Natural Mistic
Quem são as curandeiras?
Gosto de chamá-las de “mãe-curandeira”, porque sinto que há uma componente feminina muito forte, de onde vêm as energias e a habilidade de comunicar num plano superior, a partir do qual se estabelece uma comunicação também no plano físico. São tudo campos energéticos, porque a tradução que temos do plano físico e espiritual é muito limitada.
A inspiração para esse trabalho foi a correlação entre esses dois campos?
Sim e o facto de vivermos numa época na qual em que até estamos mais interessados na espiritualidade, mas na espiritualidade que vem do estrangeiro é a mais acentuada. As pessoas interessam-se mais porque está mais divulgada. A africana é muito forte mas não tem os mesmos parâmetros. Então, ocorreu-me questionar como é entre nós, em África e mais especificamente em Angola. Como fazíamos e fazemos. Quando não tínhamos como comprar as ervas que agora adquirimos de fora, então o que se usava aqui? Foi o que me despertou interesse para este trabalho e para fazer os pacotes com ervas.
Os desenhos estão muito ligados ao rosto humano e encontramos representadas mulheres de diferentes idades, o que nos quer dizer com isso?
Acho que a identidade de cada pessoa está mais expressa nos traços do rosto, sobretudo nos olhos, que amo em especial, porque são um espelho. Acho que a partir do rosto conseguimos ver a história e o amadurecimento de cada pessoa. Serem só mulheres é porque estou a passar por uma fase em que presto mais atenção à minha essência feminina e por concluir que são estágios que se completam: a deusa donzela, deusa mãe e deusa anciã (feiticeira), deu-me vontade de transmitir a geração de ciclos de conhecimentos que expus.
Como vê a espiritualidade no quotidiano angolano?
Existe ainda um certo tabu em relação à espiritualidade africana. As pessoas têm muito medo de termos como curandeira, feiticeira, mágica etc. e isso faz com que acabemos por perder muitos dos valores da nossa identidade africana. Infelizmente passamos pelo colonialismo que também nos fez perder a identidade, para perceber a identidade física de cada etnia tínhamos, imagino, o que seria espiritualmente, como as pessoas se conseguiam ver para além do campo físico. Por ter nascido na Alemanha, senti desde sempre muita necessidade de me aproximar das minhas raízes africanas, sei que sou africana, mas como e aonde? À medida que crescia fui-me interessando por aspectos da espiritualidade africana, como a feitiçaria, as curandeiras, em especial as práticas espirituais que são exercidas por mulheres, é um mundo que me interessou.
Falou com curandeiras, onde as procurou? Acompanhou algum ritual?
O interessante foi conversar com algumas curandeiras sobre a utilização de ervas. As senhoras que as usam fazem também alguns rituais. Conseguem perceber quem as procura para a cura de doenças ou indisposições e quem as procura por querer mais. Ensinam como curar indisposições do espírito. Uma que me deu-uma explicação profunda sobre ervas que servem para a limpeza espiritual.
Pode partilhar connosco um pouco dessa explicação?
Ela sentiu um certo receio, mas acabou por me dizer que a erva usada para afastar maus espíritos requer uma fumaça intensa dentro de casa, ao mesmo tempo que se faz uma oração em voz alta, com autoridade de forma a mostrar aos maus espíritos quem manda naquele espaço, assim os afastas de casa, como disse ela.
Acha que as curandeiras têm medo de falar das suas práticas que curam?
Actualmente há uma abertura em relação às práticas de medicina natural e de feitiçaria. Antigamente, em todo o mundo as curandeiras eram caçadas, chamavam-nas esposas do diabo, mesmo na Europa houve perseguições como se conta Malleus Maleficarum (O martelo das Feiticeiras), um livro numa edição veneziana de 1576. Em Angola, o Cristianismo denegriu a imagem das curandeiras, contudo, eram elas que faziam partos e cuidavam da saúde das pessoas de muitas tribos, mas no tempo colonial não eram bem vistas.
Actualmente as curandeiras e as medicinas alternativas são mais aceites e valorizadas? Qual é a sua percepção?
A aceitação não é total, mas já se respeita o facto de que são práticas que sempre existiram e vão continuar a existir. Em termos globais o processo está mais adiantado, em Angola embora estejamos familiarizados com estas práticas, não são aceites de forma aberta, mas já não se julga tanto as curandeiras. Lembro-me que quando comprei as ervas, as pessoas olhavam-me de esguelha como quem diz: “esta deve estar a aprontar”… senti da parte das senhoras algum receio, o primeiro impacto é sempre muito fechado, ainda há tabu, as próprias curandeiras tentam preservar-se do julgamento das pessoas, mas noto que há uma grande abertura agora.
Como se desmistifica o tema?
