Os perdidos: angolanos ilegais a caminho dos Estados Unidos

A viagem de Luzia são noites. Foi de noite que cruzou duas vezes o mar colombiano para chegar ao Panamá em velhos barcos de madeira. E foi de noite que desembarcou numa praia que não sabe como se chama – provavelmente Puerto Obaldía, onde a maioria dos traficantes atira os migrantes ilegais à sua sorte depois da travessia. Luzia espera agora com mais oitenta pessoas para entrar na selva do “Tampão do Darién”. Os migrantes que cruzam este caminho, vindos da Colômbia, convergem que este é o pior troço da viagem para o norte. Chamam-lhe “a floresta”. Também “pesadelo”. Ou “inferno”.

Os parcos 65 km em linha recta que separam Puerto Obaldía do primeiro aquartelamento do Serviço Nacional de Fronteiras do Panamá (Senafront), na aldeia indígena de Metetí, são um mergulho cego numa selva profunda. Com 750 mil hectares, o Tampão do Darién entope literalmente a fronteira entre o Panamá e a Colômbia com uma argamassa de folhagem densa. É tão impenetrável que a estrada Panamericana detém-se às suas portas, na aldeia panamiana de Yaviza, depois de 12.500 km de asfalto desde o Alasca. Recupera fôlego a 110 km dali, em Turbo, já na Colômbia. “O caminho está todo fechado por árvores e plantas, uma pessoa perde-se facilmente”, descreve-nos o angolano João, que encontrámos no México. 

Os trilhos em ziguezague cortados à catanada na mata estão repletos de roupa, comida, garrafas e brinquedos deixados pelo caminho. Na lama, as pegadas difusas marcam um percurso que, para os migrantes, é eterno. “Quando chegamos à floresta, pensamos que é só atravessar uns rios e que cruzamos rápido, mas é muito, muito difícil. Demorei mais de uma semana a chegar ao outro lado”, relata-nos a angolana Ana, que viajou por ali com a filha e o marido. Sem guias, garante, seguiu apenas o caminho aberto por migrantes que passaram por ali antes.

O isolamento é quase absoluto e transforma o Tampão do Darién num cocktail explosivo e potencialmente mortal onde a lama que aqui enterra até aos joelhos, os pântanos, montanhas e a chuva torrencial não são o pior pesadelo dos viajantes. O Darién é território de bandos de ladrões, violadores e traficantes de droga. Na penumbra, o perigo é constante, testemunha “Jacqueline”, migrante de Kinshasa que viveu entre Luanda e o Menongue por oito anos, e que encontrámos em Tapachula, no México. “Lá na floresta, uns bandidos apareceram do nada quando estávamos a descansar para beber água. Traziam armas muito grandes. Meteram os dedos nos ânus dos homens e nas vaginas das mulheres para ver se escondíamos dinheiro e ameaçaram matar-nos.”

A Interpol e a Polícia Nacional da Colômbia calculam, em dados partilhados com a BBC, que o tráfico de migrantes que passa pela região rende semanalmente cerca de um milhão de dólares. Em Setembro do ano passado, o Ministro panamiano de Segurança, Rolando Mirones, descortinou um esquema elaborado, em que migrantes de África e da Ásia pagavam entre 25 e 50 mil dólares a “coyotes” (traficantes de pessoas) para levá-los da América do Sul aos Estados Unidos através do Darién.

Neste lugar, a única passagem por terra entre a América do Sul e o centro e norte do continente, também a cocaína corre solta. Os migrantes são vulneráveis e convertem-se em presas fáceis dos “narcos” que ali operam, como o cartel colombiano Clã do Golfo. Entre Janeiro e Julho de 2019, as autoridades panamianas apreenderam cinco toneladas de droga na região. Uma parte era transportada nas mochilas de estrangeiros que cruzavam a selva a pé. Os narcotraficantes ameaçam eliminá-los se mostram algum tipo de resistência.

