin). Um colosso de voz delicada, grande amante da vida com olhar malicioso – há que vê-lo com o seu filho mais novo, Mathieu, a regressar aos lugares da infância, no filme Empreintes (retransmissão por France 5 no dia 6) – este enorme pensador de coração já doente deixou-nos aos 82 anos de idade. Ora, Glissant deixou-nos antes que a maior parte das pessoas saiba o indispensável da sua obra, o seu pensamento humanista para a compreensão profunda e sustentável do nosso tempo. Porquê? Considerado de acesso difícil, o inventor de Uma antologia da poesia de Todo-mundo não tinha o sentido do compromisso. Era tudo ou nada. E se não se gostava dele como era, ele escolhia permanecer íntegro na sua obra em vez de sofrer a sua deformação simplificadora.
Mas a reputação que rodeia Glissant é excessiva, até abusiva, porque não é assim tão “complicado” aceder aos seus escritos. Basta deixar-se levar pela corrente das suas palavras como o corpo que se deixa ir na onda. Então, sente-se o movimento das profundezas do mundo, os movimentos que lhe dão ritmo e as relações que unem um ser ao outro, seja qual for a sua origem. Glissant disse tudo acerca da mestiçagem, da diversidade, das migrações, das conversas possíveis entre os homens para lá das fronteiras, das noções de nação ou de identidade nos nossos dias, e para aqueles que nos esperam. Reflectiu sobre as mudanças do nosso tempo como nenhum outro.
O todo-mundo
Efectivamente, do lugar onde nasceu, esse pequeno país miscigenado da Martinica, forja de raças e de povos, laboratório das diferenças reunidas num lugar marcado pela escravatura, dependente da França, o poeta mostrou que a História tinha dado ao Ocidente a superioridade do discurso, a grandeza da conquista, o poder do colono. O seu primeiro grande poema, Les Indes (As Índias) (1956) deixa perceber a conquista pela voz do conquistador e pela, sempre ausente, do conquistado. No mesmo ano, o seu ensaio Soleil de la Conscience (Sol da Consciência) adivinha “que já não haverá cultura sem todas as culturas, nem uma civilização que possa ser metrópole das outras, nem um poeta que possa ignorar o movimento da História”. Tudo já está em marcha neste livro magnífico e maior. E fácil, é preciso que se diga! Foi reeditado por Gallimard, como a maior parte da sua obra. Do laboratório antilhano, Glissant estende a experiência daquilo que ele designará o Todo-mundo (Tout-Monde) ao mundo inteiro, e inventa o conceito não de crioulidade, demasiado fechado, mas de crioulização, processo aberto e em marcha que assenta nesta frase em que se deve meditar seriamente: “Eu posso mudar ao mudar com o outro sem me perder nem desnaturar”.
Nasceu a “poética da relação” e esta mostra que, através dos diálogos fecundos entre os imaginários, cada localidade, cada espécie, no tempo da mundialidade, esta “realidade prodigiosa”, reverso da mundialização uniformizante, pode fazer ouvir a sua partitura.
A sua última obra, o incrível poema universal, tecido de textos vindos de todas as culturas e de todas as épocas, a sua Antologie Poétique du Tout-Monde (Antologia poética de todo-mundo), é disso testemunho. “Um livro para uma vida”, diz Emanuelle-Collas, que, desde 2007, através da sua editora Galaade, deu visibilidade a Glissant graças a uma sucessão de pequenos textos em forma de manifesto, muitas vezes redigidos em colaboração com Patrick Chamoiseau, os dois formando um binómio de mestre e discípulo. Quando as paredes caem [ao qual veio de certa forma responder Éloge des frontières (Elogio das fronteiras) de Régis Debray], L’intraitable beauté du monde (A inefável beleza do mundo) dirigido a Barack Obama, cuja ascensão saudaram em conjunto, ou ainda esta antologia de textos sobre a escravatura, que a editora queria poder difundir junto de todos os estudantes do ensino secundário…
Ruídos
Ler Glissant é, antes de mais, sentir, voltar a sentir os imaginários que cada vez mais são levados a encontrar-se lado a lado, é ultrapassar o que os seus detractores chamam “abstrusos” para perscrutar, por trás dos conceitos, os ruídos do mundo tal como ele é.
Aliás, Édouard Glissant era muito paciente na sua grande impaciência. Deu aulas durante mais de vinte anos nos Estados-Unidos. Estava sempre pronto a repetir uma definição, porque a repetição, e até a iteração reivindicada, fazia parte das noções que ele arvorava: maneira de ancorar, nas consciências, a sua relação com o mundo, lentamente, mas com segurança. Ele convidava a prolongar os intercâmbios no seio do Institut du Tout-monde, que ele criou com os indefectíveis apoios da Casa da América Latina e a Fondation Agnès B que a sua esposa Sylvie dirige. Para começar a percorrer o arquipélago Glissant, o seu último livro de conversa com Lise Gauvin, L”imaginaire des langues, (O imaginário das línguas) que acaba de ser publicado por Gallimard, é uma entrada límpida que se aconselha. Para entender o mundo tal como o seu pensamento no-lo ilumina, sob o sol desta consciência única e que a obra imortaliza.
Entrevistado em sua casa em Maio de 2010 na altura da publicação de Anthologie poétique du Tout-Monde (éd. Galaade), Edouard Glissant fala da identidade-relação.
TRANSCRIÇÃO do VÍDEO (VER EM Point.fr)
Não podemos… Não podemos ter a intuição de nós mesmos enquanto ser se não o ligamos a todos os seres do mundo, isto é, não podemos, hoje, viver na identidade se não vivemos na relação. Isso é… nem sequer é uma verdade, é um dado da condição da existência das humanidades de hoje.
Não vivemos na definição, mas na relação.
Bibliografia
nas éditions Gallimard.
nas éditions Galaade.
Não perca:
France culture : journée spéciale le vendredi 4 février.
Soirée et nuit de veillée de 22 h 15 à 23 heures, rediffusion de Hors champs : Édouard Glissant interviewé par Laure Adler (premiere diffuson le 3 décembre 2010)
“La terre, le feu, l’eau et les vents”, par Édouard Glissant et ses invités, retransmission d’une soirée enregistrée à l’Odéon le 3 novembre 2010.