O cansaço das peças
Não há como não sentir um arrepio,
ao ouvir as notícias que sobre nós falam
decidindo os nossos destinos uma vez mais
sem termos algo dizer.
Voltamos a ser peças. Voltamos a ser coisas.
após cuidarmos das famílias que não as nossas
após construirmos casas que não serão nossas.
Não há como caminhar em paz,
ao ouvir e ler comentários como
«podes ter nascido aqui mas nunca serás português».
depois de demolidas casas levantadas com sonhos, com amor,
esperança e força
voltamos a ser apenas peças, objectos.
Não há modo de entender o ódio que se lança
online, offline,
no real e no virtual
que a riqueza da diferença
é encarada como deficiência
tipo fraqueza, algo de que não nos devíamos orgulhar
e então, cansados, voltamos a ser peças.
Voltamos a ser produtos
Voltamos a ser como nos primórdios,
como nos forçaram a pretender ser
e vem o peso do cansaço, e vem a força do tempo
relembrar que lá nos foram buscar
para agora nos quererem expulsar.
exaustos sim, cansados sim, e resistimos.
voltamos a ser peças que, em nosso nome,
em nome dos idos,
se elevam resilientes
Voltamos a ser peças que, por nós,
pelos nossos antepassados,
pelos nossos descendentes
se manifestam resistentes.
Voltamos ao que sempre fomos
- à cansada extenuada, resistência.
Voltamos ao que ainda somos,
as peças que jogam a sua sobrevivência.
demolições no bairro Talude Militar, Loures, 2025, foto Expresso