Um Museu no Bom Retiro

“Fabiano olhava a catinga amarela, onde as folhas secas pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos e os garranchos se torciam, negros, torrados. (…). Mas, quando a fazenda se despovoou viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderiam nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se no mundo como um negro fugido”

Graciliano Ramos, Vidas Secas.

SP: Record, 1979 (pág. 16); original de 1938.

 

JUVENTUDE EM MARCHA

Muitos são os caminhos possíveis para começar a falar do “Museu do Estrangeiro” de Ícaro Lira, projeto que, à semelhança de grande parte dos seus trabalhos, combina formas de conhecimento temporalmente distintas e politicamente contraditórias, tem a potência remissiva da enciclopédia e a deriva da montagem surrealista, um work in progress que articula ao longo do tempo vários tipos de agenciamentos de pessoas, objetos, e afetos.

Começo então pelo caminho que julgo mais fácil para falar deste “museu”, e que tem a ver com um episódio do meu encontro com Ícaro. É um episódio totalmente mundano e à partida sem grande interesse, mas que tangencia a “problemática” formação cultural e identitária no Brasil, essa espécie de encruzilhada civilizacional que aqui se vive. É sobre ela que espero conseguir falar um pouco ao longo deste texto.

Mas vamos primeiro ao episódio. Quando em 2010 eu cheguei ao Rio de Janeiro para morar estava em cartaz “Juventude em Marcha”, um filme do realizador português Pedro Costa. Talvez por ainda estar muito desatenta sobre a programação cultural da cidade, Ícaro chamou-me gentilmente a atenção sobre o filme e enviou-me as coordenadas: “Se você chegar cedo pode ser que consiga pegar uma senha”. “É a primeira mostra dele no Brasil, e vai encher…”.

Aconteceu, porém, que não consegui chegar a tempo para pegar a senha, que a fila era grande demais para esperar uma vaga, e que acabei por ver o filme muito mais tarde em dvd. “Juventude em Marcha” conta, na forma de uma quase saga, a história do caboverdiano Ventura num subúrbio de Lisboa. Através dele é narrada a vida dos que vieram das antigas colónias africanas “para trabalhar nos canteiros de obras portugueses; dos que perderam a família, a saúde, por vezes a vida; dos que se amontoaram nos casebres dos subúrbios antes de serem mandados para moradias novas, mais claras, mais modernas e nem por isso mais habitáveis”[1].

Ao contrário da maioria dos filmes sobre emigração, em “Juventude em Marcha” não existe moral nem preocupação explicativa. Não nos coloca a favor de uns em detrimento de outros, o que não quer dizer que não vincule uma “política” onde corpos daqui e de outros lugares circulam intensamente dentro de um paradoxal constrangimento à sua mobilidade e um desenraizamento relativamente à “grande” história europeia. Em “Juventude em Marcha” fala-se da descolonização portuguesa em África e de um Portugal pós-adesão à União Europeia, mas tudo nele tem a ver com a história do Brasil e do mundo que habitamos hoje.

O que gostaria de reter deste episódio é que ele significa mais que o anúncio da minha amizade com Ícaro naquele momento em que eu acabava de chegar ao Rio. Ao falarmos de Ventura e dos personagens imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele, estavamos a falar de nós mesmos: ambos estrangeiros naquela cidade, ambos migrantes, “filhos” de colonizadores portugueses e retirantes nordestinos, diante de futuros que esperamos, de diversas maneiras, vir a ser cada vez mais “mestiços”.

 

UM MUSEU QUE NÃO É

Qual o sentido de apresentar um “Museu do Estrangeiro”? Como falar de estrangeiros em São Paulo e no Brasil partindo de uma forma já antiga – o museu? Qual o interesse em fixar num “arquivo” fechado o que é de natureza aberta, coletiva e desterritorializada?

A história da arte do século XX e XXI está cheia de exemplos de artistas que fizeram uso do “arquivo”, do “museu”, da “enciclopédia’ e da “biblioteca” e que, com maior ou menor grau de ironia e crítica, criaram um campo de embate e discussão sobre a história e a memória, a ficção e a não-ficção, a participação do público.

