Como é que se escreve “Choriro”?

Do projecto do autor…

Uma, entre outras questões que se colocam ao ler-se o último romance de Ungulani Ba Ka Khosa, Choriro, é a do conhecimento. Trata-se de um apelo a uma discussão epistemológica sobre os desafios que se colocam, num primeiro plano, à ciência histórica, essa narração metódica de passados, na produção do conhecimento a partir de um olhar local, de dentro. Esta proposta pode ler-se na nota que Khosa faz questão de colocar no livro:

“Este retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo, assentou na rica e impressionante História do vale do Zambeze no chamado período mercantil. A intenção do livro foi a de resgatar a alma de um tempo, a voz que não se grudou aos discursos dos saberes. O fundamento histórico valeu-me como porta de entrada ao mundo de sonhos e angústias por que o vale do Zambeze passou durante mais de quatro séculos…”

“Choriro”, um lamento, uma espécie de exorcismo ao “epistemicídio” africano, um discurso que procura resgatar essas vozes abafadas, silenciadas ao longo do processo de produção desse conhecimento que temos sobre nós próprios e sobre outros.

Subjaz neste projecto um fundamento existencialista, a ideia de que o facto dessas vozes vincularem-se ao universo da oralidade não lhes permite afirmarem-se como um discurso válido e promotor de um conhecimento produzido a partir de dentro. Isto significa, ironicamente, que “os discursos dos saberes”, a que Khosa se refere em alusão à epistemologia promovida pelo Ocidente, produziram e promoveram um conhecimento sobre a “nossa” realidade a partir de fora, portanto, não intercambiando os afectos, não ouvindo essas outras vozes, exactamente pela sua natureza ágrafa, imprecisa e dúbia.

… ao testemunho do narrador

Assim se entende por que, em Choriro, os afectos em relação aos objectos observados são potenciados num  jogo de racionalidades que se negam, alegorizando formas variadas de conhecer e teorizar o próprio conhecimento. Veja-se o exemplo:

“Em geral, os indígenas, nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente luzir dos pirilampos, a miríade de estrelas abarrotando o céu, o sussurro das folhas das árvores, ou o longínquo rugir de um leão na savana dos predadores da noite. Eles pasmavam-se com o encantamento de Chicuacha [o padre branco] ante o nascimento, na entrada abrupta da noite, das ilhas de fogo com que os canoeiros e carregadores pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na escuridão das águas, era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que à direita e à esquerda perscrutavam os movimentos humanos. Seguros nos pequenos e confortantes pedaços de terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos répteis das águas. Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos, fenecendo com a madrugada que ia abatendo às estrelas.” – p. 20.

A naturalidade com que os indígenas observam a realidade circundante, a ponto de se imiscuírem nela como um todo harmonioso – repare-se que canoeiros e carregadores deixam-se estar serenos no leito do rio, partilhando as mesmas águas com os crocodilos – é antítese da artificialidade estampada no olhar de Chicuacha, para quem essa aliança não só não faz sentido como é perigosa. Mas é exactamente a essa aliança a que  Etounga-Manguelle (1991) se refere ao tentar caracterizar os valores de África, os quais, exactamente por serem consubstanciais a tudo a que a África diz respeito, caracterizarão a forma como o continente deverá (re)produzir um conhecimento localizado. Essa epistemologia, entre outros valores, será caracterizada por “uma inserção pacífica com o meio ambiente”. Mas o que se entenderá por tal inserção?

Outras vozes

Wellek e Warren (1948), na busca de uma ciência literária, fundamentam a sua existência no que entendem como “fruição em estado de simpatia” em relação aos objectos observados. Parece estar aqui reforçado, de certa forma mais extensivamente, o pressuposto de Etounga-Manguelle. Ora uma inserção pacífica com o meio é o desejável, mas poucas vezes é conseguida, sobretudo quando o investigador é “estranho” à realidade observável e vice-versa. A inserção torna-se, então, não raras vezes, conflituosa, e essa conflitualidade determina o tipo de conhecimento que se produz, um conhecimento pouco emancipador, que castra o diferente. É prestando a devida atenção a este “delírio uniformizador” que Matusse (1998) repensa a teoria sobre o Fantástico, de Todorov. Esta teoria é repensada por Matusse em função de determinados objectos, com os quais seguramente o teórico russo não contactou.