Penso que sempre será oculto mas só entra quem realmente quer perceber e transmitir de forma transparente, desde sempre foi assim. Somos descendentes de muitas destas pessoas místicas, devemos orgulhar-nos de as ter no nosso meio e é pena perdermos o que de bom se encerra nas práticas usadas. Esta exposição intenta mostrar este lado da nossa sociedade e reaprender.
Como é que as curandeiras eram vistas social e culturalmente?
No tempo em que a mulher era vista como divina, por trazer a vida ao mundo, o seu corpo era tido como um templo, as curandeiras eram vistas como divindades, como fontes de sabedoria e conhecimento, reconhecia-se que emanavam energia e espiritualidade, eram como líderes ou professoras.
A sociedade era mais matriarcal mas passou a ser patriarcal. O que podemos fazer para empoderar espiritualmente essas mulheres?
As mulheres devem estar unidas, separadas vai continuar a ser o caos, devemos criar movimentos nos media e a nível social para tentar resgatar os valores dignos da mulher curandeira, sem chocar com o sexo oposto porque também existem curandeiros e têm as suas histórias. E fazer perceber as pessoas que, no básico, não somos diferentes, somos todos carne e osso e temos todos a necessidade de conhecer o propósito da vida em si e de todas as energias que sempre tivemos.
E em relação aos homens curandeiros, o que conseguiu perceber?
Vivemos uma época patriarcal mas senti que os homens também se sentem silenciados e querem se expressar. Porque também têm a necessidade de ser compreendidos e com vontade de estar presentessentiram uma certa paz, ao verem uma mulher a ser capaz de puxar este assunto para o debate.
Porque existimos como dois, masculino e feminino, acredito que muitos homens que conheço sentem a necessidade de buscar o feminino dentro deles, principalmente a nível da compreensão, ainda há muitos tabus sobre o que a mulher pode e não pode fazer e é bonito ver homens interessados em ajudar as mulheres de modo geral, e passarem a ter voz e serem o que sempre foram.
Como surge a ideia desta exposição?
Em setembro tivemos a nossa exposição colectiva e apesar de já estar a estudar por iniciativa minha a questão curandeiras e feitiçaria, o Kiluanji Kia Henda perguntou se queria fazer uma apresentação individual, elegi este tema já que estava debruçada sobre o assunto.
Dentro do colectivo que outras temáticas ten abordado?
De facto têm sido mais temas virados para espiritualidade em vários campos, do divino feminino, divino masculino, portanto são temas que estão interligados.
Perspectivas futuras? Vai continuar neste tema?
Pretendo entrar de forma mais profunda neste tema por ser complexo e com muitos campos para explorar.
Como é que este trabalho a influenciou em termos pessoais?
Confesso que sentia receios antes e agora considero mais como um respeito. Estive durante algum tempo com dúvidas sobre como seria a espiritualidade e não sabia a quem ir buscar informação acerca disto nem com quem aprender. Com a investigação que tive que fazer para as obras, acabei por me encaminhar para pessoas com estes conhecimentos e estou mais direcionada para esclarecer as questões pessoais que me coloco em relação a minha essência de africana.
Apercebi-me que não é apenas uma questão física, não é apenas a cor, mas também a energia do lugar de onde venho, porque nós próprios fomos muito corrompidos com essas correntes invisíveis. Aqui fui-me apercebendo do que sou, e fui-me questionando: o que haverá mais além? Esse além para mim é a espiritualidade, é a magia, é a feitiçaria porque tem muito a ver com a espiritualidade. A magia sempre esteve presente em todas as culturas, e a nossa, o que terá para nos ensinar? Consigo ver que a negritude a nível mundial está nessa busca de identidade, tanto física quanto espiritual e encontro-me nesse grupo também.
Acha que os angolanos que viveram fora se sentem mais impelidos a procurar a sua identidade?
Acredito que a construção de uma personalidade relaciona-se com esses factores, branquitude e negritude, pelo menos para mim, sei que sou uma mulher negra e estando fora o que mais buscava era a minha essência negra. Na Europa há menos negros e o que conseguem transmitir de África de uns para outros é muito pouco, na sua maioria não têm muito contacto com África. Acho que faria bem voltar a África e absorver certas vivências.
Sofreu racismo na Alemanha?
Só ao chegar a Angola as coisas começaram a fazer sentido e até agora está a ser uma aprendizagem, porque, por outro lado, aqui também sofri bulling na escola, pelo meu comportamento europeu, era vista como estrangeira, daí que os tabus são muito engraçados, estava na minha terra e era olhada como estrangeira.
Há também os do norte e os do sul, apercebo-me em família mas estou no sítio certo para saber quem sou.
Em Luanda assiste a manifestações de racismo?
Acho que apenas na forma como as pessoas se expressam porque dizem “aquele branco, aquele preto” mas não referem a identidade das pessoas, porque a cor não nos define. Não são problemas sociais que estão presentes e noto que há quem queira mudar, inclusive agora já não nos referimos às pessoas brancas ou pessoas de fora de uma forma tão agressiva, acho que se nota quando és negro fora e quando és negro em África.