De Marcel Duchamp com Boîte en valise, (1935-40), o museu portátil das reproduções dos seus trabalhos que ironizava a ideia de autenticidade, até  Jean-Yves Jouannais, herdeiro de Filiou e Broothaers que, desde 2008, se consagra a um único projeto em constante processo com o público (L´Encyclopédie des Guerres), muitos são os artistas que procuraram enfrentar as instituições através dos seus próprios formatos ou, como diria Marx, “derreter os sólidos” da tradição e os nexos habituais entre discursos, imagens e “restos” da história individual e coletiva.

            Diferentemente do caso europeu, a descompassada e conflituante relação com a memória e a história no Brasil, teorizada por intelectuais como P. E. Sales Gomes e A. Cândido entre vários outros, gerou diferenças na resposta dos artistas face às instituições. O curador e crítico Guy Brett chama a atenção para uma paradoxal persistência dos formatos “caixa” e “livro”, especialmente nos anos 60 e 70, momento de intenso enfrentamento político e abertura para a vida. Um non-sense? Respondendo a esta contradição dos formatos contidos em tempos de disputa, Guy Brett escreve: “Talvez estivessem atraídos [os artistas] pela própria razão do paradoxo envolvido, pela ironia a ser extraída do abismo entre o vazio calmo e manejável da página ou receptáculo, facilmente ao alcance da mão, e a incontrolável realidade circundante, seja ela o cosmos, a natureza ou a cidade”[2]

Voltando ao “Museu do Estrangeiro” que também se serve de formas fechadas e instituições falidas julgo porém que o “paradoxo” de que Brett fala, se desloca para novos campos. Hoje as caixas não são mais fechadas, e os livros não nos oferecem o manejável da página. Vivemos num regime de visibilidade excessiva em que a arte tem de aceitar ser a superfície que acolha a cisão dos corpos e das coisas.

A cisão de Lira, julgo, está no caráter “instável” das suas propostas onde nada é fixo. Ameaçam a forma e a estabilização. Colocam questões importantes à sobrevida das suas instalações na economia da arte (galerias, colecionadores, museus). Não parecem importar-se com isso.

E de que maneira estas questões são colocadas? 

O espaço que está destinado ao “Museu do Estrangeiro” não são as salas de exposições regulares da Oficina Cultural Oswald de Andrade, mas um casinhoto sem sinalização nos “fundos”, que parece uma área de serviço para guardar materiais de limpeza ou mobiliário velho. Sem quaisquer característica de “museu”: segurança, cuidados de conservação, controle de humidade e luz. Uma vez dentro deste espaço, e assim como em muitos dos projetos de Lira, o nosso olhar é guiado sem roteiro e sem narrativa de apresentação[3]. Vagueia por entre recortes de jornal sobre as diferentes vagas de imigrantes no país, revistas “ilegíveis” de coreanos, chineses e japoneses, alguns exemplares da revista “Travessia” que abordam a migração como objeto de estudo académico, e ainda por textos que o artista leu, como “Écorces” de Didi-Huberman. Excertos da Lei Brasileira do Imigrante escritos à mão nas paredes, áudios com ruídos da cidade e testemunhos de imigrantes com os quais Ícaro convive[4], e alguns trabalhos seus mais antigos formam o conjunto deste “Museu”, para além da oficina de fanzine, da publicação, e dos debates que acontecem ao longo do projeto.

Ao contrário das obras que circulam nos espaços destinados à arte, o traço distintivo dos projetos de Lira é que os “objetos” já existem num contexto amplo de circulação e mobilidade, e sua operação “artística” está no deslocamento e no rearranjo destes com vista a criar um novo sistema de relações. Um gesto que não procura fixar (a forma, a narrativa, o significado) e que, por isso mesmo, “perde” para arte para “ganhar” para a vida e os seus vários contextos sociais, políticos ou económicos.

Assim sendo, as viagens são momentos fundamentais para reforçar o sentido transitório e casuístico dos seus projetos. Das deambulações pela cidade (ou pelo sertão brasileiro calcorreado nos últimos anos) Ícaro traz-nos objetos, fragmentos e pedaços de discursos que, camada por camada, nos remetem a uma arqueologia completamente amadora e peripatética. Os áudios disponíveis para escuta na exposição são disso também exemplo: uma seleção pouco criteriosa de “testemunhos” de imigrantes com os quais Ícaro convive no Bom Retiro, na Sé, e no Brás. Pouco criteriosa porque não interessa a “amostragem” de uma população específica com vista a obter um conjunto de conclusões válidas sobre a “questão” da imigração. Não se trata de uma reportagem jornalística, nem de uma tese de etnografia contemporânea apesar de, enquanto pesquisa, se servir dos utensílios destas disciplinas.