A caracterização do fantástico, segundo Todorov, baseia-se na intervenção de fenómenos sobrenaturais em condições tais que provocam na(s) personagem(s) e no leitor implícito a hesitação sobre a sua natureza  real ou ilusória. Assim, o fantástico situa-se entre o maravilhoso e o estranho. Entretanto, referindo-se à prosa de Couto e Khosa, Matusse adverte para a necessidade de se “considerar a noção de fantástico numa perspectiva histórica, como uma noção relativa. Com efeito, o fantástico resulta da ocorrência de fenómenos que a experiência humana julga como transgressores da ordem natural, tal como essa experiência permite concebê-la. Não há, por conseguinte, um padrão válido para todas as sociedades e civilizações a partir do qual se possa traçar uma fronteira entre o que é e o que não é fantástico. As nossas reflexões partem de uma visão do mundo assente no modelo racionalista ocidental, mas os universos retratados nas obras pertencem a civilizações onde imperam outros modelos de pensamento, outras crenças, enfim, outras concepções do que é a ordem natural.” – 171

A reserva de Matusse em relação à aplicação da teoria do fantástico sobre o objecto em estudo é explicável à luz da afectividade e reconhecimento culturalmente estabelecida e que se desencadeia quando o crítico entra em contacto com o objecto, o que lhe permitiu tomar parcialmente aquela teoria, ou seja, produzir esse conhecimento outro, localizado.

Nhabezi, uma metáfora possível

Esse é, como dissemos, o desafio que Khosa coloca no seu “Choriro”. Esta é a questão primacial, uma questão metaforicamente sugerida pela “burla referencial”, para usar a noção de Matusse em “As poses indescritíveis”. Com efeito, ao fim das 145 páginas do romance de Khosa, depois de levados, por esse mundo de sabedoria a resgatar, pelos olhares, pensamentos e racionalidades que se cruzam e muitas vezes se negam – porque esse o projecto – perguntamo-nos se Nhabezi  ou o branco Luís António Gregódio, depois de morto, chegou, de facto, a transmudar-se num espírito mpondoro, nesse “espírito de leão como outros soberanos das terras à margem sul do Zambeze se haviam transformado e governado espiritualmente os seus homens. Mas muitos duvidavam da real capacidade de o espírito de Nhabezi em coabitar com outros no selecto reino das divindades africanas.” – p.39

“ – No fundo não acreditas na mudança.

  – A questão não está em acreditar. É necessário que a alma seja aceite.

 – Por quem?

 – Não perguntes a mim.

 – É a cor?

 – Nunca um branco se transformou em mpondoro.” – p.38

Se Luís António Gregódio assimilou os valores culturais, a cosmovisão das gentes locais com quem contactou, a ponto de mudar o nome para Nhabezi, podia esperar-se que a tão desejada transmudação ocorresse. Entretanto, a narrativa é aberta. Abre-se, pois, entre o curso dessa aculturação e o desejo dos indígenas, de que a transmudação de Nhabezi num espírito mpondoro se desse – e assim veríamos concretizados, metaforicamente, alguns dos valores de África apontados por Etounga-Manguelle: o apagamento do indivíduo, face à comunidade; a aceitação e a canalização das paixões (principalmente pela ritualização); uma inserção pacífica com o meio ambiente – um espaço virtual para todas as possibilidades, pois se o branco não permanece o mesmo, o mesmo acontece com o indígena.

Uma dessas possibilidades seria considerar, numa perspectiva contemporânea, que Nhabezi personifica o projecto político do Ocidente que vem a África “reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. Do ponto de vista estritamente epistemológico, a metáfora aponta para o facto de o Ocidente estar disposto a ajudar a África a resgatar as suas formas de conhecimento e a potenciá-las para o avanço da humanidade. Abre-se, entretanto, a segunda possibilidade. Sugere-se então que, não se dando a transmudação de Luís António Gregódio, apesar da suposta inserção no meio ambiente, há uma negação ou pelo menos reserva e estranhamento em relação à primeira possibilidade. Mas por que Khosa colocaria possibilidades aparentemente antagónicas, a segunda tornando inviável a primeira?