Os mortos

Nos trilhos que rodeiam Bajo Chiquito, aldeia panamiana na boca da selva, são famosas as histórias de cadáveres de africanos prostrados no caminho. “As autoridades tentam fazer a identificação e autópsia, mas em muitos casos os corpos já estão num tal estado de descomposição que enterram-nos ali mesmo onde os encontraram, em valas comuns”, lê-se no artigo “Fazendo Lugar em Trânsito, Reflexão sobre a migração africana e trabalho de campo no Darién, Panamá”, da investigadora holandesa Nanneke Winters.

Passar o Darién é sobreviver, e aqui a morte surge de várias formas: picaduras de animais, doenças, quedas, fome, desidratação, violações, balas de grupos armados. Entre os migrantes, as histórias correm de boca-em-boca. São os fantasmas do Darién. “Falaram-me de pessoas que passavam a noite junto ao rio. De repente, começou a chover muito, a água subiu e uma enxurrada levou-os enquanto dormiam”, relata-nos Ana. “Também há gente que escorrega ao subir as montanhas, bate com a cabeça nas pedras e fica ali mesmo”, continua esta angolana de Maquela do Zombo. Na lista de tragédias, há uma que dói mais a João. “Às vezes os grupos têm de deixar para trás quem não tem força para aguentar”. E o que lhes acontece? “É provável que não resistam”, admite.

Uns quantos têm um destino mais digno, alivia Nanneke na sua investigação de campo. A 2 de Novembro, o Dia de Mortos na América Latina, alguns habitantes da aldeia panamiana de Santa Fé, perto de Metetí, rezam à volta de um pneu no cemitério local. Esse ponto marca o lugar onde há uns anos foram enterrados cinco ganeses que se afogaram num rio ali perto. No centro dessa roda, a comunidade plantou um arbusto supostamente nativo do Gana, num gesto simbólico para cravar as raízes da terra destes africanos nas tumbas rasas onde acabaram a viagem.

“Inferno” é a palavra que Ana usa para descrever a semana que passou no Darién. Já no México, muito longe desta selva, a angolana baixa os olhos e faz-nos um gesto com a cabeça, apontando para a filha de oito anos que brinca ali ao lado. “Quando alguém lhe fala na floresta ela entra em pânico e começa a gritar.” Cabisbaixa, admite: “Se soubesse que íamos passar por tudo isto, não tinha saído de Angola.”

A tempestade perfeita: a incrível história de Luzia

Na confusão da Estação Migratória Século XXI em Tapachula, no sul do México, Ana e João não entram em detalhes sobre o caminho do Darién. São fantasmas passados, há que deixá-los em paz. Para estes angolanos ainda há muito caminho para andar.

Mas Luzia Banzuzi já está em Austin, no Texas. É sexta-feira à noite, já tarde. Com voz suave e modulada de uma boa contadora de histórias, regressa então à praia no Panamá onde a deixámos às mãos de traficantes de migrantes. Espera debaixo da chuva, escondida entre bananeiras, na entrada da selva do Darién. Prepara-se uma tempestade perfeita. Neste guião, as imagens são do jornalista da BBC Mundo, Alejandro Millán Valencia, captadas nas doze horas em que percorreu a pé um troço da selva e que plasmou em “O inferno de percorrer o Tampão do Darién”. Na primeira pessoa, a voz é de Luzia: 

“Estávamos parados na praia depois de cruzar o mar. Havia três guias, tinham armas grandes e catanas. Não paravam de nos gritar. Começámos a andar no meio do mato e num momento chegámos a um rio. Disseram-nos que ali era onde tínhamos de tomar banho e de onde íamos tirar água para beber.

E o que é que comiam?

Na Colômbia comprámos lata de muamba. Mastigávamos devagarinho para não acabar rápido. Era muito esforço. À noite dormíamos no chão, muitas vezes debaixo da chuva. A roupa secava no corpo só quando o sol saía de manhã. Fazia muito calor e chovia sem parar, às vezes de manhã até à noite. Eu não sei, pai… eu só vi mesmo algo parecido no filme dos comandos.”