No entusiasmo de Ícaro Lira face ao seu campo de pesquisa há qualquer coisa que lembra James Agee e Walker Evans quando, jovens, na década de 30, optaram em conviver com famílias de meeiros quase miseráveis do Alabama para mais fidedignamente fazerem uma reportagem sobre as condições de vida dos lavradores pobres brancos no sul dos Estados Unidos. Um mesmo tipo de aproximação ao “objeto” e que é quase um querer “devir” a realidade  que se tem pela frente, mesmo que sofrível e contraditória, juntando a voz singular a todas as vozes, usando a mesma língua sem que se note qualquer mudança de plano entre o artista e aqueles que tem pela frente.

As ideias de registo, de coleta e de montagem dão, portanto, certa estrutura e certa densidade ao arranjo do espaço de exposição que resulta de um processo de arrumação lento e meditativo.

Dos objetos circula uma energia que vai passando de uns para os outros, cada vez mais depurada e filtrada, como num processo alquímico onde se busca um murmúrio fantasmático da história e da vida por via dos seus fragmentos, extratos e pó. Como nos diz Ícaro e de certa forma sintetizando a sua prática: “Eu sinto necessidade de que as coisas aconteçam de forma decantada e aos poucos. Normalmente demoro semanas ou mesmo meses para as coisas irem tomando um resultado final”[5].   

 

REACOMODAR OS DESACOMODADOS

Planear e montar o projeto “Museu do Estrangeiro” é uma maneira de percorrer aproximadamente cinco séculos de perguntas sobre o racismo e a sociedade brasileira. E também uma forma de indagar, em pleno século XXI, sobre a “problemática” formação cultural e identitária no Brasil, que mencionámos no início deste texto.

Os episódios estão aí para quem quiser ver e tirar algumas conclusões. Acontecimentos tão recentes e tão díspares como os movimentos de moradores dos bairros do Leblon ou de Higienópolis contra a abertura do metro, as remoções da Copa e das Olimpíadas, o caso do rapaz negro amarrado a um poste (em nome da justiça!)  no Rio, as grades nos prédios dos bairros de classe alta, as declarações do bispo Edir Macedo aos seus fiéis evangélicos (mais de 22% da população brasileira) contra o matrimónio inter-racial, a exortação ao retorno da ditadura militar nas manifestações de 15 de Março, ou a escravatura contemporânea infligida aos haitianos, “etc…etc…”, fazem-nos entender que o Brasil é um país cheio de medos.  E por isso a difícil superação das barreiras e segregações sociais que vigoram desde a colonização portuguesa.

A separação entre “nós” e “eles” é uma marca constitutiva da história brasileira e de outras histórias nacionais. O “nós” do credo nacionalista espia aqueles que são diferentes do “nós”. E os espia a partir dos seus traços e características diferenciadoras que são prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação. “Estrangeiros” são, portanto, todos que não o “nós”. São o negro, o pobre, o homossexual, o índio, etc. espiado nas suas diferenças raciais que, como nos diz Foucault, são a condição para a aceitação da anulação e invisibilidade.

A arte nunca esteve fora deste procedimento do “nós” e do “eles”. É um poderoso canal de transmissão e de sobrevivências capaz, para o bem e para o mal, de perpetuar formas de exclusão, como também de transformação.

Tendo consciência destas possibilidades, Ícaro Lira convida-nos a adentrar no seu “Museu do Estrangeiro” não só através do cruzamento do discurso mediático, do discurso científico, do discurso do Estado presentes no arranjo no espaço de recortes de jornais, publicações e livros, legislação, como também do próprio discurso da arte.

A imagem que serve de convite ao “Museu do Estrangeiro” é um exemplar da pintura académica idealista e ilustra as teorias do branqueamento, discutidas e praticadas no Brasil desde o início do século XIX até à ditadura de Vargas[6]: “A Redenção de Cam” (1895) do espanhol Modesto Brocos y Gómez[7].

Muito sumariamente[8], “A Redenção de Cam” configura a ideia de que o branqueamento da população brasileira se daria em três gerações: da avó negra, descenderia um casal mulato que conceberia um filho branco. A pintura (um quase presépio dos trópicos) serviu de ilustração das teses de João Batista de Lacerda, médico, antropólogo e diretor do Museu Nacional, apresentadas no I Congresso Internacional das Raças em Londres (1911), sobre a real possibilidade de alcançar o branqueamento da raça negra no Brasil.

