Amanhã é Outro Dia: Anatomia de um Golpe de Estado

As eleições de novembro de 2025 na Guiné-Bissau aconteceram sob uma tensão acumulada, que não era apenas eleitoral, mas histórica. Quando foram anunciadas, dois cenários contraditórios dominavam: de um lado, o receio da consolidação absoluta do poder por Umaro Sissocó Embaló, agora legitimado “legalmente” através de um novo mandato; do outro, a possibilidade de uma guerra civil caso, por algum milagre político, ele fosse derrotado. Só quem não anda em transporte público pode acreditar que Sissocó não tem segmentos do povo consigo — e esses segmentos expressam essa fidelidade com exemplos concretos: a estrada de Safim, a luz na Praça, o asfaltamento da Zona Sete e Estrada de Bor, a expansão do aeroporto. Em contextos de fragilidade crónica, as pequenas obras tornam-se grandes narrativas.

Contudo, o improvável sucedeu: Sissocó perdeu, mas a guerra civil não aconteceu, felizmente. Apenas um golpe para o manter. Só romantiza o conflito quem não viveu Junho de 1998. Só deseja o regresso das balas quem não experimentou a violência crua daquele período. Quem viu, de verdade, ou sabe analisar relatos históricos, não quer repetir — nem militares, deve-se crer. 

 

Golpe constitucional

Desde fevereiro de 2020, muitos analistas afirmavam que Sissocó procuraria, direta ou indiretamente, um terceiro mandato, ou seja tentaria eternizar-se no poder. Embora tivesse tomado o poder, de forma “simbólica” — uma posse reconhecida sob proteção militar —, através de um processo contestado, exerceu o cargo com a normalidade de quem recebeu todas as bênçãos institucionais. 

A verdade é que as recebeu. Foi reconhecido pelos outros países, pelas organizações internacionais e por todos aqueles que precisavam de estabilidade suficiente para manter intocados os seus negócios extrativistas — e, sobretudo, para não terem de abrir mais um dossier africano que só lhes traria trabalho e incómodo. ONU, UA, CEDEAO, CPLP, todos lhe deram o aperto de mão. Acarinhado por Portugal e pela França, ainda presidiu a CEDEAO e a CPLP, como se a sua tomada de posse não tivesse sido um golpe constitucional.

E assim, aquilo de simbólico transformou-se em todos, em símbolo.

Comunidade internacional

A comunidade internacional não tem interesse em problematizar o tipo de democracia vigente na Guiné-Bissau. A sua preocupação é pragmática: manter estáveis as rotinas diplomáticas e evitar novos ciclos de instabilidade que obriguem a intervenções onerosas.

Este pragmatismo não nasce de indiferença moral, mas de cálculo estratégico. Qual é a relevância geopolítica da Guiné-Bissau para mobilizar atenção global? Nenhuma que se compare a crises regionais maiores. Se tivesse uma guerra aberta, talvez surgisse algum esforço internacional. Mas sem guerra, sem interrupção das importações, exportações, portos, pesca, mineração, tráfico de droga, interesses portugueses, franceses, chineses ou senegaleses — não há razão para desviar recursos diplomáticos.

Mais tarde pode vir uma sanção aqui e ali, mas só na medida em que não afeta o extrativismo.

A França, por exemplo, pressionada pela rutura das suas relações com Mali, Burkina Faso e Níger, e confrontada com a instabilidade senegalesa, vê na Guiné-Bissau um relativo ponto de previsibilidade: uma periferia disciplinada pelo franco CFA e controlável sem esforço. A estabilidade que o Umaro Sissocó Embaló garante é-lhe útil, joga e vai jogar para que a estrutura sissoquista se mantenha no poder. E a França tem muito peso na comunidade internacional.

Inconstitucionalidade

É neste contexto que se deve compreender a sequência que levou ao golpe de Estado. A constitucionalidade já estava fragilizada há anos. Tínhamos um Parlamento eleito, teoricamente o órgão que forma governo em nome do povo. 

Na prática, por duas vezes — e nem sequer contando o período de Carlos Domingos Gomes e José Mário Vaz, que normalizou a dissolução como instrumento de governo — o país assistiu a Sissocó destituir parlamentos eleitos para colocar no poder executivos da sua escolha. 

A democracia guineense revelou-se como uma chucha oferecida ao povo para que se mantenha quieto, enquanto as decisões estruturais são tomadas noutro plano. O povo mama e cala-se. Não porque seja apático, mas porque está desarmado.

Golpe de Estado

O golpe de Estado, um mecanismo recorrente na história política guineense para a redistribuição interna do poder, é uma prática quase pedagógica. Serve para colocar e tirar governos, afastar opositores, consolidar redes. Em 2019, circulou um áudio de Umaro Sissocó Embaló discutindo um golpe contra José Mário Vaz, prometendo gerir a comunidade internacional. Não aconteceu exatamente dessa forma — José Mário Vaz caiu através de outro tipo de golpe, “simbólico”, decorrente de eleições cujo resultado até hoje não foi formalmente esclarecido.

