O ensino de cultura afro-brasileira no Brasil

A construção do currículo escolar: novas epistemes para a efectivação da lei 10639/03

Este é um mundo no qual nada de importante se faz sem discurso

Milton Santos

A escola deve formar homens inventivos, criativos que não repitam o que outras gerações fizeram.

Jean Piaget

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e, se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto.

Nelson Mandela

O objetivo deste artigo é promover uma reflexão sobre a implementação da Lei 10639/03, a partir da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que tornou obrigatório, em todo o currículo oficial da Rede de Ensino, a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Desta forma, os conteúdos curriculares devem abordar a História da África e dos Africanos, considerando a luta dos negros no Brasil, a cultura negra e o(a) negro(a) na formação da sociedade nacional, resgatando a fundamental contribuição que deram para o desenvolvimento e crescimento das áreas social, econômica e política, tendo em vista uma educação que articule a garantia dos direitos sociais e o respeito aos direitos humanos.

Mahla, filme de Mickey FonsecaMahla, filme de Mickey Fonseca

 

Assim, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais (2005) que reiteram a necessidade de projetos que discutam as premissas acima, valorizando as diferenças e a diversidade da nação brasileira desde a educação infantil, o que, acreditamos, deva ser a base constitutiva do trabalho, porque as crianças estão em fase de formação e construção de saberes e habilidades, sendo esse espaço um local privilegiado para uma efetiva educação para a diversidade.

Logo, uma das exigências básicas está na ampliação do foco curricular, tendo em vista o caráter multidisciplinar e interdisciplinar de todo e qualquer conteúdo, haja vista a construção de projetos pedagógicos que valorizem os saberes comunitários e a oralidade como instrumentos construtores dos processos de ensino-aprendizagem, conforme exposto no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais (2009, p. 37).

O fomento de políticas públicas, institucionais, através de programas de ações afirmativas, tem se guiado pelas estatísticas do IBGE (2006) que registram que 49 por cento da população brasileira é afrodescendente e apenas 5 por cento das matrículas no Ensino Superior são ocupadas por negros; Também 28 por cento, aproximadamente de negros e pardos, são obrigados a deixar de estudar para trabalhar, o que aponta para a distorção idade-série, aferidas pelo Censo Escolar (2007) que traz a seguinte tabulação: há 33,1 por cento de brancos na 1ª série do ensino fundamental e 54,7 por cento na 8ª; em detrimento de 52,3 por cento de negros na 1ª série e de 78,7 por cento na 8ª. 

imagem de Alex da Silvaimagem de Alex da SilvaA pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), a pedido do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), concluiu que 96,5 por cento dos entrevistados têm preconceito com relação a portadores de necessidades especiais, 94,2 por cento têm preconceito étnicorracial, 93,5 por cento de gênero, 91 por cento de geração, 87,5 por cento têm preconceito socioeconômico, 87,3 por cento de orientação sexual e 75,95 por cento têm preconceito territorial. Por tudo isso é importante considerar que 

“A ausência de impacto dos estudos sobre relações raciais no campo da educação se expressa no fato de os diagnósticos educacionais, os estudos sobre o aproveitamento escolar e a formação de professores, raramente incorporaram as variáveis ‘raça’ e etnia nas suas reflexões”. (PINTO, 2002, p. 106)

De acordo com dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (2009), a taxa de analfabetismo entre negros e pardos, a partir de 15 anos de idade, é de 13,3 por cento para os negros e de 13,4 por cento para os pardos. Entre os brancos, esse número fica em 5,9 por cento. A população branca de 15 anos ou mais tem em média, 8,4 anos de estudo. Enquanto entre negros e pardos a média é de 6,7 anos. Desta forma, os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos e Educação Superior, deverão providenciar:

•    Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais;
•    Apoio sistemático aos professores para a elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnicorraciais;
•    Mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas, estabelecimentos de ensino superior, secretarias de educação, assim como levantamento das principais dúvidas e dificuldades dos professores em relação ao trabalho com a questão racial na escola e encaminhamento de medidas para resolvê-las, feitos pela administração dos sistemas de ensino e por Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros;
•    Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino superior, centros de pesquisa, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, escolas, comunidade e movimentos sociais, visando à formação de professores para a diversidade étnicorracial;
•    Instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupos de trabalho para discutir e coordenar planejamento e execução da formação de professores para atender ao disposto neste parecer quanto à Educação das Relações Étnicorraciais e ao determinado nos Art 26 e 26A da Lei 9394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continuada e Certificação de Professores do MEC;
•    Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular em todos os níveis de ensino através da formação continuada dos profissionais da educação e do magistério.

