Balada da urzela

A urzela, ou roccella tinctoria, é um líquen que cresce nas rochas e falésias das orlas marítimas das ilhas da Macaronésia, um conjunto de quatro arquipélagos vulcânicos do Atlântico Norte. Quando a urzela, que se assemelha a um pequeno arbusto verde-acinzentado, é triturada e mergulhada numa mistura de água quente e urina humana fermentada, produz uma substância corante de cor vermelho-violácea. As suas tonalidades vivas e brilhantes foram durante séculos muito apreciadas na Europa, onde as roupagens de cor púrpura eram, desde a Antiguidade, um sinal de estatuto e privilégio. Por essa razão, a história das relações entre a urzela e os humanos encontra-se manchada por inúmeras atrocidades.

Urzela Archivo PittorescoUrzela Archivo Pittoresco

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Em 1402, Jean de Béthencourt, um senhor normando nascido em Grainville-la-Teinturière, rumou do porto de La Rochelle em direção às Ilhas Canárias. Como relata o seu capelão no Livre de la conquête et de la conversion des Canariens en l’an 1402, Béthencourt soube através de comerciantes genoveses que uma erva tintureira utilizada para fabricar um corante raro prosperava nas falésias dessas ilhas. Tidas pelas Ilhas Afortunadas dos Antigos, as Canárias foram reencontradas por navegadores europeus no século XIV. Eram um destino de eleição para os traficantes de escravos, que aí desembarcavam para capturar os Guanches, um povo indígena de origem berbere. A pretexto de os converter à fé cristã, e movido pela ganância tintureira, Béthencourt travou uma guerra impiedosa contra eles. Apesar de ignorarem o uso dos metais, os Guanches conheciam a escrita e a astronomia, dispunham de leis elaboradas e praticavam uma religião matriarcal com rituais complexos. Mumificavam os seus mortos, à maneira dos egípcios.  

Não obstante a sua resistência feroz, os Guanches foram praticamente exterminados pelos conquistadores e as doenças que eles trouxeram. Autoproclamado “Rei das Canárias”, Béthencourt garantiu para si o monopólio da urchilla (ou orchilla, o nome espanhol da urzela). No entanto, depois de muitos combates, traições e alguns naufrágios de navios carregados de líquenes, acabou por ceder o arquipélago ao reino de Castela. Até ao desenvolvimento das anilinas sintéticas no começo do século XIX (desenvolvimento que coincidiu com o colapso das populações de urzela nas Canárias, à beira da extinção depois de séculos de apanha), a urchilla continuou a ser um dos produtos de exportação mais importante das ilhas, estando sujeita ao monopólio da coroa de Castela ou de diferentes senhores. Essa situação causou muitas revoltas, já que a urzela era tida como um bem comum, à semelhança da lenha, das giestas, das carquejas ou dos tojos recolhidos e roçados nos montes e baldios.

Devido a esta despossessão, a urzela era muitas vezes contrabandeada por mulheres pobres, as orchilleras, que arriscavam a vida nas encostas íngremes onde cresce este líquen. Já os homens apanhavam-na pendurados por cordas amarradas nas rochas, num exercício de equilibrismo perigoso e frequentemente mortal – certamente muito diferente da versão romântica imaginada pelo pintor francês Émile Lasalle na Histoire naturelle des îles Canaries (1839).

A história da urzela não é “natural”. Como tantas outras, é uma história naturalcultural.  

Canárias orchilleroCanárias orchillero

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Nada é tão surpreendente como um líquen. Confundidos com musgos, e reduzidos durante muito tempo ao estatuto de plantas primitivas situadas algures entre os fungos e as algas, os líquenes foram identificados em 1868 como criaturas duais. Resultam quase sempre duma associação perene entre estes dois organismos. O fungo oferece à alga um abrigo e a alga alimenta o fungo: juntos formam um líquen, ainda que continuem a ser espécies diferentes. Alguns líquenes contêm também cianobactérias; outros são formados apenas por cogumelos e cianobactérias, excluindo as algas.

LichensLichens

O debate sobre a natureza dual dos líquenes e os termos dessa união geraram uma polémica duradoura. Apesar das provas oferecidas pelo microscópio, os líquenes conturbam a fantasia da individualidade biológica (um dos pilares da teoria evolucionista). Mais ainda: as relações entre as espécies foram durante muito tempo pensadas quase exclusivamente em função de modalidades conflituosas, como a competição, o parasitismo, ou a predação. Até o primeiro a propor que os líquenes tinham uma natureza dupla, o botânico suíço Simon Schwendener, viu no cogumelo um parasita habituado a viver do trabalho de algas escravas. Em 1877, o alemão Albert-Bernhardt Frank avançou o termo symbiotismus para descrever o que se passa quando um cogumelo se une a uma alga, sugerindo assim uma relação mais equilibrada do que aquela que liga o escravo ao seu amo tirânico.