Para dasafiar os utópicos

Os espaços virtuais, como o que se abre na última página do romance, serão formas de projecção de futuros? Ora Khosa sugere, ao buscar essa História não escrita sobre o Zambeze, que o futuro não é exactamente uma incógnita porque é feito de passados. Isto significa colocar o Homem africano – como aliás ele próprio é a metonímia – no centro da questão e acreditar que, afinal, África pode escrever o seu futuro a partir dessas vozes que, não estando grudadas aos discursos dos saberes produzidos a partir de fora, estão grudadas na memória local. Esta ideia faz de “Choriro” um discurso alegórico sobre todas as formas de produção e reprodução do conhecimento válidas em função de contextos diversos e desiguais. Neste sentido, parafraseando Aurélio Rocha no posfácio à obra, diríamos que todo o conhecimento válido precisa, para a suposta validade, de algo que não foi ou não é possível afirmar-se a partir de um certo número de hipóteses e dados. É com esta tese que em “Choriro” a escrita e a oralidade colocam-se no centro de ambivalências, hesitações e preconceitos, muitas vezes, difíceis de resolver. E o grande preconceito que “Choriro” nos obriga a questionar é o das “autoridades científicas”, preconceito (re)produzido sob o influxo ideológico, segundo o qual o conhecimento científico é a única forma de conhecimento válida e que fundamenta, de forma radical, a emergência de qualquer forma de conhecimento na escrita que aos países africanos chega com a nau colonial, no século XIV. Sabe-se que uma visão eurocêntrica acreditará que África passa a existir desde então. Entretanto, Khosa desafia-nos a pensar-na.

Escrita e oralidade como imagens…

O autor sugere-nos, por um lado, a escrita, o grafema, como o espectro de uma racionalidade fixa, inflexível no que diz respeito à abertura a outras experiências, outras esferas do conhecimento. Por isso se esfuma no tempo, ou seja, é a imagem escatológica da epistemologia ocidental. Sugere o autor, por outro lado, que a racionalidade africana há-de ser deveras eclética, flexível e ritual. Por isso, se renova ao longo do tempo, numa visão mais humanista e até pragmática:

“A princípio a relação [entre Tyago e Alfai] tendeu a azedar-se por Alfai querer registar em letra os procedimentos do fabrico da pólvora e das gogodas, facto que irritou Tyago, pois só a ele e poucos outros cabia passar o testemunho, dizia o messiri. E esses testemunhos não se fixam em letras que tremem ao vento. Tudo deve estar na nossa mente. Papéis aqui não, Alfai, sentenciou Tyago.” – p.37

Atente-se ainda no excerto seguinte:

“A relação entre Tyago e Alfai estreitara-se tanto com o tempo que Chicuacha deixara, gradualmente, de ser o confidente próximo no momento em que se deslumbraram com as técnicas de fabrico de pólvora e armas de fogo. Fora lá, nas resguardadas oficinas de fogo e a mando de Gregódio, que Chicuacha e Alfai se deram conta de outras capacidades que não divisavam nos pretos. Rodeadas de secretismo e rituais, as oficinas de armas e utensílios de ferro encontravam-se interditas aos não iniciados. A elas só os iniciados por Nhabezi, Makula, Tyago e alguns mais podiam se iniciar nas artes de fabrico de pólvora, armas de fogo e outros artefactos letais e não letais. Tal como os que se dedicavam à caça, canoagem ou ao comércio a actividade ferreira tinha os seus rituais” – p. 37