A paisagem deixa-nos tontos: as árvores centenárias parecem arranha-céus e ficamos debaixo de uma penugem de folhas e ramos que quase não deixam passar os raios do sol, apesar de não nos protegerem da intensidade do calor. Aqui ganha sentido o que nos disseram, que uma pessoa não cruza o Darién, aqui batemos de cara contra a selva.

“Certa vez, tivemos de passar uma montanha muito grande. Demorámos todo o dia a subir e a descer. Escorregávamos na lama, fiquei com a roupa toda rasgada, eu nem sei… A moça angolana com quem viajava tinha uma mochila muito pesada e não estava a conseguir subir. Um dos guias disse-lhe que a ajudava a carregá-la, porque pensava que tinha dinheiro lá dentro. Ficou para trás, sacudiu, mas não encontrou nada e abandonou a pasta num pau. 

Todo o dia caminhei devagar, éramos três grávidas e não podíamos acompanhar o passo do grupo. Só quando cheguei ao lugar onde estavam todos à nossa espera, já depois da montanha, a minha amiga perguntou-me pela mochila e eu disse-lhe: ‘O moço deixou-a bem longe!’. Ela ficou em pânico – ‘Ai meu Deus!’ Ela tinha aí os passaportes, cédulas, certidões, todos os documentos. Quando ouviram isto, os guias e o grupo começaram a caminhar e foram-se embora, abandonaram-nos mesmo ali no meio da floresta. Ficámos só eu, essa moça, a irmã dela com os três filhos e um rapaz que ficou com pena e queria-nos ajudar. Passámos ali a noite. Na manhã seguinte saíram pela pasta, eu esperei por eles. Demoraram todo o dia a ir e voltar. Estávamos sozinhos no meio da floresta. Não sabíamos para onde ir.”

A selva é um inferno de humidade e calor onde quase não se divisa o céu. Não se vê por onde sai o sol nem onde se esconde, é impossível distinguir o norte do sul sem bússola ou GPS. Se ninguém nos indicar o caminho, podemos passar dias a caminhar em círculos como um cão que persegue a própria cauda.

Perdidos

“Caminhámos à toa, estávamos bem perdidos. Demos com um rio e começámos a segui-lo. Quando víamos pegadas, também tentávamos ir por esses caminhos. Estivemos assim 11 dias, voltas e mais voltas. Até que apareceram quatro jovens que eram mesmo dali. Vinham com catanas e pistolas grandes na mão e perguntaram: ‘Estão a ir aonde?’ Dissemos-lhes que estávamos perdidos e pediram-nos 500 dólares por pessoa para nos mostrarem a direcção. Eu não sabia o que dizer, porque já não tinha dinheiro. Mas o moço que nos acompanhava e a irmã da minha amiga disseram que sim, e começaram a caminhar com esses guias e as crianças. 

Eu e a minha amiga estávamos com os pés em ferida e ficámos para trás. Num lugar com quatro caminhos despistaram-nos. Como não sabíamos onde ir, decidimos voltar para trás, à espera que nos viessem buscar. Lá mais à frente, os jovens pediram aos meus amigos o pagamento. Quando eles lhes disseram que o dinheiro estava na mochila que estava atrás comigo e com a minha amiga, começaram a lhes bater bem feio. Ao moço deram com a catana, foi muito mau. Só não bateram nas crianças. E voltaram para vir nos encontrar.”

A selva ferve no rosto.

“Estávamos sentadas à beira do rio quando, de repente, vimos esses quatro bandidos a entrar na água e a saltar fora, pareciam peixes. Amarraram roupa na cabeça, como ninjas, esconderam as caras, só se viam os olhos, e passaram à nossa frente com as catanas nas mãos. ‘Dá-me o dinheiro! Dá-me o dinheiro!’ Eu disse que não tinha e eles insistiam que sim. 

Eles tinham ouvido que os africanos trançavam o dinheiro para escondê-lo e cortaram-nos metade do cabelo. Como não encontraram nada, começaram a gritar para tirarmos a roupa e diziam-nos: ‘Se não nos dão o dinheiro vamos violá-las.’ Começámos a chorar. Pegaram no meu casaco e tiraram os 280 dólares que eu tinha. Revistaram a minha amiga e só encontraram 100 dólares. Ficaram frustrados e arrancaram-lhe as calças para abusar dela, até que ela disse: ‘Está bem, eu dou o dinheiro!’ Afinal, trazia as notas cosidas na cintura das calças. Foram 1.400 dólares, tudo o que tinha.

