Paulo Moura (1932–2010)

Uma forte rajada sobre a cidade do Rio de Janeiro anunciava à noite o desfecho de uma lenta agonia…
No sábado, dia 10 de julho, Paulo Moura ainda conseguiu reunir forças para tocar uma última música – “Doce de Côco”, de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho – com seu parceiro de longa data Wagner Tiso, ao lado de sua mulher Halina, o filho Domingos, o sobrinho Gabriel, amigos e admiradores, e alguns pacientes da Clínica São Vicente, maravilhados com aquela inusitada e comovente celebração musical, organizada pelos músicos Cliff Korman e Humberto Araújo.
Uma réstia de sol fazia da folhagem das jaqueiras um cenário cintilante para a varanda do hospital.
O maestro, sereno e sorridente, vestia uma camisa azul e cobria as pernas inchadas e inertes com um manto púpura.
Lembrei-me da última estrofe de um poema que lhe dediquei alguns anos atrás, homenagem diminuta e insuficiente frente à imensa alegria que sua música me proporcionara e ao doce convívio que tive o privilégio de gozar:

    mistura e manda
    o maestro
    pra lá
    das bandas
    do rio
    preto:
    aéreo conduz
    e sopra
    por onde zoar
    o pássaro azul
    púrpura

Ele se foi na calada da noite, sua memória, no entanto, não há de se calar jamais em nossos corações e ouvidos. Paulo Moura não passou, não passará: virou pássaro alvissareiro… para todos e para sempre.

André Vallias
Rio, 13 de julho de 2010

 

 

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16.07.2010 | par martalanca | Brasil, paulo moura

Simbolein, da Cia Enki de Dança Primitiva

Escrita corporal

Mesmo quando ainda não existia civilização, nem leis, nem tecnologia, já havia no mundo a necessidade humana de ultrapassar a vida comum e se comunicar. A expressão escrita, falada ou gesticulada presente no início da história se tornou alvo de estudos da Cia Enki de Dança Primitiva Contemporânea, que estréia o espetáculo Simbolein, uma tradução corporal de um antigo dialeto africano.

O coreógrafo Paulo Fernandes disparou sem rodeios: “A expressão é a música do corpo”. Como membro da Cia Enki e professor de Dança na Escola de Teatro e Dança Fafi, Fernandes explica que Simbolein partiu de um estudo feito sobre um antigo dialeto da Etiópia, o Ge’ez.

Falado há mais de dois mil anos e que, pela forte resistência etíope à colonização europeia, manteve-se vivo até hoje em algumas localidades do país, a língua serviu de inspiração ao coreógrafo para entender a relação do homem com a escrita. “O homem é sempre traduzido por um gesto de expressão, que é linguagem universal”, explica. Expressão ligadas a um senso de corporalidade implícita que são invocadas na dança.

“É a partir dessa percepção de que a origem da escrita se apropria da visão do homem da imagem da natureza. O modo como vê a folha se relaciona com a sua mão”, comenta Fernandes. Em seus estudos, Fernandes se aprofundou em detalhes da composição da linguagem Ge’ez e descobriu relações matemáticas para traduzir a relação da expressão com o corpo e o espaço.

“O alfabeto deles é fantástico porque tem letras e números, feitos em estrutura circular e em progressão geométrica”, conta ele. A partir dessa relação matemática entre letras e significados é que Simbolein (“símbolo” em grego), tenta redesenhar essa estrutura de expressões, seguindo a percepção de que as escritas antigas obedecem a observação do homem com a natureza.

O espetáculo segue uma escritura emocional do alfabeto Ge’ez pelo corpo, pelo espaço e pela música. Até a trilha sonora caminha nesse sentido, acompanhando uma estrutura matemática proporcional a formação alfabética.

Segundo o coreógrafo, essa reflexão acerca da matemática do corpo tem um objetivo mais forte que é o de repensar o significado das culturas antigas diante de um sistema que descarta tais conhecimentos. “A idéia do projeto é trazer uma cosmovisão da África para o mundo ocidental e, quem sabe, talvez seja até uma reflexão importante para a educação”, pondera.

Com essa proposta, Simbolein recebeu incentivo do Fundo Nacional das Artes (Funarte) para apoio de montagem e circulação: foi o único espetáculo do estado a ser contemplado no Prêmio Klauss Vianna. Sem o prêmio, Fernandes admite que seria um pouco difícil realizar este gênero de espetáculo pelo tamanho de sua profundidade, mas ressalta a importância que os estudos das culturas antigas tem para questionar os conflitos contemporâneos. “O foco desse tipo de provocação é trazer a simplicidade e a profundidade que tem nesses elementos e fazer uma avaliação do que é o conhecimento pra gente”, completa.

Simbolein, da Cia Enki de Dança Primitiva Contemporânea, dia 3, 19:30  e domingo (4), às 16:30 às 19h30, no Auditório da Fafi. Av. Jerônimo Monteiro, 656, Centro, Vitória. Entrada franca.

03.07.2010 | par martalanca | Brasil, dança