Rodrigo é despojado dos seus uniformes

Parece que foi há bem mais de um ano que eu e o Rodrigo nos conhecemos, durante a nossa primeira exposição (de sempre e colectiva), uma das muitas iniciativas da DJASS Arte no Mercado de Culturas, em Arroios. Rodrigo apresentava então a sua série “Pele Ontológica”, baseada no conceito homónimo de Achille Mbembe. Era tempo de furacões.

Peço que partilhe comigo fotos da sua vida, que me conte as histórias das peles, cabelos e corpos negros que a sua obra afirma, reafirma, explora e consagra. A viagem é tão curiosa para mim quanto para ele. A primeira foto, na qual segura um objecto para mim indistinto, exemplifica claramente o poder da manifestação pela visão: um menino segura um barco, encosta-o ao ouvido como se fosse um búzio e, depois, quando cresce, decide atravessar o oceano, escrever uma tese sobre piratas, tatuar um barco no corpo. Lembro a letra da Sereia Louca, de Capicua: eu tenho um búzio que me diz coisas estranhas ao ouvido / eu tenho um coração de esponja que cresce com a tristeza

“Por parte da minha mãe, não se fala de negritude. São racistas. Não sabem, não falam, não procuram, não entendem da sua descendência, rejeitam a africanidade. Somos de uma cidade muito pequena no interior e, quando um historiador desenvolveu um trabalho de mapeamento genealógico, a minha família foi a única excluída. Perguntei, retoricamente, porquê à minha mãe, cujo sobrenome foi, provavelmente, herdado de donos dos escravos de que descende. O despertar não acontece. Elas não se reconhecem e sentem-se, muitas vezes, ofendidas por serem chamadas de negras. Isso acontece com a maior parte das pessoas no Brasil, que são pardas e mestiças como eu. A minha mãe saiu branca, mas a família é negra. O cabelo dela é liso. Todas as mulheres na minha família usam o cabelo liso. E os homens usam tudo raspado. Só um tio meu é que desafiava essa regra.”

Ao espelho temos um quadro digital, um corpo negro que se sustenta, e ao espelho, quem sabe também à parede em que este foi colocado. Sustenta ou empurra? A figura receia a queda do espelho ou a possibilidade de ser engolida por ele? A figura quer conhecer-se ou receia fazê-lo? Resistência e tensão palpáveis. Mais um paralelismo com uma versão adulta mas que resume bem os anos de opressão capilar: Rodrigo ao espelho, máquina de cortar cabelo em riste, domando e inibindo, uma vez mais, o cabelo que não se permite conhecer. Ao ver o seu portfólio, encontro uma figura feminina de costas voltadas para um espelho. Encontro, ainda, uma outra mulher que atravessa a estrada com um ramo de flores e uma mala nas mãos. Podia ser eu, digo-lhe. Qualquer uma delas. Os estudos estão feitos mas os quadros ainda em construção. Como eu. Como ele. Há algum tempo, quando o encontrei certa noite, comentei como estava mais magro. Ao ver uma foto do aniversário de um primo, confessa que sofreu bullying na infância por ser mais pesado e que isso o acompanha até hoje, pois continua a achar que é gordo.

“Vai ser um drama quando eu voltar. Já sabem que o meu cabelo cresceu mas ainda não se manifestaram. Vão aceitar, isso vão, mas não reconhecendo realmente. O homem tem esse privilégio. Se fosse uma mulher, seria mais criticada. A filha de uma amiga minha tentou passar por esse processo de deixar o cabelo natural, sem alisar, mas não conseguiu, e muitas pessoas não conseguem sem acompanhamento psicológico. No Brasil, tenho esse privilégio em relação a quem tem uma pele mais escura. Os mestiços não têm lugar: são muito escuros para serem brancos e muito claros para serem pretos. O brasileiro em Portugal é uma categoria racializada, e senti esse preconceito não só por ser descendente africano, mas por ser brasileiro. Foi através do racismo que eu entendi primeiro que era brasileiro. No Brasil eu vivia alienado, mas aqui tive um choque cultural. A questão de ser brasileiro trouxe as outras.”