A minha amiga começou a gritar: “Ai meu Deus, ai meu Deus!’ Eu tenho problemas de tensão e nesse momento caí e perdi a consciência. Quando acordei, a minha amiga me olhou e disse: ‘Mana, vou ter que te abandonar, porque a partir de agora é a vida de cada um que está a contar. Você não está a poder caminhar, vou ter que te deixar e onde encontrar pessoas vou pedir para te vir ajudar’. Eu gritava ‘Não me deixa!” Ela começou a chorar e a dizer ‘Me perdoa!’ E foi embora. Tentei ganhar coragem para continuar a caminhar, mas não tinha forças. Ao cair, torci um pé e fiquei aí mesmo. Não me podia mexer. Tirei uma bota… tentei tirar a outra, mas a areia e lama estavam duras e tinham colado o meu pé, não me consegui descalçar. Chorei muito. Veio a noite e fiquei sozinha na beira do rio.”

O pescador

A selva na escuridão é um lugar tenebroso. Como uma máscara que não te deixa respirar.

 “Ao todo, foram cinco dias ali abandonada. A chuva caía sem parar em cima de mim. Tinha um vestido de grávida e tentava não me molhar, cobria-me com uma jaqueta de lona preta que tinha comprado para proteger o passaporte.

Já não tinha comida. Como não podia caminhar, gatinhava até à beira do rio e baixava a cara na água para poder beber. Dormia ali mesmo, sentada nessa areia. Havia animais que eu nunca tinha visto nem sei mesmo os nomes. As moscas eram muitas. Durante dois dias eu gritava de dores, mas não havia ninguém. Aí eu só esperava chegar a minha hora para morrer.

Ao terceiro dia, passou um grupo, eram indianos. Eu estava ali sozinha, só com metade do cabelo e toda molhada, parecia um monstro. Quando se aproximaram começaram a correr. E eu disse: ‘Não fujam, sou pessoa!’. Eu estava numa linha de passagem, mas não me vieram socorrer. Eu gritava: “Ajuda, por favor, vou morrer aqui!” Mas foram-se embora. Vi-os a desaparecer na mata.”

Estampamo-nos contra as dezenas de arbustos forrados de espinhos que nos arranham os braços e as mãos. Contra os cadáveres intransponíveis das árvores que caem e ficam deitadas no chão à espera que a natureza as degluta e que nos obrigam a mudar de rumo a cada dois passos. Contra os ramos que se sacodem com os passos e que são uma chicotada seca e dolorosa para quem vem atrás.

“Entretanto, a minha amiga já estava longe dali, também estava a caminhar sozinha até que encontrou um pescador, um mais-velho que a ajudou a encontrar o campo da polícia do Panamá [quartel de Metetí]. Contou-lhe que me tinha deixado no caminho há quatro dias, e que eu era irmã dela. O senhor prometeu-lhe que me ia procurar.

Era uma quinta-feira, já quase noite, quando ouvi uns assobios. Comecei a gritar ‘Ajuda! Ajuda!’ e vi o mais-velho ao longe. Gatinhei e consegui levantar a mão. Ele gritou “Já te vi!”. Quando chegou à minha beira e me viu naquele estado, chorou e começou a rezar. Pegou na catana, cortou a bota que estava colada e pude tirar o pé que já era uma ferida grande. Deu-me um pouco de arroz e disse-me: ‘Você não pode andar e a minha casa é distante, não te posso levar, porque não tenho força. Hoje é quinta-feira, no sábado venho-te tirar daqui.

Comecei a chorar mas finalmente já tinha esperança. No dia seguinte de manhã, vieram outra vez os bandidos que me tinham roubado. Passaram ao meu lado e começaram-se a rir. Puseram outra vez essa roupa de ninja e esconderam-se na mata. Estavam a ver quem vinha.

