P-a-r-a-o-i-d-é: a poesia moderna como prática anticolonial

A alma do homem português é universal

tão universal que

só ele a entende

ANTICORPO. CAP. III

1. Παρῳδία

No que respeita à organização dos géneros literários, a disposição hierárquica dos textos não está apenas ligada à qualidade literária do texto propriamente dito, mas à estrutura a que, desde do início da sua criação, ele deverá pertencer. Entre os géneros literários, que se dividem aristotelicamente em duas categorias, tragédia e comédia ou trágico e cómico, constam o poema épico, a sátira ou a paródia. Paraoidé significa, em termos literais, um canto (oidé) paralelo (para). Pode também significar um canto que se faz contra (para) ou que existe perante (para) outra coisa. Por formar-se a partir do texto original, o objeto paródico ou a reprodução do original foi considerada inferior. Assenta, além disso, na gargalhada, fenómeno que, para os Antigos, ficava atrás da seriedade de géneros como a épica.

2. A paródia é a paródia do entendimento redutor da paródia

A paródia não se livrou do rótulo por séculos. A intimidade com que se apropria do original (aqui, em sentido amplo) custou-lhe um lugar no topo da hierarquia. Ao contrário da sátira, que satiriza uma ideia ou comunidade gerais, o exercício paródico é cruelmente específico. E, por ser considerada inferior, a paródia consiste sempre numa paródia do entendimento redutor de si mesma. 

O valor do exercício paródico, uma apropriação pessoal e direta, determina-se a partir da sua competência. Para que a paródia resulte, o texto original tem de ser conhecido do(a) leitor(a), porque a paródia, além de ser um discurso duplo (cópia e negação do parodiado), é a total inversão do código estabelecido pelo original.

3. A gargalhada antinestesiante

A gargalhada suscitada pelo sistema, reguladora e purgativa, não partilha, com a gargalhada paródica, uma função caústica e ferozmente crítica. Ao contrário da primeira, a gargalhada paródica, corrosiva e desconfortável, escapa ao controlo do(a) leitor(a). Escapa, na verdade, ao controlo do(a) autor(a). 

4. ANTICORPO. A Paródia do Império Risível (2019-2020)

O ANTICORPO, um livro audiovisual, paródia do discurso colonial português, foi antecedido por outros trabalhos. Entre eles, o poema visual PORTUGAL, o poema miniatura MUSEU DOS DESCOBRIMENTOS: PORTUGAL 2019 e o livro O KIT DE SOBREVIVÊNCIA DO DESCOBRIDOR PORTUGUÊS NO MUNDO ANTICOLONIAL. A dimensão poética crescentemente interdisciplinar destes textos põe em causa a forma tradicional do poema, que não deixa de ser, ainda que pontualmente, o modelo usado pelo discurso colonial e colonizador. Por outras palavras e sob a forma de pergunta: o poema interdisciplinar paródico anticolonial amplia as dimensões do poema tradicional?

5. O corpo invisivilizado 

O ANTICORPO, negação do corpo individual (o corpo invisibilizado pela criação do império ou de um corpo coletivo) e, ao mesmo tempo, o corpo paralelo que se rebela, que existe contra, forma-se a partir da combinação do texto, do som e da imagem. O processo transdisciplinar do ANTICORPO desenvolve-se na seguinte ordem: texto, adaptação musical do texto, adaptação do texto musical à imagem, montagem.

6. A arte de ser coerentemente português

Poderíamos afirmar que o discurso colonial português, que tem muitos rostos, níveis e ferramentas, é uma paródia de si mesmo. O homem português colonial existe coerentemente dentro de Portugal, um país que, por sua vez, existe para dentro, olhando para si mesmo; mais concretamente, para o que foi. 

Parece-me, além do mais, que a seriedade do discurso do homem português colonial parte de algumas ideias centrais que mais não são do que o reflexo de um complexo de inferioridade com consequências devastadoras: o egocentrismo exacerbado, a ilusão do direito à propriedade, o controlo, e por isso, a necessidade de hierarquizar os corpos, o conhecimento e as disciplinas; a heteronormatividade ou a masculinidade tóxica, o branqueamento do mundo ou o engrandecimento ou embelezamento da violência sobre o Outro.

7. O humor empático-crítico

O ANTICORPO, um livro audiovisual desconfortável e desagradável, reúne as palavras, as imagens e os sons que não querem ser vistos nem escutados pela lógica colonial e assenta num exercício de empatia, em que a empatia e o cómico se confundem. A confusão é necessária, pois, perante o pensamento colonial anestésico, o riso faz mais do que suscitar o caos. Dá a vê-lo.

ver aqui

ou 

Texto publicado em fevereiro na página do Grupo de Investigação Impérios do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Lisboa.