A história e protagonistas da música afro-portuguesa

Capa do livro | 2020 | cortesia do autor  Capa do livro | 2020 | cortesia do autor Não dá para ficar parado. Música afro-portuguesa. Celebração, conflito e esperança, de Vítor Belanciano, é o quinto e mais recente título da coleção ‘Memoirs – Filhos do Império’, que tem vindo a ser publicada nas Edições Afrontamento. Contando a história de um conjunto diverso de artistas, desde General D, Chullage e Djamal, a Buraka Som Sistema, Sara Tavares, Allen Halloween, Mindy Guevara, Throes + The Shine, Batida ou Scúru Fitchádu, Dino d’ Santiago e os DJs da Príncipe Discos, o jornalista e crítico do jornal Público desenha uma outra cartografia da música portuguesa contemporânea, em que o prefixo “afro” adquire centralidade.

Mas o que significa, afinal, ‘música afro-portuguesa’ – como a designa Belanciano? São as expressões musicais produzidas maioritariamente por pessoas negras portuguesas e imigrantes africanos em Portugal que, em grande parte, entrelaçam sonoridades como o funaná, o semba, o zouk, o gumbé ou o batuku – para citar apenas alguns exemplos – com as linguagens musicais genericamente mais globalizadas do rap e da eletrónica, entre outras. A música afro-portuguesa assim entendida é fruto de trânsitos, reelaborações e parcerias transculturais, transgeracionais e transnacionais passíveis de reconfigurar outra história da cultura e sociedade portuguesas, na qual as contribuições, as vozes e os legados negros, mais do que reconhecidos como parte de uma realidade à parte, são valorizados como elementos vitais no universo artístico português.

A relevância da participação negra em Portugal nas mais diversas áreas – incluindo a música – remonta já a várias centenas de anos, mas raras vezes é articulada nas narrativas públicas dominantes. Não se trata, naturalmente, de os negros em Portugal não terem voz ou não se encontrarem presentes no quotidiano do país. Trata-se, isso sim, muitas vezes, de falarem sem serem considerados, de verem sem serem vistos, de cantarem sem serem escutados – pelo menos, fora de uma esfera cultural tendencialmente mais circunscrita.

Na última década, sensivelmente, têm, todavia, surgido renovados espaços de debate e crítica do lugar dos corpos racializados e das vozes silenciadas em Portugal. Este movimento político, social e artístico, fruto de um percurso vasto que o projeto Memoirs tem acompanhado de perto, encontra expressão na literatura, nas artes visuais, plásticas e performativas, no cinema, na academia, nos ativismos e nos média e é indissociável de discussões mais amplas sobre arte, (anti)racismo, políticas de visibilidade, cidadania e hierarquias de poder. São esses questionamentos que os filhos dos Buraka Som Sistema e os netos de General D – simbolicamente falando e referindo-me à música em particular – enunciam. Recorrendo, muitas vezes, à sua condição de artistas e à canção como instrumentos de denúncia, de mobilização e intervenção políticas, de produção de contra-memórias ou de afirmação cultural, estes músicos reclamam o reconhecimento público do seu lugar na sociedade e cultura portuguesas, como atestam as dezenas de entrevistas dadas a Vítor Belanciano ao longo de mais de uma década.

Expressão de heranças ambíguas, entre a celebração e o silenciamento ou o conflito, boa parte da música, das sonoridades e dos discursos dos artistas convocados por Vítor Belanciano neste livro relaciona-se (mais ou menos, dependendo do caso), ativa e explicitamente, com questões de raça e classe, racismo e desigualdades, e com a opressão e violência – policial e não só – contra negros em Portugal (ver, também, entre outros, Varela, 2020 e Andrade, 2019). Podem, também, nalguns casos, afirmar-se como resposta às representações negativas que, tantas vezes, ainda prevalecem sobre estes homens e mulheres, num certo Portugal ainda avesso a confrontar o seu passado colonial-racista e respetivos lastros no presente.

Hoje, é inegável que a paisagem sonora nacional e a de Lisboa, em particular, é também desenhada a partir dos seus subúrbios, nomeadamente, no Bairro da Quinta do Mocho, no Bairro da Jamaica, na Cova da Moura, na Reboleira ou no Seixal, lugares que aqui se constituem já não apenas como espaços estigmatizados, mas como espaços de criação e revitalização da música portuguesa. Espaços que não têm pejo em ocupar e, sobretudo, em fazer mover o “centro”, na muito glosada expressão de Ngũgĩ wa Thiong’o (1993). O livro Não dá para ficar parado, de Vítor Belanciano, sugere isso mesmo, desde logo no seu título, que aponta para o gesto político, social e cultural de deslocação que a música afro-portuguesa pode representar para um exercício de descolonização das artes, da cultura e da história em Portugal.

Referências Bibliográficas:
Andrade, Soraia Simões de (2019), Fixar o (in)visível. Os primeiros passos do RAP em Portugal (1986-1998). Casal de Cambra: Caleidoscópio.
Belanciano, Vítor (2020), Não dá para ficar parado. Música afro-portuguesa, celebração, conflito e esperança. Porto: Edições Afrontamento.
Varela, Pedro (2020), “Antirracismo e o Rap no Feminino”, Mural Sonoro, 15 de maio.
Thiong’o, Ngũgĩ wa (1993), Moving the Centre: The Struggle for Cultural Freedoms. Londres: James Currey. 

 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624);
MAPS  Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020).
Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

por Inês Nascimento Rodrigues
Palcos | 30 Janeiro 2021 | dança, Dj Marfox, editora Príncipe, Lisboa, Memoirs, música, música afro-portuguesa, não dá para ficar parado, Vitor belanciano