Uns minutos depois, comecei a ouvir vozes. Era um grupo de cubanos e camaroneses. Quando me viram, quiseram-me ajudar. Fizeram uma vaquinha entre todos, deram-me 125 dólares. Aí os tais bandidos apareceram e disseram que os iam levar no caminho. Nessa noite, acenderam lenha e ficaram comigo. Eu não lhes podia dizer que esses jovens eram os que me tinham feito mal, tinha medo que voltassem e me matassem. De manhã foram todos embora. Deram aos bandidos cem dólares para virem por mim mais tarde. Mas nunca vieram.”

Arelis Sarret, cubanos no caminho da selvaArelis Sarret, cubanos no caminho da selva

A casa da floresta

“Chegou sábado, o dia em que o pescador tinha dito que me vinha buscar. Passou todo o dia, e nada. Comecei a perder a fé. Mas quando estava a escurecer, chegou com mais quatro jovens. Cortaram um pau grande, armaram um tipo de maca e puseram-me lá em cima. Caminharam muito no meio daquela água comigo aos ombros”.

O caminho está totalmente alagado, convertido numa superfície de lodo que engole os pés até aos tornozelos. Em algumas partes, até aos joelhos.

“Quando já era noite, atravessámos o rio e vimos já um cavalo que o senhor tinha trazido. Subiu-me e começou a puxar o animal até à casa dele que fica lá no meio da floresta. Disse-me: ‘Eu não te posso deixar ficar na minha casa, porque é proibido. Mas se te deixo aqui na floresta é pecado. Ficas esta noite na minha casa, mas não podes contar a ninguém’. Fez-me café e dormi. Na manhã seguinte, ele acordou muito cedo e foi cortar banana para comermos.

Quando acordei, apareceram outra vez os tais bandidos, afinal eram família do mais-velho! Estava um sobrinho do pai comigo e pediu-lhes que não me fizessem mal, que eu estava doente e grávida, mas mesmo assim revistaram-me. Eu tinha escondido o dinheiro debaixo do colchão e eles não encontraram nada. Quando viram que o pescador estava a vir, fugiram.

Andámos todo esse dia a cavalo até começar a ver as casas de madeira de Metetí, que é onde estão os militares depois da floresta. Afinal, todo o grupo que saiu comigo da praia e aquela minha amiga angolana estavam lá. Quando a polícia viu o mais-velho a atravessar o rio comigo, abraçaram-no, disseram-lhe que tinha salvo a minha vida. Meteram-me num barco mais pequeno durante duas horas até um campo onde uma ambulância estava à espera e me levou directo para o hospital.”

Atrás, coberto pela bruma de uma chuva miudinha, a espessura do Darién vai-se diluindo no horizonte. Um gigante carregado de pesadelos, como se fosse uma invenção da imaginação.

A morte aqui deve ser densa.

Fim de guião. Aqui termina o relato de Luzia. Depois de meses de muitas tentativas para continuar a entrevista, a angolana não terminou a história da viagem que a levou até aos Estados Unidos. Também não partilhou fotos. “Não é que não queira, mas a minha vida aqui nos Estados Unidos é dura. Esta história obriga-me a recordar, a procurar um lugar com silêncio e falar por várias horas. E ando numa agitação grande, não tenho tempo”, disse-nos.

Reencontraremos Luzia mais adiante, já no México, por quem a conheceu. Por enquanto, deixemo-la assim, na saída da selva do Darién. Aliviados por saber que está bem e que sobreviveu à tempestade perfeita.

Cruzar o Panamá: doença, espera e alívio

As histórias de quem sobreviveu ao Tampão do Darién começam a cruzar-se já depois da floresta. Chegam aos milhares ao Panamá, 3.700 entre Janeiro e Agosto do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Fronteiras deste país, citado pela BBC. O número seguramente peca por defeito.

