A humanidade que pensamos ser

*A partir da entrevista conduzida por Rita Natálio e Pedro Neves Marques a Ailton Krenak, durante a sua vinda a Lisboa em Maio de 2017 no âmbito de uma conferência no Teatro Maria Matos, transcrita e editada por Marta Lança.

integrado no projeto ANTROPOCENAS.

 

Talvez a gente esteja muito condicionada a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente não caiu já? Houve um tempo em que o planeta que chamámos Terra juntava os continentes todos numa grande Pangeia. Se olhássemos de um outro lugar do céu tiraríamos uma fotografia completamente diferente do planeta. Quem sabe se, quando o Iuri Gagarin disse “a Terra é azul”, tenha feito um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser. Ele olhou com o nosso olho, viu o que a gente queria ver. Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens: a que você pensa e a que você tem. Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, porque é que nos apegámos tanto a esse retrato com a gente aqui? O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia de humanos. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda, é o osso duro de roer do Antropoceno.

Essa configuração mental é mais do que uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo – várias gerações se sucedendo, camadas de desejos, projeções, visões, períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que herdámos e fomos burilando, retocando, até chegar à imagem com a qual nos sentimos identificados. É como se tivéssemos feito um photoshop na memória coletiva planetária, entre a tripulação e a nave, onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável. É como parar numa memória confortável, agradável, de nós próprios, por exemplo, ao colo da nossa mãe mamando: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa, alimentando-nos forever.

Um dia ela move-se e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, dá uma olhada em volta, reclama porque não está vendo o seião da mãe, não está vendo aquele organismo materno alimentando toda a nossa gana de vida, e a gente começa a estremecer, a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos mundos, que o mundo está acabando e a gente vai cair nalgum lugar. Mas a gente não vai cair em lugar nenhum, de repente o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol mas, como estávamos tão acostumados, a gente quer mais é mamar.

 

FIM DO MUNDO E PÁRA-QUEDAS PRAZEIROSOS

 

O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com o prazer. Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da Mãe-Terra. Todas as histórias antigas chamam à Terra Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem grega da deusa da prosperidade que tem uma canastra que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas, a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.

Ailton Krenak ' Um dia ela move-se e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, dá uma olhada em volta, reclama porque não está vendo o seião da mãe.'Ailton Krenak ' Um dia ela move-se e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, dá uma olhada em volta, reclama porque não está vendo o seião da mãe.'

A ciência moderna, as tecnologias, as movimentações que resultaram naquilo que chamámos de “revoluções de massa”, etc, tudo isto não ficou localizado numa região mas cindiu o planeta a ponto de, no século XX, termos situações como a Guerra Fria em que você tinha, de um lado do Muro, uma parte da humanidade e a outra, do lado de lá, na maior tensão, prontos para puxar o gatilho para cima dos outros. Aquilo também é um fim de mundo. Não tem fim do mundo mais eminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e outro do lado de cá tentando adivinhar o que outro está fazendo. Isso é um abismo, isso é uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Porquê tanto medo assim de uma queda se a gente não fez outra coisa nas outras eras se não cair?”

Já caímos em diferentes escalas e diferentes lugares do mundo. Mas temos muito medo sobre o que vai acontecer quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma paranóia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdámos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas o tempo inteiro cagando de medo. Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um pára-quedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de pára-quedas. Pára-quedas coloridos, divertidos, inclusive prazeirosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é de gozar, de ter prazer, de viver no prazer aqui na Terra. Então, que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de a gente ficar inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica.

 

O MUNDO TRANSFORMOU-SE NUMA FÁBRICA DE CONSUMIR INOCÊNCIA

 

Na verdade, a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica.