Chegamos então às presidenciais e legislativas de novembro de 2025. As legislativas? Ninguém quis saber. O país já internalizou que, apesar da Constituição, o regime funciona como um presidencialismo de facto. Mal fecharam as urnas, durante a contagem dos votos, ambos os candidatos — Umaro Sissocó Embaló e Fernando Dias— declararam vitória. Contudo, relatos preliminares pendiam para o lado da oposição.

Antes da divulgação dos resultados, ocorreu o golpe. Diferentemente de tentativas anteriores, desta vez não foi frustrado por Sissocó, que possuía um histórico notável de neutralizar golpes. Golpeado, permaneceu na Presidência, em contacto com a média francesa internacional, tentando organizar a sua saída para o Senegal.

Presidente sombra

Aqui entrámos agora na fase final da humilhação institucional — aquela em que já nem se disfarça. É um escárnio aberto, um gozo descarado com a cara dos guineenses, conduzido por gente que detém poder e armas e que, em conjunto, viola a democracia repetidas vezes. O que se seguiu foi uma reconfiguração institucional que pouco tem de enigmático. 

O poder foi entregue a figuras centrais do círculo de confiança do Presidente deposto: Horta Iná-Na-Man, homem da sua proximidade, assumiu a Presidência de Transição. Ilídio Vieira Té, diretor da sua campanha e antigo ministro das Finanças, tornou-se Primeiro-Ministro e acumulou a pasta de ministro das Finanças.  Esta acumulação não é apenas anómala, mas reveladora. Ilídio é, neste momento, um dos nós mais fortes da rede de poder. A lógica que ordena estes cargos sugere uma articulação coordenada, não uma rutura.

Quem orquestrou o golpe? É simples. Basta olhar para quem ficou com o poder e as cadeiras mais altas.

É um jogo perigosíssimo da parte do Sissocó, que parece acreditar que pode continuar a puxar os fios nos bastidores, reaparecer mais tarde como vítima e recuperar o trono, como o Nino Vieira fez. A narrativa, claro, pode vir a ser reescrita ao sabor da conveniência. Se a sua jogada falhar e ele perder a sua influência e poder, bastará apontar o dedo ao Ilídio Vieira Té e transformá-lo no grande traidor — o tal que “sempre esteve a preparar isto às escuras.

Por agora, porém, continua mais plausível imaginar que o golpe foi orquestrado pelo próprio Sissocó para evitar perder o poder que já sentia a escorregar-lhe entre os dedos. Mas também é possível que tenha sido apenas o único caminho que os verdadeiros donos do poder — aqueles que nunca aparecem na fotografia — lhe deixaram aberto.

Provas concretas? Nenhuma. Mas, sejamos sinceros, provas concretas na política guineense são mais raras do que estabilidade institucional. E por isso, como sempre, resta-nos especular.

 

Golpe falso?

A narrativa de que o golpe teria sido falso — encenado, fabricado, teatral — encontra eco em certos círculos políticos. Mas golpes não se medem pela veracidade dos motivos apresentados; medem-se pelos seus efeitos. E aqui não há dúvidas: o Presidente foi deposto, os militares tomaram o poder e instalaram quem quiseram. 

Os motivos podem ser nebulosos, mas o golpe é real. A fórmula é antiga e repetida. Mesmo que o golpe tenha sido pensado para proteger o próprio Sissocó, isso não o torna menos golpe. Porém, conseguiu superar todos os outros em absurdo. Foi talvez o golpe mais parvo da história dos golpes, porque, segundo a própria narrativa oficial, foi um golpe “preventivo”, um golpe para impedir outro golpe que ninguém tinha visto, ouvido ou sequer suspeitado. Um golpe para repor uma normalidade que nunca chegou a estar ameaçada.

Reposição da ordem constitucional

Fala-se agora de “reposição da ordem constitucional”. Mas que ordem? A ordem constitucional guineense, como referência normativa, foi abandonada há muito. Desde 2015, quando Jomav depôs o governo de Domingos, o país entrou num ciclo de informalização progressiva do Estado. O golpe de 2025 apenas interrompe um processo democrático cuja interrupção já era estrutural. Golpes não se anulam; golpes consomem processos eleitorais. Não existe golpe “temporário”, “preventivo” ou “corretivo”. Um golpe é sempre uma substituição autoritária de poder.

E o desfecho? Prendem precisamente os políticos que, ao que tudo indica, tinham ganho as eleições. O delírio chega ao cúmulo quando continuam a deter o Domingos, a perseguir o Dias, e a ir atrás — seletivamente, claro — de figuras ligadas a ele, como o seu segurança, Nelson N’Dafa, que acabou morto depois de espancado. Estas prisões seletivas não deixam margem para subtilezas: isto não é sobre normalidade nenhuma.

