Bab Sebta - corpos resistem ao deserto do real

Bab Sebta (2008), um filme de Frederico Lobo, Pedro Pinho, mostra-nos como podem os corpos resistir ao deserto do real. Como resistem os corpos ao sistema imposto e dominante, que actua de forma imperativa e abusiva. Como se o mundo fosse susceptível de ser privatizado. É este mundo tomado pelo capitalismo que as portas de Ceuta enfrentam.
Setembro de 2005. Um campo de refugiados africanos, vindos de vários pontos mais a sul do continente, enfrenta a terrível tarefa de passar a fronteira marítima na esperança de alcançar a Europa e, talvez, os Estados Unidos da América.

O filme começa com imagens captadas nos confrontos, em Setembro de 2005. Aliás, este apontamento documental, onde as imagens recolhidas por outros servem o propósito da narrativa, é a forma que o filme tem de nos provocar e de certa maneira de se afirmar perante nós, o público. É uma chamada de atenção para que nos inteiremos do que será a narrativa. As primeiras imagens identificam o lugar, Tanger. Uma aldeia construída sobre o deserto, onde as moradas sofrem alteração de remetente tão cedo quanto possível. Por outro lado, há já uma comunidade estabelecida, que se cuida e se protege e, unida, escuda os medos, os inimigos, da Europa castradora e imperativa nas suas defesas perante o assumido outro, o que vem para perturbar, o delator. Um dos refugiados em Tanger profere um provérbio árabe que diz: - Para reinar é preciso dispersar. Se deixas as pessoas unidas e sólidas não as consegues comandar. Esta é a realidade que se vive nesta colónia, onde viver em clã tem vantagens de defesa. É, contudo, perversa a maneira como o grupo é controlado, aliás, visitado permanentemente pela polícia.

Bab Sebta apresenta-nos uma aldeia onde Vigiar e Punir é a directriz que mantém estes refugiados numa situação menor, até primária, no sentido humano. Quando o vi pela primeira vez, este filme lembrou-me Hunger (2008), do Artista plástico Steve McQueen. Também neste filme, os homens são ameaçados, controlados, manietados e, da maneira mais perversa, deslocados. Se, em Hunger, o lugar de repreensão, de alienação, é uma prisão – Maze –, em Bab Sebta é-nos apresentado um campo de refugiados. Ambos os lugares são, segundo o pensamento de Foucault, heterotopias, lugares onde certas coisas são colocadas porque foram deslocadas. Heterotopias são lugares sem lugar onde existirem. São, mas não existem. Em Bab Sebta, o campo surge não só como um lugar vazio de sentido, de passado ou de história, mas também como um lugar onde os refugiados se insurgem com actos de fuga permanentes, dando lugar à afirmação individual e à afirmação enquanto seres humanos dignos de potência. O corpo é, contudo, a única arma de resistência, uma vez tiradas quaisquer outras possibilidades de acção ou reacção. É através dos seus corpos que estes refugiados encontram a possibilidade de recriação, de afirmação das suas vidas.

“Há, de facto, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo não é uma essência, não é propriamente uma coisa: é o simples facto da sua própria existência como possibilidade de potência.”
(Giorgio Agamben, A Comunidade que vem).

Ficha do filme
Título original: BAB SEBTA
Realização: Frederico Lobo, Pedro Pinho
Ano:2008
Produção: Luisa Homem
Direcção de Produção: Filipe Quaresma, Tiago Nabais
Imagem e Som: Luisa Homem, Pedro Pinho, Frederico Lobo
Montagem: Rui Pires, Frederico Lobo, Pedro Pinho, Luísa Homem, Cláudia Silvestre
Co-produtores: Filipa Reis, Gil Ferreira, João Matos
Produtoras: PATÊ Filmes, Gil&Miller, RAIVA

 

integrado no ciclo África Já Ali

 

Dos autores…

O mundo mundializa-se. As fronteiras atenuam-se. Os mercados liberalizam-se. Os destinos exóticos multiplicam-se. Multidões de turistas circulam, capturando e amalgamando paisagens remotas em máquinas minúsculas. Num piscar de olhos, mercadorias atravessam hemisférios.

Na fronteira sul da Europa persiste-se em excluir uma vasta parte da população mundial desta nova realidade. Insiste-se em montar barreiras intransponíveis a marcar fronteiras imaginárias e transitórias – invisíveis para o fluxo frenético de pessoas e bens que se dirige de Norte para Sul, mas desmedidas para os homens e mulheres que decidiram migrar no sentido inverso.

BAB SEBTA nasceu da perplexidade produzida pelos acontecimentos de Setembro 2005 e pelas imagens que na altura foram difundidas. Os ataques massivos de migrantes subsaharianos às grelhas fronteiriças de Ceuta e Melilla levou-nos a fazer uma viagem ao Norte de África duas semanas após estes acontecimentos e a iniciar a preparação deste filme.

O filme ocorre em volta da caracterização de 4 espaços - 4 cidades ao longo da costa do Norte de África onde se reúnem largos grupos de pessoas à espera de uma oportunidade de passar para a Europa. A aparente inacção que domina o tempo presente destes 4 espaços abre lugar a que, na partilha do quotidiano, se soltem as conversas, se cruzem discussões nos mais diversos dialectos de origem, se construa a narrativa das histórias vividas – onde o passado recente, a viagem, o deserto, o mar, os perigos, os esquemas, surgem com dimensões épicas. Como se o passado e o futuro actuassem como espelho e antítese glorificadora de um presente em que alguma coisa não acontece.

por Rui Manuel Vieira
Afroscreen | 29 Setembro 2010 | Bab Sebta, campos, refugiado