Em Março de 2019, os angolanos Ana e João conheceram-se ao sair da selva em Bajo Chiquito, uma comunidade indígena com meia dúzia de agentes do Serviço Nacional de Fronteiras panamiano (Senafront). Na altura, a aldeia era o primeiro ponto de reunião oficial dos migrantes depois de cruzar a floresta. “As condições eram péssimas, davam-nos só um pouco de arroz e feijão, havia muitas crianças com diarreia e sem tratamento, porque não havia medicamentos”, conta-nos Ana.

Entretanto, o povoado de casas de chapa e pau-a-pique deixou de funcionar como campo de migrantes. A umas quatro horas dali, Rio Chucunaque abaixo, está La Peñita, aldeia dengosa sob um céu leitoso, abafada na humidade que se evapora da selva escura que a envolve. Aqui está o único albergue que a Senafront opera agora na região, a chamada Estação Temporal de Assistência Humanitária (ETAH). Os viajantes chegam ali em pirogas ou a pé. Ana e João foram pelo caminho rápido, desceram o rio em canoas, 25 dólares cada um. Desembarcaram em La Peñita depois de uma semana em Bajo Chiquito. 

Raúl Araúz, Barracão para acolher migrantes em La PeñitaRaúl Araúz, Barracão para acolher migrantes em La Peñita

O centro de acolhimento de migrantes é um “hangar de zinco onde antes se armazenavam produtos agrícolas, um inferno de calor”, descreve-nos a investigadora Nanneke Winters em entrevista. As imagens que nos chegam da ETAH mostram roupa estendida em cercas de metal e casas-de-banho portáteis azuis visivelmente sujas. A imagem induz um fedor quente. Com capacidade para pouco mais de 100 pessoas, a estrutura está para lá do ponto de ruptura. Segundo as últimas estatísticas da UNICEF, em Julho do ano passado amontoavam-se em La Peñita 1.186 migrantes. Raúl Araúz, director de Fé e Alegria, organização panamiana ligada ao Serviço Jesuíta de Migrantes, confirma-nos uma média permanente de 1.100 a 1.500.

Os migrantes que não cabem na ETAH muitas vezes acabam por “alugar quartos” aos habitantes desta aldeia indígena “de três ruas”, conta-nos o activista. Com a chegada dos forasteiros, “grande parte da população local abandonou as suas casas para ganhar algum dinheiro extra”. Mas não há tecto para todos. “Por toda a aldeia vêem-se famílias de migrantes a viver debaixo das árvores. São crianças, pessoas velhas, mulheres com os seus maridos. Dormem no chão, fazem as necessidades onde calha e usam o rio para tomar banho e lavar a roupa”. Nos últimos anos, houve notícias de afogamentos. “O cenário é terrível, nem quando estive nos campos de refugiados hondurenhos e salvadorenhos, durante as guerras civis nesses países, vi situações tão desumanas”, garante Raúl Araúz.

A insalubridade do lugar é um golpe mais na saúde frágil dos migrantes acabados de sair da floresta do Darién, lamenta. “Chegam muitas pessoas em mau estado, com problemas de picaduras, fungos, desidratação, problemas gastro-intestinais causados pela péssima qualidade de água da selva. Aparecem mulheres grávidas ou bebés que nasceram na floresta. Estão debilitados, e em La Peñita, que devia ser o porto de abrigo, encontram uma situação altamente precária”.

O único paramédico que atende na ETAH de La Peñita, segundo a UNICEF, é um insuficiente pau-para-toda-a-obra. Quando aqui chegam, os migrantes são vacinados contra o tétano, sarampo e rubéola. Também são registados. A Senafront tira-lhes impressões digitais para rastear possíveis criminosos buscados pela Interpol. É então que começa um inesperado jogo de cadeira de nacionalidades. “Muitos haitianos tentam fazer-se passar por africanos, aproveitam que têm a mesma cor de pele e falam francês ou português que aprenderam no Brasil”, relata o director de Fé e Alegria. O motivo é simples: “Eles sabem que se forem confundidos com angolanos ou congoleses, a quem chamamos de ‘migrantes extracontinentais’, vão ter uma autorização especial para cruzar o Panamá e não vão ser deportados.” Como testemunhou o NJ em Tapachula, esta estratégia dos migrantes do Haiti repete-se nos restantes países de passagem, sobretudo no México.