Como assim?
Acho que o negro quando está fora, e sobretudo quando já nasceu fora, é mais notado pela sua essência africana. Houve uma senhora no Brasil que me questionou se em África a pobreza é mesmo uma realidade. Os africanos são conotados com uma realidade de pobreza extrema a todos os níveis e, por isso, quando os africanos regressam e percebem que África é rica em muitos aspectos, livram-se do tabu de que são apenas pobres. Portanto, sinto que há muita curiosidade em perceber o que é um negro, a nível do mundo, as pessoas aproximam-se e fazem perguntas, querem sentir, tocar e perceber o que é um africano. No Brasil e em Portugal as pessoas estão mais familiarizadas com a cultura e com o convívio com pessoas negras e sentem-se mais à vontade mas apenas como turista, e não como residente porque sinto que há muito a fazer a nível mundial.
Em África não nota que há privilégios em relação sobretudo à posição económico-social das pessoas não-negras?
Acho que o racismo é muito mais acentuado no exterior e que é lá que ainda há muito para se fazer quanto à questão do negro ser visto como inferior é talvez um resquício do tempo da escravatura que vai permanecendo na mente das pessoas. Mas noto que os negros também atingiram um nível que já lhes permite protestar e tentar mudar as coisas. Há muito trabalho a fazer, a nível social, sobretudo nas escolas, na educação das pessoas.
Há uma certa cegueira porque os estrangeiros/brancos têm privilégios que já nascem com eles, não conseguem perceber o quão privilegiados são, já nascem com toda uma melhor condição de vida, acredito que se questionem também.
Como é que o seu trabalho contribuiu para debater a desigualdade racial?
Despadronizarmos dessa indiferença quanto à nossa cor, tentar ir a fundo e fazer perceber que não se trata de ser negro ou branco, mas é muito mais que isso, daí a espiritualidade como um guia.
Acha que o afastamento das nossas raízes e práticas espirituais, devido à globalização, e não só, modifica a nossa condição social e económica?
No interior do país é diferente, também se perdeu muito, mas está-se mais perto do que sempre foi. Luanda, por ser a capital, leva-nos mais para fora, aqui estamos muito distantes e muito pouco interessados nas nossas práticas espirituais apesar de que recentemente isso tem mudado aos poucos. Por outro lado, vejo pessoas a querer trazer de volta a nossa cultura, mas de forma comercial e industrial o que é triste, porque o conhecimento não deve ser pago, deve estar acessível a todos. É bom ver que está a voltar o interesse pelas nossas tradições. Antigamente o conhecimento era livre, o capital faz com que tudo se venda e esteja à mercê do poder de classes. Não gostaria de que algo tão profundo fosse subdividido e banalizado por interesses financeiros.
Porquê estes materiais?
Desenho a carvão. Ao estudar arquitectura, acabei por me interessar por desenhos a carvão, gosto muito da cor preta e acho que o carvão tem uma certa força para expressar pensamentos. Também gosto da textura. O papelão é um material alternativo que me permitem não gastar muito dinheiro e mostrar beleza. Por serem recicláveis também permitem a defesa do meio ambiente bem como ter uma postura menos consumista.
Quis homenagear a mãe natureza?
Esforcei-me por buscar coisas naturais, daí os pacotes com as ervas, e o carvão desde as pinturas rupestres que era muito usado e anda é usado, a ideia era mesmo oferendar a natureza.
Como é que se deu o encontro com o colectivo Verkron?
Fui encontrada por eles, por saber desenhar também, a princípio era o que fazia, eles convidaram-me quando eu tinha 17 anos mas já nos conhecemos antes de estar no colectivo, em 2008. Verkron funciona como irmandade, além de artistas plásticos, grafiteiros e músicos. Buscamos uma energia superior.
Fez outros trabalhos além deste sobre as curandeiras?
A solo é a primeira vez, mas fiz trabalhos com membros do colectivo.
Como está ser essa experiência a solo?
Agitada, mas bonita. É a primeira vez que monto uma exposição, embora os meus irmãos me estejam a ajudar, tenho estado aqui a tempo inteiro, é mais difícil, mas gosto. Estou a preparar a mostra desde o ano passado. Não tinha a ideia de fazer uma exposição, o conceito foi surgindo pelo meu interesse pela magia e medicina africana e por produtos naturais. A vontade de colocar esse tema no meu trabalho veio de tudo que fui aprendendo acerca das curandeiras angolanas.
Como se sentes depois de apresentada a exposição?
Mais aliviada, o processo de criação é mais duro, foi pesado, mas também me trouxe muito conhecimento, estudei de forma mais intensa, agora estou leve e a viver esta parte muito bonita.
Cássia Clemente
Exposição no Espaço Sete & Meio, Luanda.