Há muito tempo que não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista. Acabaram os cientistas. Toda a pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que a gente conhece é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. Antes dessa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro para esta nossa ansiedade de perder o seio da mãe, vêm logo com um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente. É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e a gente desconfiasse das descobertas, como se todas fossem trapaça. A gente sabe que as descobertas no âmbito da ciência, as curas para tudo e mais alguma coisa, são uma baba. Os laboratórios planeiam com antecedência a publicação das descobertas em função dos mercados que eles próprios configuram para esses aparatos, com o propósito de apenas continuar a fazer a roda girar. Não uma roda que abre outros horizontes e acena para outros mundos no sentido prazeiroso, mas outros mundos que só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade, de perda daquilo a que podemos chamar inocência. O mundo transformou-se numa fábrica de consumir inocência e deve ser potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado pela inocência. A inocência no sentido de ser simplesmente bom, sem nenhum objetivo. Gozar sem nenhum objetivo. Mamar sem medo, sem culpa, sem nenhum objetivo. Nós vivemos num mundo em que você tem de explicar porque é que está mamando.

 

O LUGAR DO SONHO E O MUNDO ENCOMENDADO

 

De que lugar se projetam os pára-quedas “prazeirosos”? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa Terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza como “estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro”, mas sim o sonho que é uma experiência transcendente onde o casulo do humano implode de dentro para fora e a experiência espiritual e transcendente abre para outras visões da vida não limitada. Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar de natureza. Não é nomeada porque a gente só consegue nomear o que experimentamos. O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar. Assim como quem vai para uma escola aprender uma prática, um conteúdo, uma meditação, uma dança, pode ser-se iniciado nessa instituição para seguir, avançar num lugar do sonho. Alguns xamãs ou mágicos habitam ou têm passagem por esses lugares. São lugares com conexão com o mundo que partilhamos, não é um mundo paralelo mas tem uma potência diferente.

Quando por vezes me falam em imaginar outro mundo possível neste mundo, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos relacionar-nos com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na realidade estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós, estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço, mas nós, esses selecionados humanos, estamos aqui para pensar outros mundos, onde se vai continuar fazendo a mesma application, detonando com eles e produzindo outros de acordo com as nossas expectativas futuras. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós.

Na verdade, a gente vive reclamando, mas essa coisa foi encomendada, chegou com lacinho e aviso: “Depois de abrir o embrulho, não tem troca”. Há duzentos, trezentos anos atrás ansiaram por esse mundo. Montes de gente dececionada, pensando: “Mas é esse mundo que deixaram para a gente?” Qual o mundo que você está agora empacotando para deixar para as gerações futuras? Você que vive falando de outro mundo, já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está encomendando é o que eles estão querendo? A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. Quem vai receber são os nossos netos, bisnetos, no máximo filhos envelhecidos. Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhares de mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e que serviço de delivery você está chamando? Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores, há algo de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, tínhamos encomendado muito melhor.

 

FORA DA DANÇA CIVILIZADA DA TÉCNICA

 

Devíamos admitir a natureza como essa imensa multitude de formas incluindo cada pedaço de nós, que somos partes de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E a gente cria essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral que todo o mundo aceita que existe uma humanidade que confere consigo mesma, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica a gente escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com natureza. Tem alguma coisa dessas camadas que são “quase-humanas”, mas que estão sumindo, que estão sendo exterminadas da interface de humanos “muito-humanos”. Os quase-humanos são milhares de pessoas que o Eduardo [Viveiros de Castro] chamou de indígenas (não precisa de ser índio propriamente) que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controlo do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida.

Já que se pretende olhar aqui o evento [Antropoceno] que pôs em contato mundos que foram capturados para dentro desse núcleo preexistente de civilizados – no ciclo das navegações quando se deram as saídas daqui para a Ásia, África e América – é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceram sem que fosse pensada uma ação de eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenómeno que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que vinha da Europa e descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo, tampouco as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI. Não estou liberando o agrave e a responsabilidade de toda a máquina que moveu as conquistas coloniais, estou chamando atenção para o fato de que muitos eventos que aconteceram foram o desastre daquele tempo. Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. Para a grande maioria está sendo chamado de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no quotidiano, nas relações, estamos todos jogados nesse abismo.

