The working class

E como queres tu que estejam?

Tenho de habituar-me aos seus dentes cravados na minha perna. Mais vale ir aceitando a sua existência. Agora digo-te uma coisa, o reconhecimento só é tranquilizador porque é para fora e, é realmente tranquilizador quando sobretudo consegue parar a coisa no tempo, dominá-la. E, por isso, para mim, não é mesmo possível. Eles, pense neles de que forma pensar, vão crescendo para dentro, e por isso, quando me perguntam como estão, pois irrito-me, porque este pensamento em nada muda a minha situação, só faz com que me preocupe e que fique pior, sobretudo, porque não passa de cortesia. Antes? Antes sim, antes eram pássaros escorregando pela chaminé. Esvoaçavam meio mortos no parapeito da janela, esperando-me, sim, estavam sempre à minha espera como em um seu último suspiro, que na verdade era falso, arremessando penas que se colavam à minha roupa, mas não havia dúvida, pelo menos, eram exteriores falsos últimos suspiros. Permaneciam aí, à minha frente, sem nenhum pudor, meio mortos, batendo, quando menos se esperava, uma asa ferida. Será que fechei bem as janelas? Bom, mas isso era dantes, quando era clara a sua exterioridade, mas já ninguém se lembra…

Nunca imaginei um dia vir a sentir nostalgia desse tempo.

Edgar Oliveira, vista instalação The Working Class, 2011.Edgar Oliveira, vista instalação The Working Class, 2011.

Se conseguisses ver-me, podes ter a certeza que nada mudaria. Tudo se manteria submerso, como até agora. Tudo igualmente molhado, e nem com o pé em água morna conseguiria acalmá-los. Não mudaria nada, tivesse ou não esquecido de descongelar os filetes de pescada e de pagar as contas, tivesse ou não decidido, por fim, mudar de cidade, continuaria obrigada a conviver com eles, porque que remédio tenho eu? E com esta idade… Ainda que me assegurem uma e mil vezes que é normal, é tão difícil… esta pele começa a ganhar este tom verde, e começo lentamente a supurar pequenas membranas, das que com nada logro estabelecer uma comparação, mas ao tato, bem poderia dizer que são asas recortadas para microscópios. E eles, nada, não param quietos, por mais precauções que tome e cuidados que lhes dedique. E daqui a uns anos, se é que sobrevivo, como serão? Irão crescendo e, inevitavelmente vão-me consumindo? Mas bom, isso também será fruto do tempo, ainda que isto pouco ou nada me diga sobre a intensidade e a velocidade do desaparecimento. Além disso ninguém sabe dizer-me, ou ninguém se atreve a dizer-me, como virá a doer.

Não saber como prever as suas oscilações e os seus dentes irrita-me profundamente, sobretudo porque não param quietos e picam.

É, portanto, normal que todas as coisas tenham essa fina camada de musgo escorregadia, se pensares bem, todas as coisas largam um leve tom verde, um verdor do antes ou do depois, que
não é relativo ao tempo abstrato, e do qual qualquer um de nós se tem de proteger, tomar as devidas precauções, nunca embrulhar a carne em papel com letras e manter sempre uma distância prudente com as coisas, porque se não for o tempo, bem podem ser e serão outras as possíveis causas, e cada um tem de proteger a sua vida, percebes? O mínimo descuido pode ser fatal, porque, se estão ou não à tua espera ou à espreita, pouco importa, a qualquer momento, podem atacar. E há tantos poros, tantas aberturas. E se for eu mesma que, nalgum momento, por descuido ou por cansaço ou pelos dentes cravados na minha perna, resvale por estes caminhos molhados, tropece em alguma das suas avultadas rugosidades e desvaneça? Ninguém notaria a minha ausência… mas claro, isso é perfeitamente compreensível, porque para os outros e, será mau admiti-lo mas como eles para mim, sou uma pessoa como outra qualquer. E por isso, vou estar bem mais atenta.

 

Artigo originalmente publicado na revista Este Corpo que me Ocupa, Buala 2014.

por Candela Varas
A ler | 8 Outubro 2020 | Abstrato, tempo, Working Class