Daí em diante, os líquenes tornaram-se na ponta de lança para pensar as simbioses mutualistas. A simbiose (do grego symbíōsis, “viver juntos”) refere-se a uma associação mutualmente benéfica entre dois ou mais organismos de espécies distintas. Significativamente, o uso do termo “simbiótico” no campo da filosofia antecipa a sua utilização no domínio da biologia. Assim, em 1603, o calvinista alemão Johannes Althusius observava que “antes de serem súbditos dum qualquer soberano, os indivíduos são ‘simbiontes’”. E acrescenta: “A política é a arte de estabelecer, cultivar e manter a vida social que deve unir os homens. É o que se chama simbiose. O objeto da política é, por isso, a consociação”.

Os líquenes chegaram há muito à consociação. Provavelmente, alcançaram também o “comunhismo” imaginado pelo poeta anarquista Gary Snyder num poema publicado em 1970: “The Revolution in the Revolution in the Revolution”. Um estado dos comuns e da comunhão, sem classes sociais e propriedade privada. Um estado para além do princípio de não-contradição que nos tolda o pensamento e que nos impede de dizer “eu somos nós”. Em 2012, três cientistas concluíam que, dum ponto de visto biológico, nunca fomos indivíduos e que, logo, “somos todos líquenes”. Em alternativa à insularidade essencialista da noção de indivíduo, os autores propõem encarar os organismos vegetais e animais como complexos simbióticos aglomerando diferentes espécies, de acordo com uma visão quimérica e resolutamente ecológica. Neste sentido, o meu corpo nada mais é do que o envelope protetor do meu microbioma: um coletivo multiespécies feito de bactérias, fungos, arqueas e até vírus. Tal como os líquenes, que não existem antes que pelo menos dois parceiros se reúnam, “eu” somos “nós”: uma consociação volátil e precária, mas espantosamente engenhosa. Um estado de consociação comunionista.

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O monopólio da urzela foi, durante vários séculos, um dos mais lucrativos para a coroa portuguesa. A roccella tinctoria pode ser encontrada nas falésias da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde. Aí, no arquipélago mais meridional da Macaronésia (do grego makárôn, “felizes”), escravos vindos do interior de África eram forçados a colher líquenes nas costas escarpadas enquanto aguardavam o embarque para outras paragens. Graças a eles, toneladas de “erva para tingir panos” foram enviadas para Portugal, seguindo depois para os portos dos Países Baixos, da Alemanha e, sobretudo, da Grã-Bretanha. Subordinada ao controlo hegemónico do Império Britânico, Portugal exportou milhões de líquenes oriundos de Cabo Verde e, mais tarde, de Angola e de Moçambique (onde cresce a rocella montagnei), para o reino de Sua Majestade. Em 1877, numa altura em que os corantes artificiais se começavam a impor na indústria têxtil, o livro de inventário de uma única empresa de Leeds lista cinquenta e cinco toneladas de urzela compressa importada de Portugal. No Funchal, o seu comércio encontra-se assinalado até 1901. 

Turpin OrseilleTurpin Orseille

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Na ilha de São Jorge existe um vulcão chamado Urzelina. Foi assim batizado devido à abundância de líquenes naquelas rochas costeiras. Em 1808, uma erupção vulcânica devastou a freguesia do mesmo nome. Precedida por vários sismos, a erupção ficou marcada pela queda abundante de cinza, nuvens ardentes, fluxos piroclásticos e várias torrentes de lava. Uma delas engoliu a igreja da povoação, matando o reverendo vigário e mais de trinta pessoas que aí se encontravam a tentar salvar telha. Da igreja resta a torre sineira; da erupção, um Mistério (ou escoada lávica) que se precipita no mar.

Volcano Urzelina, 1808Volcano Urzelina, 1808

“Somos todos líquenes”, escreve Donna Haraway, “logo, podemos ser arrancados das rochas pelas Fúrias, que ainda irrompem para vingar os crimes contra a Terra”. Talvez a Urzelina tenha vomitado lava porque ela, Fúria vulcânica com nome de líquen, se zangara devido à enormidade do comércio da urzela. Afinal, foi a cupidez colonial que despojou as falésias das Ilhas Canárias e de Cabo Verde dos seus líquenes. No século XIX, comerciantes franceses notavam que a qualidade dessa mercadoria tão apreciada tinha diminuído devido às apanhas demasiado frequentes – e certamente descuidadas (ou desesperadas): para que volte a crescer, a urzela não pode ser arrancada pela raiz. Como todos os líquenes, forma-se lentamente e não pode ser cultivada. Urzelina tinha muitos motivos para buscar vingança. Lembrava-se que a apanha da urzela estivera no centro dum genocídio colonial (a destruição espanhola das Ilhas Canárias é hoje encarada pelos historiadores como o modelo da escravatura caribenha e do genocídio dos povos indígenas). Sabia que a loucura da cor púrpura deixava no seu rasto uma multitude de corpos estropiados e exaustos. E compreendia que apesar da urzela resistir ao modelo da plantação (um sistema multiespecífico de trabalho forçado), a ganância da cor estava a esgotar o biotariado: as vidas humanas e mais que humanas que economias extrativas e extenuantes reduzem à condição de recursos descartáveis.