DEMARCAÇÃO DE TERRAS NÃO CHEGA

Passados 30 anos, se questiono a demarcação do jeito que foi colocada em 1988 é por ânsia de novas respostas a coisasque já estão postas há muito tempo. Temos de pensar algo mais do que uma campanha de demarcação geral.Olhando em perspectiva, imagino que para quem está vivendo no Brasil, nessa situação de verdadeiro assalto às aldeiase aos redutos indígenas, tirar de cena a bandeira de demarcação não teria sentido. Não vou fazer isso agora, mas essedebate precisa de ser encorajado. É preciso pôr em questão, não ficar naturalizando essa ideia de que daqui a mil anosvamos estar negociando com o governo brasileiro para demarcar terras indígenas; na verdade isso seria aceitar comopermanente uma situação de desigualdade. Vamos imaginar que, por um raio que os parta, alguém chegava e dizia “estátudo demarcado”, aí levantamos e o que acontece? Não vai ter garimpo, invasão, contaminação, mercúrio, madeireiro?Como é que aquelas sociedades vão disputar com essas coisas aqui de fora mesmo que você brinque a dizer que estátudo demarcado? Além de todas as crises embutidas nessa vida política brasileira, se não estivessemos vivendo umacrise institucional da política, estaríamos plantando para o futuro uma questão que ainda não fomos capazes de pôr namesa: o que acontece depois de todas essas reivindicações territoriais do povo indígena e as questões relacionadas comesse Apartheid estarem resolvidas? Tem a ver de novo com o seio da mãe, mesmo que, como conforto para a mente,você queira perpetuar isso, temos um problema de facto…

 

 

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Conceção e curadoria Rita Natálio, João dos Santos Martins Proposta inicial e texto Rita Natálio |Dança Ana Pi, Ana Rita Teodoro, João dos Santos Martins | Artes Visuais Pedro Neves Marques |Música Winga Kan | Assistência dramatúrgica e de ensaios Joana Levi | Performer conferencista Jota Mombaça AKA Mc Katrina | Escultura Alexandra Ferreira | Participação especial Maria Inês Gameiro, Pedro Fazenda, Ana Paço | Luz Eduardo Abdala  Som Hugo Valverde, Ricardo Crespo | Cabelo Ana Fernandes/Griffe Hairstyle | Consultores Renato Sztutman, Suely Rolnik, Ailton Krenak, Paulo Tavares | Design de Publicação Isabel Lucena | Produção Associação Parasita | Apoio à produção Circular Associação Cultural | Produção executiva David Cabecinha, Patrícia Azevedo da Silva, João dos Santos Martins, Rita Natálio | Coprodução Materiais Diversos, São Luiz Teatro Municipal, Festival Temps d’Images, Centro Cultural Vila Flor | Apoio Fundação GDA, Goethe-Institut São Paulo, Departamento de Biologia Vegetal da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, MARE Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, Forbo Flooring Systems, Departamento de Escultura em Pedra do Centro Cultural de Évora | Apoio Institucional Teatro Sá da Bandeira – Santarém |Residências Culturgest, O Espaço do Tempo, Materiais Diversos, Centro de Criação do Candoso, 23 Milhas, Devir Capa, Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas | Parcerias BUALA  |Agradecimentos Rua das Gaivotas 6, Teatro Municipal Maria Matos, Ana Amorim, Vanda Brotas, Pedro Fazenda, Manuel João Martins, Teresa Rocha Santos, João Pinto da Costa e Armando Duarte, Manuel Miranda Fernandes | Registo Videográfico Jorge Jácome e Marta Simões | Registo Fotográfico José Carlos Duarte

Projeto apoiado por República Portuguesa:

Cultura / DGArtes Direção-Geral das Arte

por Ailton Krenak
Mukanda | 26 Outubro 2017 | Ailton Krenak, Antropoceno, clima, crise, Fim do mundo, índigenas