Dockanema: a realidade surpreendida e reinventada

No conjunto das disciplinas artísticas, e não só, que perseguem a representação da realidade, o documentário é, certamente, uma das que mais interrogações provoca. Tradicionalmente virado para um olhar fragmentado do mundo que nos rodeia e do devir do que acontece, o documentário actual coloca-nos problemas e desafios acrescidos quer na tentativa de enquadrá-lo dentro de uma determinada tipologia, quer na interpretação dos significados que dissemina.

48, de Susana Sousa Dias48, de Susana Sousa DiasSe, por um lado, é aí mais intensamente explorada a perspectiva do realizador, por outro, as aproximações ao cinema tradicional, enquanto arte de figuração da realidade, são maiores.

Daí o campo ambíguo que se nos abre em que, muitas vezes, vemos cruzarem-se elementos e motivos desconcertantes, com as pessoas filmadas agindo como personagens de uma história de ficção e com as situações retratadas surgindo, cada vez mais, com um grau de elaboração que põe em causa a sua dimensão factual ou, se quisermos, documental.

Habituados que estamos a acompanhar ou a ouvir falar de festivais de cinema, com as suas intermináveis e apelativas procissões de estrelas hollywoodianas, com as megatransmissões televisivas que nos prendem horas a fio nos sofás das nossas casas, com as correrias frenéticas de fotógrafos tentando imortalizar momentos e gestos das figuras em cartaz, uma pergunta pode, de imediato, assaltar-nos, diante desta 5ª edição do Dockanema: afinal, para que serve um festival de documentários, mais a mais, num país e numa cidade na periferia dos grandes circuitos cinematográficos?

Na esteira das edições anteriores, além de uma pródiga e variada oferta de propostas de filmes, não só de Moçambique, mas também da região e de outras partes do mundo, são nos prometidos debates, palestras e encontros profissionais que serão, sobretudo, momentos de grande interacção entre produtores, realizadores, jornalistas, críticos e público, em geral.

Digamos, face a isto, que uma das funções deste festival, e à semelhança de outros, é exactamente o de proporcionar um espaço especial de convívio social e intelectual tendo como objecto o próprio documentário e as suas ilimitadas potencialidades, quer como arte, quer como lugar de interpelação da realidade.

 

Kinshasa Symphony, de Matin Baer e Claus WischmannKinshasa Symphony, de Matin Baer e Claus Wischmann
Por outro, se tivermos em conta, que na origem, o cinema caracterizava-se por captar e reproduzir, em silêncio, momentos e fragmentos da realidade, teremos que conceder que o documentário, pelas suas características e motivações, é um reencontro com essa mesma origem, uma celebração e uma pedagogia de uma memória que o tempo, este nosso tempo de todas as acelerações e de todas as perversões, tende a fazer esquecer.

O documentário, em especial no nosso caso e de todos aqueles que apostam neste género para contornar a insensibilidade dos que decidem, os constrangimentos de ordem financeira e outras formas de precariedade, funciona também como um acto de resistência. No caso específico de Moçambique, a actividade cinematográfica cinge-se heróica e exclusivamente ao documentário, à curta-metragem. Ao concretizar a sua 5ª edição de forma ininterrupta, ao mesmo tempo que alarga e aprofunda o alcance, dentro e fora do país, das suas realizações, a equipa do Dockanema e todos aqueles que tornam possível esta saga, mais não fazem do que tornar duradoiro e largamente impactante este acto insurreccional. A inteligência, a imaginação e a determinação são, afinal, pilares inamovíveis de todas as utopias.

Come Back Africa, de Lionel RogosinCome Back Africa, de Lionel RogosinSerão, pois, dez dias animadíssimos. Estarão em cartaz mais de oitenta filmes e em que o documentário, uma vez mais, será o protagonista-mor. E, aqui, teremos a oportunidade de ver como a vida, nos seus múltiplos matizes e valências, foi surpreendida pelo olhar indiscreto e inconformado das câmaras. Para fruirmos, para nos divertirmos, para nos actualizarmos, para reflectirmos, mas talvez para nos reencontrarmos com uma condição que o quotidiano teima em anular. Isto é, reinventarmo-nos, mesmo que momentaneamente, através do sentido crítico e questionador que nos deveria identificar e distinguir perante a profusão de imagens e temas que cruzam história, cultura, ciência, política, economia, geografia, ecologia, etnografia, etc.

Pertence já ao passado a ideia de que cultura, a arte cinematográfica, neste caso, é apenas diversão. Hoje, mais do que nunca, fala-se em indústrias culturais, em turismo cultural como factores de desenvolvimento dos países. O Dockanema é, portanto, uma oportunidade dourada para a qual todos deveríamos despertar e assim contribuirmos para a redução do fosso que nos separa do futuro.

por Francisco Noa
Afroscreen | 20 Setembro 2010 | Dockanema