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O biotariado. Ou seja, e como escreve Gary Snyder, “ (…) as classes mais implacavelmente exploradas, Animais, árvores, água, ar, ervas”. Mas também o subproletariado que fabrica as nossas roupas, no Bangladesh, nas Filipinas, em Marrocos, nos ateliers clandestinos de Itália e da Europa de leste; os recifes de coral e os trabalhadores do sexo (Stephen Collis). Os imigrantes do Indostão que recolhem framboesas nas estufas de Odemira e os salares do Triângulo do Lítio. Os escravos e os miseráveis, suspensos por cordas sobre penhascos, arrancando das falésias o “musgo do mar”. Os solos. As bactérias. Um molusco gastrópode conhecido como murex, do qual são necessários dezenas de milhares para obter algumas gramas de cor púrpura. A púrpura tíria dos imperadores, reis, papas, cardeais e senhores da guerra. A púrpura mencionada no livro do Êxodo e com que Cleópatra mandou tingir as velas do navio que a levou até Tarso e ao general Marco António. A urzela era a púrpura dos “pobres”. A verdadeira e única púrpura era a de Tiro. Quinze vezes mais preciosa do que o ouro, enriqueceu os mercadores fenícios e outros, deixando uma espécie de caracóis do mar à beira da extinção no século VI da nossa era. A história da devastação não começa com o capitalismo. 

MurexMurex

A cochonilha mexicana, um inseto de cujas fêmeas se extrai um corante carmim usado em tinturas de luxo e do qual a coroa espanhola garantiu o monopólio, até a Guerra da Independência do México pôr fim a essa situação no início do século XIX. Criaturas que produzem ácido carmínico como mecanismo de defesa contra predadores. Parasitas da figueira-da-índia, também dita figueira-da-Barbária ou nopal, uma espécie de cacto que, ao contrário da urzela, pode ser plantado e cultivado em monocultura (como o foi, nas Canárias). Bichos recolhidos por mão-de-obra cativa (trabalhadores indígenas) com caudas de outros bichos (veados). Um carmim tão deslumbrante que milhões de insetos pulverizados se encontram nas telas de alguns dos pintores mais famosos da Europa: Ticiano, Tintoretto, Rembrandt, Van Dyck.

Monocultura do NopalMonocultura do Nopal

O biotariado é uma condição partilhada, uma questão de interdependências e emaranhados, à imagem das micorrizas que unem as raízes das árvores e das plantas ao micélio dos cogumelos (também elas resultando duma associação simbiótica). Como a trama que liga a urzela aos seus recolectores humanos, mas também às bactérias que decompõem a ureia em amoníaco necessário ao tingimento. Durante séculos, se não milénios, não houve tintura, limpeza ou curtimento sem urina. Na era pré-industrial, a urina velha era usada para branquear roupas, amaciar o couro e até para clarear os dentes. Detrito, mas também mercadoria. O imperador romano Vespasiano compreendeu o seu valor, impondo um imposto sobre a urina recolhida em urinóis públicos. Todos os seus compradores (principalmente curtidores e lavandeiros) tinham de pagar uma taxa conhecida como vectigal urinae. Quando Tito se queixou da natureza repugnante do imposto, Vespasiano retorquiu ao filho: Pecunia non olet, “o dinheiro não tem cheiro”.  

Na Roma Antiga, nem todos os cidadãos pagavam impostos. Os proletários, por exemplo, eram tão pobres que muitos se encontravam isentos, sendo vistos como parasitas (do grego parásitos, “aquele que come à mesa de outrem”). O seu único bem listado nos censos era a sua prole, os seus filhos. Proletário significa, literalmente, “o que gera filhos”. Filhos ao dispor da República e do império de Roma.   

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“Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida”. Será que quando acrescentou esta frase à tradução francesa de O Capital (1872), Karl Marx estava a pensar no trabalho de decomposição efetuado pelos fungos e bactérias?