 Assim, a sedimentação de um trabalho frutífero, por parte das Secretarias de Educação, Municipal e Estadual, deve se pautar pelos seguintes aspectos metodológicos (LIMA, 2005):

•    Histórico – raízes históricas do preconceito e da discriminação;
•    Culturológico – estudo do preconceito cultural e do etnocentrismo, analisando a linguagem e discursos racistas;
•    Antropobiológico – análise das teorias pseudocientíficas de superioridade racial, desmistificando-as;
•    Sociológico – estudo da situação socioeconômica do negro na sociedade, investigando as situações de baixa renda;
•    Psicológico – estudos dos mecanismos de rejeição e os reflexos condicionados desse movimento, objetivando mudanças comportamentais.

A partir da proposição de algumas atividades básicas como:

•    Cursos de Formação Continuada;
•    Oficinas;
•    Palestras;
•    Confecção de material didático-pedagógico;
•    Acervo bibliográfico com videoteca/cdteca;
•    Estudos individualizados e grupos de estudo/pesquisa.

Tendo em conta alguns referenciais formativos e diagnósticos no que se refere (ROCHA, 2007, pp. 26-7):

A)    Ao currículo: concretizando uma proposta não eurocêntrica, mas vinculado à realidade brasileira de diversidade e pluralismo.
B)    Às relações escolares: restabelecendo canais de comunicação constante, troca de experiências e partilha na responsabilidade de construção da comunidade escolar.
C)    À escola: consolidando uma cultura escolar cotidiana de reconhecimento e respeito às diversidades, as peculiaridades e ao repertório cultural do povo negro1, sem hierarquizações.
D)    Ao(À) professor(a): assumindo a dimensão de pesquisador(a) de sua própria prática e de sua ação educativa quanto à temática racial, preparando-se ética e pedagogicamente neste sentido.

E)    Aos recursos materiais e didáticos/rituais pedagógicos: repensando os rituais pedagógicos cotidianos e/ou efemérides da rotina escolar para que não se transformem em momentos de constrangimento e manifestações de discriminação e racismo, incluindo a análise e a leitura crítica dos mesmos,  a fim de verificar a existência de preconceitos e/ou estereótipos de inferiorização.

imagem de Alex da Silva (Cabo Verde)imagem de Alex da Silva (Cabo Verde)

Pelo exposto, é urgente a proposição de sessões de debates sobre questões étnicas e diversidade cultural, no intuito de articular ações coletivas para a construção de uma proposta pedagógica de intervenção, objetivando que as discussões sirvam de ferramenta para os educadores avaliarem como os programas de disciplinas e planos de ensino podem ser reestruturados para a aplicação da Lei 10.639/03, bem como da Lei 11645/8 que parte do mesmo princípio ao instituir políticas públicas de combate ao racismo, afirmando a importância e os valores fundamentais das contribuições indígenas, passadas e presentes, para a criação da nação brasileira.

Assim, é preciso ter em conta que as discussões teórica e conceitual sobre as relações raciais e educação estejam acoplada a ações concretas, através de orientações didático-pedagógicas que propiciem a inserção do tema étnicorracial no currículo escolar, tendo em vista um real projeto de educação que possibilite a inserção social e igualitária, destravando “o potencial intelectual, embotado pelo racismo, de todos(as) os(as) brasileiros(as), independentemente de cor/raça, gênero, renda, entre outras distinções” (MEC, 2005, p. 11).

Nunca é demais reiterar que a historiografia oficial foi responsável pelo silenciamento/apagamento da história negra e a sua trajetória política de luta pela cidadania, pela dignidade, assujeitando-a e, imaginariamente, atualizando-a através de um  discurso eurocêntrico, totalmente unificador.

Assim, não podemos esquecer que a educação, como processo amplo e complexo de construção de saberes culturais e sociais, é parte fundamental do acontecer humano e, nesse sentido, reiteramos, a falta de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. (MEC, 2005, p. 11).

Desta forma, o pensar sobre essas questões contribui para tornar mais competente e profícuo o debate, no âmbito de nossa atuação docente, sobre a importância da construção coletiva de uma proposta pedagógica transformadora já que o educar é tarefa comum.

No âmbito de tais reflexões, compreendemos que as ações pedagógicas devem estimular/permitir o acompanhamento das transformações socioeconômicas e culturais em que a comunidade se acha inserida, no intuito de formar o cidadão, ou seja, buscar a competência do sujeito em se fazer História, partindo-se das condições específicas de produção dos discursos e do contexto de uma sociedade de classes. Diz-nos Michel Pêcheux: que “Todo indivíduo humano, quer dizer social, não pode ser agente de uma prática a não ser que assuma a forma de sujeito. A forma sujeito é, com efeito, a forma de existência história de todo indivíduo, agente de práticas sociais. (PÊCHEUX, FUCHS, 1975, p. 40). O fato, portanto, apresentado pelo crítico francês, demonstra o empenho, cada vez mais constante, da equipe escolar em desconstruir a idéia da inevitabilidade. É preciso ter em conta quem educa, onde se educa, por que se educa e para quem.

