“Digam simplesmente a verdade”

Uma lição de cinema de Samba Félix Nduaye (Fespaco 2005)

Há algumas semanas atrás, telefonei para Félix em Dakar, para lhe dizer que o cineasta Ramadan Suleman, com quem trabalho como directora de produção e arquivista num documentário sobre os movimentos de libertação africanos, gostaria de utilizar imagens do presidente senegalês Abdoulaye Wade, que ele tinha visto num dos seus filmes. Félix aceitou de imediato pô-las à disposição, precisando que era obrigatória a entreajuda dos cineastas. Foi a última palavra do meu amigo desaparecido ontem; é também o que vou reter dele, um cineasta generoso, de coração e de talento imensos. À maneira de homenagem, desejo partilhar estes extractos da sua lição de cinema no Festival Panafricano de cinema e de televisão, Fespaco 2005, animada por Jean-Marie Teno no Centro Cultural Francês de Ouagadougou, no âmbito do concurso de documentários, “Côté Doc”, do festival. Extraídas das minhas notas, só aparecem as suas respostas, e não as perguntas colocadas. Obrigado por esta lição magistral e “até sempre”; vais deixar um grande vazio na família do cinema africano.
(Claude Haffner 7/11/2009).

**** **** ****

Samba Félix Ndiaye em 2007, ilha de Ngor, fotografia de Olivier BarletSamba Félix Ndiaye em 2007, ilha de Ngor, fotografia de Olivier BarletA maioria dos cinemas do mundo nasceram com o documentário. O cinema africano também, com pessoas como Sembène, o mais velho dos veteranos, que isso nunca seja esquecido.

Quando se quer fazer cinema, é necessário, antes de tudo, conhecer a história do cinema. É o que costumo dizer aos jovens do Média Centre de Dakar.

Os filmes contam-nos histórias, mas os filmes também somos nós. Quando alguém vai fazer um filme, aquilo de que vai falar tem que estar já dentro de si. Os projectos devem ser pessoais, ninguém pediu ao realizador para contar esta história, por isso, é necessário explicar por que razão a vai contar.

Eu venho de um movimento que se chamava “Africanos da Independência”. Na época áurea, reuníamo-nos nos cineclubes para falar de filmes, com maoïstas e outros trotskistas. Não partilhávamos as mesmas ideias políticas, mas conseguíamos ficar uma noite inteira a falar de cinema uns com os outros.

Depois de alguns anos em Paris, regressei a Dakar com uma câmara de 16 mm para fazer uma série de pequenos documentários sobre artesanato. Rodeei-me de amigos para fazer cinco filmes num mês. Com estes amigos, nunca falo antes da rodagem. No momento de filmar, digo, por exemplo, a Maguette (grande engenheiro de som senegalês) “seria bom registares tal som” e ele volta com o tal som. É assim que em Les Malles, um dos cinco filmes desta série, há um som muito trabalhado sobre os martelos e o vento, que produz aquela “sinfonia”. Passa-se o mesmo com as imagens. Eu queria que se fizesse um trabalho sobre o corpo, como para uma dança, semelhante ao final de um “ballet”.

Quando assistia a ficções africanas constatava que, no final do filme, me ficava apenas um registo sobre os lugares, as paisagens, as pessoas…mas que faltava uma encenação. Além disso, acho-as longas e muitas vezes aborrecidas. Peço desculpa aos colegas, aos amigos que fazem ficção. A certa altura, toda a gente desejava fazer filmes com grandes orçamentos sem equacionar a questão técnica: O que é isso de iluminar a noite? O que é o trabalho de luz? Como fazer os actores movimentarem-se, falarem? Como fazer sentir um cheiro? Porque também há cheiros nos filmes. Eu achava que estes amigos não reflectiam muito sobre este “background cultural”: sobre o que os filmes não dizem, sobre o modo de contar a nossa História africana.

A minha reflexão incide sobre o modo como se pode fazer cinema em África, à nossa maneira: a maneira como nos mexemos, a maneira como saboreamos, como ouvimos as coisas, como vemos as coisas, a nossa percepção do mundo.

No meu caso, eu alterno: um dia faço um filme com um canal televisivo, no dia seguinte posso fazer outro sem dinheiro e sem “canal”. O filme que tenho vontade de fazer e que a televisão não me paga, seja o canal Channel 4 ou o canal Arte. Nós temos dois canais de televisão no Senegal, e sempre me pergunto quem decide a compra dos filmes, quando vejo que não adquirem filmes documentários que falem de assuntos que nunca foram abordados. Mesmo simbolicamente, a metade do preço, porque é que não compram os filmes, quando têm dinheiro para as telenovelas? Porque os jovens que hoje fazem filmes no Senegal têm talento, e falam do seu país. Na minha opinião, eles revelam a mais moderna cinematografia do que se fez até hoje. Estes documentários podem ser exibidos nas salas, mas infelizmente nem sempre acontece.

Porque tenho vontade de falar de Senghor? Foi uma figura que combati durante mais de vinte anos, que me impediu de viver quando eu era jovem, falava uma linguagem que eu não compreendia com a sua francofonia, dava-nos lições de literatura todas as noites pela rádio e televisão senegalesas, durante duas horas. Mas num dado momento, disse para mim próprio: agora que me sinto próximo, vou fazer-lhe uma homenagem. Por isso é que, há pouco, eu disse que, mesmo quando alguém conta a história de outro, é a sua própria história que está a contar: Eu aprendo sempre ao acabar um filme, descubro aquilo que procurava ao fazê-lo (…). Fiz filmes também para isso, para encontrar os outros, para aprender.

Há uma coisa que experimentei em Ngor, foi a observar a aldeia (…). Só se mostra aquilo que se vê. Não se pode falar do que não se viu.

A maior parte das coisas que são mostradas no Fespaço actualmente, são realizadas por gente do exterior. Não se podem resolver os problemas a partir do exterior. Já não é o digital, as novas tecnologias, uma câmara DV ou não sei o quê, o melhor ou mais fácil. Por detrás deste avanço técnico, é preciso haver discussão.

Decidi voltar a viver no Senegal, decidi dedicar-me à formação dos jovens porque, ao ensinar, dou-me conta de que me estou a enriquecer. O Media Centre existe há sete anos, é uma escola que já formou uma centena de jovens que são a alternativa da televisão senegalesa. No Media Centre, há seis mesas de montagem e doze estudantes por ano e outros que vêm fazer formações pontuais. Mas ninguém fala disso!

Estou desolado, o que se passou no Rwanda é inimaginável. E que haja apenas um ou dois filmes sobre o que se passou, não chega. Os cineastas precisam de saber que se trata do seu continente. Deixem de falar de barreiras, de países, de regiões. É preciso estar preparado para atacar em todas as frentes. Na minha opinião, o subdesenvolvimento está nos espíritos. África é rica, muito rica e continua-se a afirmar que é pobre. É isso que eu tento dizer.

Se alguém tem qualquer coisa a dizer, a partilhar, então diga-o. Não se trata de dar lições, mas de dizer apenas quem você é. O cinema permite isso: trocar, mas é preciso que cada um seja verdadeiramente ele próprio. O cinema é a arte da mentira, mas quando não se diz a verdade, percebe-se logo: digam simplesmente a verdade, digam apenas quem são e sobre o que querem falar!

 

publicado na versão original em Africultures

Translation:  Maria José Cartaxo

por Samba Félix Ndiaye
Afroscreen | 22 Agosto 2010 | cinema africano, documentário