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“Em certo dia, vindo eu, Diogo Gomes, pela última vez de Guiné a meio das ilhas Canárias e a da Madeira, vi uma ilha e estive nella, chamada ilha Selvagem. É estéril, ninguém habita ahi, nem tem arvores nem rios. As caravellas do senhor infante descobriram esta ilha, e descendo em terra acharam muita urzella, que é uma herva que tinge os pannos de cor amarella, e acharam-n’a em grande abundância. Depois alguns pediram ao Senhor Infante que lhes desse licença para irem ali com as suas caravellas e pudessem transportar a urzela a Inglaterra e Flandres, onde tem grande valor. O Senhor Infante deu-lhes licença, com a condição de lhes darem a quinta parte do lucro, o que fazem. E o Senhor Infante mandou para ali cabras, machos e fêmeas, que se multiplicaram em grande multidão”.

Diogo Gomes, Descobrimento Primeiro da Guiné, memórias compiladas nos anos 1480 pelo cartógrafo alemão Martinho da Boémia (Martin Behaim) que em 1492 fabricou o mais antigo globo terrestre conservado: o Erdapfel (a “maçã terrestre”).

Uma ilha coberta de líquenes não é uma terra estéril.  

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A anilina foi isolada pela primeira vez em 1826, graças à destilação destrutiva do índigo. A destilação destrutiva é um processo químico de decomposição de substâncias que recorre às altas temperaturas. A destilação destrutiva duma tonelada de carvão pode produzir setecentos quilos de coque, cem litros de amoníaco ou cinquenta litros de alcatrão de hulha. A descoberta da anilina abriu o caminho aos corantes sintéticos que progressivamente substituíram os corantes orgânicos, como aquele que é obtido a partir da urzela (a orceína). Em 1856, enquanto procurava sintetizar a partir de alcatrão a quinina (uma fito-substância utilizada no tratamento da malária), um cientista inglês descobriu acidentalmente o primeiro corante químico sintético: a anilina púrpura ou mauveína. Pouco tempo depois, a cor malva tornava-se num fashion must have. Na Alemanha, o industrial Friedrich Engelhorn compreende que o principal detrito gerado pela sua fábrica de gás de carvão (o alcatrão) é, afinal, uma matéria-prima rentável. Para a poder explorar, cria em 1865 a companhia Badische Anilinfabrik und Sodewerke (BASF). A atual líder da indústria química mundial transformou radicalmente a indústria da tinturaria e a história das cores, antes de se lançar na fabricação de fertilizantes, explosivos, pesticidas (entre os quais o Zyklon B) e plásticos. Na década de 1980, a produção de anilina foi responsabilizada pelo declínio das florestas (Waldsterben) na Alemanha. A anilina é uma substância altamente tóxica e poluente.       

O ácido carmínico produzido pela cochonilha mexicana é hoje um aditivo alimentar conhecido pelo código E 120. É utilizado como corante em iogurtes, gelados, doces, compotas, pastilhas elásticas, xaropes, peixe fumado e carne. No Campari Bitter. O consumo excessivo de ácido carmínico pode causar hiperatividade e défice de atenção, especialmente nas crianças. Um transtorno neurobiológico que cruzou o Atlântico dentro de navios fabricados com madeira de pinheiros dos Pirenéus. As histórias do ácido carmínico, da hiperatividade e do défice de atenção também são histórias naturaisculturais. Na Europa, apenas um país cria e exporta cochonilhas ainda hoje: Espanha. A sua produção é quase toda oriunda das Ilhas Canárias.

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Apesar de exausto, o biotariado continua a sonhar. Sonha com os comuns planetários. Sonha com líquenes. O vulcão Urzelina também sonha com líquenes. Talvez não seja uma Fúria implacável e rancorosa, vomitando lava de “sete bocas” e lançando chamas que pareciam “querer incendiar as próprias nuvens” (José Bettencourt de Sousa e Silveira). Talvez a sua erupção de estilo Havaiano-Estromboliano não tenha sido uma tentativa de vingar os crimes contra a terra. Urzelina não é nostálgica, não tem, como o padre açoriano Gaspar Frutuoso (autor duma história da Macaronésia escrita entre 1586 e 1590), “saudades da terra” – duma terra sem humanos e o seu gado vacum (segundo as fontes “quase todo morto” ou “definhando e perecendo envenenado com as cinzas” depois da explosão). Talvez a erupção da Urzelina seja um ato de amor geológico traduzindo uma decisão de iniciar transformações metabólicas entre rochas e criaturas mortais. O tipo de transformações metabólicas de que precisamos para viver, mas também para morrer bem. Mas isso é uma história para ser continuada.  

Cochineal insectsCochineal insects

por Teresa Castro
A ler | 31 Dezembro 2025 | Atlântico, cochinilha, líquen, pigmento, urzela