Nesse sentido, o trabalho conjunto nos auxilia na compreensão do processo da ação educativa, permitindo-nos criar estratégias para tentar reverter o quadro caótico que se apresenta: um enfoque mais preciso nas competências a serem desenvolvidas na Educação Básica, de forma que os conteúdos curriculares se constituam em meios reais para o desenvolvimento das capacidades/habilidades requeridas após uma etapa de escolarização. 

A aquisição de conhecimentos em sua pluralidade, desencadeando saberes, fazeres e habilidades, que expressem a potencialidade individual e de grupo, é a força motriz dos Parâmetros Curriculares Nacionais cujo esforço diário é fazer com que o educando domine os conhecimentos de que necessita para crescer como cidadão plenamente reconhecido e consciente de seu papel na sociedade.

A partir desse ponto, as práticas pedagógicas atuam como um conjunto de atos, reflexões e procedimentos, intencionalmente educativos, que se formalizam em sala de aula, mas podem e devem extrapolar as paredes desse espaço, saltando os muros da Unidade Escolar.

Assim, com o objetivo de favorecer a constituição de conhecimentos, devemos fomentar questões relativas à cooperação interdisciplinar, a autodisciplina, ao aprendizado e o respeito a regras ou a construção, em parceria, de novas regras no que concerne à articulação dos saberes entre a Escola e a Comunidade, de modo que esta participe, ativamente, dos projetos ali desenvolvidos e que se construa a tão sonhada educação para a diversidade. (VICTORINO, 2008, p. 69).

Assim, esperamos que este seja um primeiro passo, uma primeira achega, no intuito de chegar à Humanidade (MATA, 2006, p. 38) como nos fala Alda Espírito Santo que, singelamente, propõe a roda, o princípio da circularidade tão caro às sociedades africanas, tão fundamental nas nossas relações cotidianas, devendo ser o eixo norteador de nossas práticas pedagógicas de ontem e de hoje. Diz a poeta são-tomense:

Alda Espírito Santo, S.Tomé 2008, fotografia Marta Lança Alda Espírito Santo, S.Tomé 2008, fotografia Marta Lança Quando o homem de todos os planetas
For capaz de se revelar
À altura do outro ser humano
No ciclo da existência
E compreender,
Compreender
Que todos os seres vivos
São iguais
No nascimento na morte
E nas estruturas físicas
Que compõem a humanidade
Nesse dia, será uma festa eterna
E o sol
Rodará finalmente,
À volta de todos os continentes.
Compreender será então:
Dar vida real
A todos os seres dos planetas viventes
Planetas chamo eu
Às esfera humanas
Sem corredores estanques.

 

 

A Lei aponta a estrada e o percurso é obrigatório, mas é possível desfrutar do caminho, considerando o trabalho e o saber, o aprender, o fazer e o viver. Então, comecemos.

Karingana ua karingana… 

 

Referências bibliográficas

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil: estratégias e orientações para a educação de crianças com necessidades educacionais especiais.  Brasília, MEC, SEF/SEE, 2001.
_______. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, MEC, SEF, 2002.
_______.  Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. MEC, SECAD, Brasília, Outubro, 2004.
_______. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10639/03. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 11.
_______. Plano Nacional de Implementação das  Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História  e Cultura Afro-brasileira e Africana. MEC, SECAD, Brasília, setembro, 2009.
LIMA, Ivan Costa. Uma proposta pedagógica do movimento negro no Brasil: pedagogia interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo. (Dissertação de mestrado). Disponível em http://www.ufscar.br/teses/PEEDO465.pdf
MATA, Inocência, PADILHA, Laura. (org.). A poesia e a vida: homenagem a Alda Espírito Santo. Lisboa, Colibri, 2006.
PÊCHEUX, Michel & FUCHS, C. Mises au point perspectives a propos de l’analyse automatique du discours. Languages. Paris: Larousse, 1975.
PINTO, Regina Pahim. “A questão racial e a formação dos professores”. In: OLIVEIRA, Yolanda. (org) Relações raciais e educação: temas contemporâneos. Cadernos PENESB, nº 4. Niterói, EDUFF, 2002.
ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Educação das relações étnico-raciais: pensando referenciais para a organização da prática pedagógica. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2007.
VICTORINO, Shirlei Campos. “Atitudes & vivências: discutindo a lei 10639/03 no âmbito escolar”. In: SECCO, Carmen Lucia Tindó. et.al. III Encontro de Professores de Literaturas Africanas - Pensando África. Rio de Janeiro, L. Christiano Editorial, 2008.

  • 1. Também indígena.

por Shirlei C. Victorino
A ler | 12 Outubro 2010 | afro-brasileira, escola, étnicoraciais