Até a recusa a um confronto não deixa de ser uma forma de invisibilização. Rodrigo prossegue: “Para quê enfrentá-los agora? Sinto-me muito abandonado, porque eles deixaram de ter vontade de querer saber quem eu sou. Eles vão aceitar, mas não sinto necessidade de ser tão claro em relação a isso. Isso teria repercussões para a minha mãe, que sofreria, já sofre com os olhares e críticas da comunidade. Porque o meu irmão também é. Eu me mostro. No outro dia, eu estava de olho pintados. Não me escondo como o meu irmão. Não falamos sobre o assunto que temos em comum. Como com as minhas tias. Nunca é sobre mim e sim sobre elas, diante dos outros e dos seus valores. A minha mãe falava que o nosso cabelo era ruim e eu achava que era ruim mesmo. Um cabelo que não devia crescer, não devia ser livre. Isso começou a incomodar-me. Amigos perguntavam porque é que umas partes do meu corpo eram mais escuras que outras. Num encontro amoroso, o rapaz perguntou porque é que eu não era uniforme, porque é que diferentes partes de mim tinham tons distintos. E eu fiquei com aquilo. Não falei nada. Não sei se brinquei… Em Portugal descobri que sou brasileiro, foi aqui que despertei. Agora, pardo é uma anulação de alguma coisa, não te permite participar de nenhuma identidade. Mas nos EUA e em África também se sofre isso, é uma questão de afirmação também política. Eu não podia dizer que era negro. Cheguei a ter medo de apanhar sol, de ficar mais escuro, que aparecessem manchas. Essa é a questão das pessoas mestiças. Elas são transitáveis, de uma cor para outra. Quando eu me mudei para cá deixei de tomar sol e aí a minha melanina reduziu. Estou mais esbranquiçado actualmente… Os casamentos todos da família da minha mãe são brancos, isso em si já é um sintoma. As pessoas brancas privilegiadas têm identidades preparadas. Eu tive muitos amigos de todas as cores, mas tendencialmente eram maioritariamente negros. Na escola havia mais pessoas retintas, negras. Sofria muito bullying por ser gay. A cor ficava oculta. O cabelo grande ativa um marcador imediato, da parte de amigos, conhecidos, gente do trabalho. O processo do cabelo ajuda muito a afirmar a identidade. Depois disso comecei a aceitar-me melhor. Durante muito tempo rejeitei o meu cabelo e a mim mesmo. Porque ter cabelo grande era algo que não me passava pela cabeça. Era socialmente proibido… Não sabia quem era aquela pessoa, ficava com vergonha de me mostrar. Achava bonito nos outros. Tinha um sentido auto-crítico muito forte. Aos artistas hoje é cobrada responsabilidade. Entendo as drags não como uma crítica às mulheres mas uma posição contra a masculinidade. Colocar aquele corpo masculino numa condição que afronta. Mas quando algumas mulheres se sentem ofendidas… É uma armadilha. Existe uma forma que caracteriza o ser feminino. Se eu coloco um brinco e sou criticado por isso e altero o meu comportamento, então aceito que existem coisas de mulher e aí continuamos na segregação.”

Pergunto-lhe o que mais o preocupa no mundo. “O Bolsonaro. Agora é o que me preocupa mais. O ministro da cultura disse que os peixes fogem do derrame de petróleo porque são inteligentes e que esses peixes são seguros para consumo. E disse isso ao lado do Bolsonaro. Então, por mais que eu pense no Chile e em Hong Kong, não consigo ultrapassar o Brasil. O Trump é igual ao Bolsonaro, apenas fala inglês. Toda a minha família votou no Bolsonaro, quer do lado do meu pai, quer do lado da minha mãe. Não me surpreendeu. Somos do interior, de uma cidade muito pequena. Tudo o que tenha a ver com comunismo ou partido dos trabalhadores fica no imaginário. A minha mãe é evangélica e bem devota e me surpreendeu que não tivesse votado nele. Nem ela nem um tio e tia meus. O meu pai é a favor da ditadura militar, dá para acreditar? A gente não fala disso.”

Se voltamos à infância, ele ensina-me sobre a “Recordação Escolar”. Um Rodrigo de cara fechada, séria, em tempo de Ditadura. Rimos sobre a sua “cara de satisfeito”. É então que repara: “Alguém desenhou uma suástica no meu uniforme! Meu Deus! Não faço ideia de como isso foi ali parar, mas é simbólico, porque era um regime de ditadura naquela época.” Pergunto se se recorda do ano. “Eu devia estar na quarta série, devia ter uns nove anos… talvez em 1984. Mas essas fotos escolares ainda são feitas no Brasil. Sempre o mesmo cenário, a bandeira do Brasil ao fundo. É bem bizarro. Mas eu me lembro que na minha escola, tínhamos aula de marcha com um polícia militar para aprendermos a desfilar no dia da independência nacional. Era obrigatório.”

A conversa com Rodrigo recorda-me o meu quadro preferido de El Greco, Jesus é despojado das suas vestes. Ou, quem sabe, a evolução deste quadro. Afinal, ele é o guardião da memória familiar, aquele que preserva as fotografias de todos, por todos. Por três vezes a família passou por situações de perda e viu as suas casas submersas devido a cheias. Penso ainda no comediante D.L. Hughley, autor de How not to get shot and other advice from white people, quando declarou que O lugar mais perigoso para uma pessoa negra é a imaginação de uma pessoa branca. Há doze anos em Portugal, Rodrigo é investigador, sociólogo digital e artista visual, tendo desempenhado inúmeras outras profissões ao longo da vida. O seu trabalho pode ser conhecido em https://rodrigoribeirosaturnino.net/. Agradeço-lhe por ousar imaginar-se e, assim, mostrar a outros e a outras, como ele, que também são reais.

por Gisela Casimiro
Corpo | 10 Dezembro 2019 | Brasil, cabelo, privilégio negro, Raça