E sejamos francos: se podem deter o Domingos — o Domingos, provavelmente um dos guineenses mais conectados internacionalmente — com esta leveza e descaramento, quem é que, em plena lucidez, se atreve a opor-se?

Povo

O povo? O povo não vai levantar um dedo. Não porque não queira — simplesmente não pode. Não tem armas, não tem apoios internacionais, não tem garantias de que a sua vida será respeitada num país onde a morte pesa mais do que a dignidade humana. E essa ideia romântica de que “o povo” se uniu para expulsar o colonialismo ignora outra metade da história: a parte do povo que lutou ao lado dos colonialistas, que os apoiou, que pegou em armas em seu nome.

O povo nunca foi uma massa homogénea, unida, iluminada. Para agir, precisa de ser mobilizado, organizado, empurrado — porque, por si só, não tem meios nem iniciativa para enfrentar estruturas de poder que vivem, literalmente, de armas na mão. E, convenhamos, este jogo nunca foi feito para o povo jogar.

A Guiné-Bissau nasceu das armas: primeiro na luta de libertação, depois nos golpes sucessivos que moldaram o Estado. Neste país, quem não está do lado das armas não governa. Quem tem os militares ao seu lado, governa. E é essa a regra que continua a decidir tudo.

Forças armadas

As forças armadas, por sua vez, continuam a ser a instituição mais contínua da história do país. Não se tratam de um instrumento auxiliar; tratam-se da estrutura central. Operam como uma casa de leilão, onde fidelidades se compram e se vendem conforme o jogo político. A sua lealdade não se dirige a Sissocó enquanto indivíduo, mas ao arranjo de poder que representa. Este golpe é autopreservação. É uma resposta à possibilidade de uma reforma profunda que pudesse reduzir o seu papel. É a reafirmação de que qualquer processo democrático que ameace a sua centralidade será travado antes de amadurecer.

Assim, a suposta estabilidade que se segue ao golpe não é estabilidade real. É suspensão. É um intervalo entre tensões, mantido pelo medo, pela conveniência internacional e pela repetição de práticas que se tornaram quase naturais. A Guiné-Bissau navega por uma ordem política onde a democracia é só um nome; onde a constituição é invocada, mas nunca respeitada; onde a vontade popular é completa e sucessivamente mente ignorada; onde a força das armas define o destino político acima de qualquer voto. 

Normalização da violência

As forças armadas circulam por Bissau com carros fortemente armados, como se encenassem uma ficção distópica perante um público, agora, habituado. Essa presença faz parte da tentativa de normalizar o susto. A paisagem urbana, marcada por armas em posição ostensiva, apontadas aleatoriamente para o público, repete um único enunciado: “manda quem tem armas”.

O povo leva porrada como quem cumpre rotina. A brutalidade policial deixou de chocar — virou método, virou hábito. Carros militares carregados de homens e armas, dignos de um cenário distópico, circulam entre quiosques, bancas e candeeiros, instalando-se no quotidiano como parte do mobiliário urbano. Uma coreografia de intimidação contínua. Normalizaram-se. Impuseram-se. As armas apontadas ao acaso são lembretes silenciosos, mas insistentes: “quem manda aqui somos nós”. É um espetáculo de poder, encenado diariamente.

E, para nós, tudo isto é… normal. Basta olhar para o mercado de Bandim: de manhã há um golpe de Estado, à tarde o mercado está cheio, vida a retomar como se nada fosse. É apenas mais um episódio na longa série de mais de cinquenta anos deste país que aprendeu a sobreviver em grandes soluços, mas sem soluções. Normal. Normalíssimo.

O verdadeiro dono da terra

Se o Sissocó acredita que os militares estão a agir apenas para preservar o seu projeto de poder, tentando que volte para as próximas eleições, daqui a um ano, está profundamente enganado. Porque tal e qual o Sissocó foi reconhecido, eles também serão. Além disso, o projeto inclui o Sissocó, sim — mas não gira à sua volta, nem depende exclusivamente dele. Ele é uma peça útil, não o tabuleiro.

O Ilídio está aí, sentado no centro da engrenagem, conhecendo todas as pastas, todos os dossiês sensíveis, todos os stakeholders internos e externos. Ele sabe como o poder circula, quem o sustenta, quem paga, quem cala e quem manda calar. E isso basta para mostrar que, no xadrez guineense, Sissocó é substituível. O projeto, esse, continua.

No fundo, a Guiné-Bissau continua a ser governada por aquilo que não vemos claramente: uma sombra persistente que organiza, redistribui e reconfigura o poder conforme os seus próprios interesses. Enquanto essa sombra existir — e enquanto as armas forem a gramática da política — qualquer tentativa de transição democrática plena será sempre interrompida, adiada ou revertida.

por Dosmi Lenov
A ler | 7 Dezembro 2025 | golpe de Estado, Guiné-Bissau, Sissoco Embaló