O contexto nacional era o de um discurso da elite brasileira (políticos e cientistas) que queria mudanças económicas, e a ideia do branqueamento servia como uma saída ideológica para este momento crítico de transformações na política e na economia. Vai igualmente servir para, uma vez abolida a escravatura em 1888, se promover uma grande campanha de “importação” de mão-de-obra branca europeia[9] – o que teve como “efeito colateral” a “marginalização” (“não-integração”) dos negros na nova sociedade de classes que estava surgindo nos centros urbanos do país.

Racismo e migração estão em evidencia em “A Redenção de Cam”, e as suas intricadas relações prosseguem em “Museu do Estrangeiro”. A diferença é que enquanto a pintura de Brocos y Gómez “oferece uma maneira de ver um assunto”[10] que é preconceituosa, o projeto de Lira, pelas razões que temos vimos a citar, não ilustra uma tese, mas sim abre as imagens às suas imprevisibilidades, atua na instabilidade da história, e desarruma os corpos e os volumes estáticos da Pintura.

São dois regimes de visibilidade distintos sobre as lutas de representação social, e duas formas distintas de mobilizar o espectador diante das imagens. Como diz Lira: “não tenho interesse em produzir um objeto final, fechado, e quero que todas estas ações do Museu do Estrangeiro reverberem um pouco mais do que simplesmente esta fotografia, aquela caixa, ou aquele áudio. Talvez a expansão cause a situação de não atingir nada. Não sei. Talvez eu tenha esse papel de desacomodar aquilo que está acomodado”[11].

Esgotadas as formas que inventamos para entender acontecimentos tão marcantes e traumáticos quanto o transporte forçado de milhões de escravos durante o Império, ou as formas quotidianas de separação social e racial no Brasil, talvez tenhamos que nos voltar para as pedras (que Ícaro sempre pousa em cima de livros), para o pó (que vai cobrindo as suas montagens), e para os minúsculos detalhes que nos olham, que nos olham.

 

 


[1] p. 147 “A política de Pedro Costa” in J. Rancière, As distâncias do cinema, Contraponto: Rio de Janeiro, 2012.

[2] p. 11, Brett, Guy (org.), Aberto e fechado: caixa e livro na arte brasileira – the enclosed openness box and book in Brazilian art, São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012.

[3] Foi deliberado pelo artista e pela curadoria que este texto não constasse da exposição.

[4] Os áudios registram as reuniões no CRAI (Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes da cidade de São Paulo) e nas Missões Pastorais das quais participou, ou ainda aos relatos de pessoas que escutou: Berenice Young, peruana, voluntária do CRAI; Keti, búlgaro estudante de Ciências Sociais na USP; Massar Saar, senegalês ativista do Movimento Migratório; Pedro Capeletti, uruguaio artista e publicitário; Kuta, angolano, artista; Fernando Velasquez, uruguaio, artista e curador.

[5] Entrevista realizada com o artista em Fevereiro de 2015.

[6]Getúlio Vargas justificaria a assinatura de um decreto-lei (1945) que devia estimular a imigração europeia com as seguintes palavras: “[…] a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua ascendência”.

[7]“Redenção de Cam” (1895) foi usada no convite da exposição “Museu do Estrangeiro”, Oficina Cultural Oswald de Andrade.

[8]Para um aprofundamento iconológico da pintura de Brocos y Gómez veja-se a notável tese de Tatiana Lotierzo, Contornos do (in)visível: A redenção de Cam, racismo e estética na pintura brasileira do último Oitocentos, Departamento de Antropologia, USP, São Paulo.

[9]A chegada de emigrantes ao Bairro do Bom Retiro em São Paulo é contemporânea destas políticas.

[10] Vide Tatiana Lotierzo, Contornos do (in)visível: A redenção de Cam, racismo e estética na pintura brasileira do último Oitocentos, Departamento de Antropologia, USP, São Paulo.

[11]Entrevista realizada com o artista em Fevereiro de 2015.

 

por Marta Mestre
Vou lá visitar | 24 Abril 2015 | arquivo, estrangeiro, Ícaro Lira, instalação, Museu do Estrangeiro