No documento “Aumento do Fluxo Migratório no Panamá”, a UNICEF estima que no primeiro semestre do ano passado chegaram à fronteira sul do Panamá, vindos da selva do Darién, 13.637 pessoas, entre as quais 2.139 crianças. Metade era africana. É um aumento significativo, quando comparado com as 9.222 migrantes de todo o ano de 2018. Entretanto, o governo panamiano anunciou a construção de uma nova ETAH na comunidade vizinha de Lajas Blancas, orçada em 8 milhões de dólares. A Senafront não respondeu aos contactos do NJ.

A caminho da Costa Rica

Sair da “fossa céptica” de La Peñita, como descreve Raul Araúz, é um respiro. Os angolanos Ana e João deixaram a comunidade em princípios de Abril de 2019, cerca de duas semanas depois de ali chegar. Rumaram a norte, para a fronteira do Panamá com a Costa Rica.

A rota é directa. De La Peñita, a Senafront transfere os migrantes em autocarros próprios para o albergue de Planes de Guacala, a mais de 800 km da floresta do Darién. O campo ocupa as “antigas instalações de uma hidroelétrica”, situa-nos Rigoberto Pitti, sociólogo da Comissão Nacional Justiça e Paz, instituição católica que trabalha com os migrantes na região. Em conversa com o NJ, comenta que “o clima ali é muito agradável” e que “depois de passar pelo Darién, há quem diga que este é um hotel de cinco estrelas.”

Nesse “hotel de luxo” relativo, os viajantes aguardam alguns dias pela autorização da Costa Rica para ingressar no país. Nas contas de Rigoberto Pitti, “estão a cruzar diariamente entre 100 e 200 pessoas”. No momento da entrevista, no final do ano passado, havia mais de 850 indivíduos à espera, entre angolanos, camaroneses, asiáticos, venezuelanos, cubanos e haitianos.

A passagem da linha da fronteira ocorre sempre de madrugada. De Planes de Guacala, os migrantes viajam cerca de duas horas até ao posto fronteiriço de Paso Canoas, onde se juntam em grupos de 10 a 20 pessoas. Quando a Costa Rica dá luz verde, “passam então a fronteira a pé com o salvo-conduto que as autoridades panamianas lhes deram em La Peñita”, explica o sociólogo. Do outro lado espera-os a “migra” costarricense.

Nanneke Winters, Fronteira de Paso Canoas (norte do Panamá)Nanneke Winters, Fronteira de Paso Canoas (norte do Panamá)

Esta movimentação de migrantes entre o Panamá e a Costa Rica tem o nome oficial de “fluxo controlado”, explica Rigoberto Pitti. É basicamente um traslado em cadeia: “Quando a Costa Rica liberta espaço no albergue que tem na fronteira com Paso Canoas, autoriza a entrada de migrantes que esperam do lado panamiano. Por sua vez, esse espaço que fica livre no norte do Panamá é então preenchido por pessoas que estão à espera em La Peñita, no sul do país.”

De campo em campo em direcção sul – norte, os migrantes cruzam o Panamá “num silêncio absoluto, sem que ninguém se dê conta”, assevera Raúl Araúz. “Dizem que é migração controlada para protegê-los dos traficantes, mas na verdade esta é migração sitiada”. O director de Fé e Alegria é crítico. “As autoridades panamianas esforçam-se por esconder do mundo o que se passa com os migrantes que chegam ao país, as condições em que os têm lá no sul, por isso não lhes dão qualquer liberdade de movimento”. Como exemplo, diz que “a Senafront vigia todos os passos de quem visita La Peñita ao ponto de proibir tirar fotografias”. As que partilhou com o NJ tirou-as à socapa. 

A reportagem foi originalmente publicada no Novo Jornal (Angola), a 7 de fevereiro de 2020.

Ler primeira parte Os invisíveis: migração de angolanos para os Estados Unidos

Ler segunda parte Angolanos ilegais a caminho dos Estados Unidos - os afogados

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 26 Fevereiro 2020 | angolanos, EUA, migração