Depreende-se que Khosa evoca, por um lado, e na linha de Granger (1955), aquela concepção fixista da razão científica, que rompeu com os quadros habituais da percepção, como é o caso da “apreensão das qualidades sensíveis individuais” dos objectos. É obliterando esta “fruição em estado de simpatia”, ou seja, a especificidade e o contexto em que os objectos em análise se inserem, que este tipo de pensamento científico determina antecipadamente a natureza dos problemas científicos e os tipos de procedimentos que levam às respectivas soluções. Ora sabe-se que tais soluções muitas vezes não respondem aos problemas colocados. Por isso Khosa sugere-nos, por outro lado, e ainda na esteira de Granger (1955), essa concepção romântica do conhecimento, a qual faz predominar os valores vitais sobre os valores intelectuais, onde a acção, a emoção, a paixão, desempenham os principais papéis. Contra a imagem duma investigação paciente, controlada, discutida, oferece-se o modelo de um saber directo, indecomponível, intraduzível, onde signos como símbolo, mito, imaginação constituirão a porta de entrada para um universo de conhecimentos que o mundo da oralidade encerra e cuja validade deve ser potenciada. Não há, portanto, na recusa de Tyago, um pretenso monopólio científico, quiçá determinado pelo carácter mitológico ou pelo secretismo a que se refere o narrador, como se poderia pensar. Pelo contrário, a epistemologia africana há-de homogeneizar porque tudo deve estar na “nossa mente”, tornando possível a comunhão. O acesso ao conhecimento pressupõe sempre uma espécie de iniciação, seja qual for o paradigma e as leis que gerem o conhecimento. Assim se entende que o monopólio científico aqui é evocado como referência à epistemologia ocidental, de base escrita, exclusiva, selectiva e que cria a noção de Poder. É a esta imagem caótica, do poder, a que o autor nos pode arrastar, discorrendo sobre o fim último da epistemologia ocidental.

A imagem do poder

A escrita, aqui entendida como metonímia de epistemologia ocidental, criou e vai perpetuando o poder, a subordinação de uns, que não sabem ler e escrever em Português, aos que detêm esse poder e assim o conhecimento que ele mesmo produz e veicula. De facto, a palavra grafada reclama a sua individualidade e subjectividade, e subjuga outros tons na cadeia sintagmática. Aqui está metaforizado o fundamento, a génese e a natureza das nações africanas, que não se acautelaram perante estas questões de modo a potenciar outros saberes e outras formas de os produzir, de modo a salvaguardar o equilíbrio que a educação trazida pela colonização não consegue. Importa destacar, entretanto, que esforços há no sentido de empoderar o cidadão analfabeto do ponto de vista da gramática das línguas não locais. Basta pensar-se em desafios como o Ensino Bilingue ou em iniciativas de organizações que têm pedido proficiência em línguas bantu a candidatos a emprego. Estes exemplos devem aguçar a nossa atenção de modo que aprofundemos os argumentos ai subjacentes.

Em jeito de conclusão

Ora as reflexões sobre as realidades dos países africanos saídos da dominação colonial têm sido produzidas a partir do modelo racionalista ocidental. Os níveis de desenvolvimento político e económico não lhes permitem ou quase não lhes permitem potenciar e disponibilizar as suas formas de produção de conhecimento. Pelo contrário, condicionam que estes, como referem Santos e Meneses (2009), sirvam de matéria-prima para o avanço do conhecimento científico que vem do Norte. Para estes autores, continua adiada a negação a este epistemicídio, esta supressão dos conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena que vem do Norte, cujo projecto é homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais. Ora não parece que essas diferenças adiem a utopia do diálogo, de um diálogo emancipador. Isto é o que se pode dizer do carácter aberto da narrativa de Khosa, já atrás referido. O espaço virtual, que na última página se abre, terá de ser híbrido, o que significa que o futuro de países como Moçambique depende do intercâmbio dessas duas formas de conhecer e disponibilizar o conhecimento. Fundar o conhecimento a partir de uma visão de dentro e relacioná-lo com outras visões é emancipar o próprio conhecimento e o seu agente de produção, o Homem.

 

publicado originalmente no jornal O País, 23/7/11

 

por Lucilioja Manjate
A ler | 18 Agosto 2011 | identidade, literatura moçambicana, Ungulani Ba Ka Khosa, Zambeze