Rede Cidade

Os mapas também o são

Diz-se que a história é escrita por vencedores; os mapas também o são.  Propõem uma linguagem, um discurso, uma ideologia. Dizem o que existe e o que não existe e circunscrevem o possível, estabelecem o governável. Na sofisticação das suas linhas não há espaço para perguntas. As suas omissões são nossas, delas dependem vidas, territórios, decisões. Como é que um instrumento resgata ou rasura uma comunidade? Não podia ser de outra forma? O que se dá no acesso à interrogação? O que fazemos com respostas que questionam mais do que respondem? Que desenham novos mapas e desdobram territórios outros, múltiplos, nem lineares nem planos? É que relação e mapa são sinónimos.

Nesta apresentação, António Brito Guterres parte do território e da experiência vivida nos bairros para interrogar os mapas da cidade institucional. O desafio futuro passaria por equacionar formas possíveis de os reescrever com o conhecimento coletivo de uma comunidade.

Sala Manuela Porto Teatro do Bairro Alto 22 Janeiro - sábado 16h

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O artigo que se segue foi retirado da Revista “Este corpo que me ocupa” (Buala, 2014).

Rede Cidade

Por vezes o corpo encontra-se imóvel e ainda assim movimenta-se pela cidade. À margem das ficções e do imaginário, o informacionalismo e o seu campo de possibilidades virtuais deram nova dimensão ao espaço urbano e ao seu consumo. Novas subjetividades somam-se às de outrora (Baudelaire, Simmel e Benjamin), assim como novas representações do espaço público e alterações nas geografias quotidianas. A euforia pela Second Life esbateu-se uma vez que essa segunda vida somos nós - os nossos avatares.

No generalizado acesso e uso das novas tecnologias, pretendemos averiguar como a sociabilidade online conduz a um novo entendimento do espaço urbano e configura novas geografias e padrões participativos no processo de construção da cidade.

Um novo entendimento de cidade 

A cidade pós-fordista e global é estudada por vários investigadores, intelectuais e ensaístas. Não é fácil de fixar a conceção desta nova cidade à luz de uma disciplina. Sociologia, antropologia, história, economia, geografia e outras áreas encontram no seu objeto de estudo razões para analisar os fenómenos urbanos: espaço, relações sociais, desenvolvimento, património, exclusão, pobreza, informacionalismo, fluxos, segmentação, etc. World City (Friedman, 2001), Cidade Global (Sassen, 2001), Mega Cidade (Perlman e Castells, 2002), as abordagens a esta nova cidade dificilmente são fixadas. As velozes transformações urbanas de uma sociedade global interconectada, criando ao minuto informações e fluxos sem precedentes, dificultam a interpretação em tempo real dos novos fenómenos, embora produza registos ao mesmo ritmo. No entanto, talvez nunca como agora os estudos urbanos. Dois estudos o confirmam:

Pela primeira vez a população urbana do mais populoso país do mundo, a China ultrapassou os 50 por cento (Wall Street Journal Ásia, Janeiro de 2012); um sétimo da população mundial vive nas duzentas maiores áreas metropolitanas, concentrando metade do PIB mundial (Brookings Institute, 2012). Esta concentração urbana (e também económica) não tem precedentes na história da humanidade, e a ela deve corresponder o esforço para a sua compreensão.

O fenómeno de urbanização mundial é contemporâneo e advém de um processo de globalização assente no desenvolvimento tecnológico: a nova era digital baseada em redes e fluxos de informação.

As inovações tecnológicas – por ordem cronológica e de apropriação: Internet, comunicação móvel e conexão wireless – estão disponíveis e acessíveis a todos os atores da nova urbanização, das multinacionais aos manifestantes “anti-globalização”; dos governos às organizações não-governamentais ou de base popular; dos idosos às crianças; do milionário a quem recebe apoios sociais, de Wall Street à Praça Tahrir, todos participam no processo. O atual indivíduo urbano intervém num espaço físico mas também num espaço virtual.

Assim, avançamos a hipótese da alteração das condições da mobilidade do novo homem metropolitano proposto por Simmel, em que o “longínquo está perto”. A mobilidade deixou de ser exclusivamente mecânica mas também informacional.

O processo

A sociabilidade online traz novos entendimentos ao espaço urbano, no contexto da globalização nas sociedades contemporâneas. A génese da globalização tem pressupostos económicos e políticos. Em primeiro lugar deve-se às crises energéticas dos anos 70 do século XX, que obrigaram a uma reestruturação das empresas e dos mercados, através de tecnologias de informação e de comunicação que facilitaram a sua implementação em novos mercados. No início dos anos 80, a eleição de Reagan nos Estados Unidos e de Thatcher no Reino Unido, conduziu a políticas de liberalização e de desregulação dos mercados.

Como resposta a estas alterações, no intuito de baixar os custos de produção, aumentar a competitividade e o lucro: flexibilização dos mercados de trabalho, deslocação parcial de produção das empresas, investimento na formação profissional e nas infraestruturas tecnológicas e de comunicação. Como resultado destas reestruturações setoriais, empresariais e territoriais, aumentou-se o investimento privado, promoveu-se o mercado de capitais internacionais e acentuou-se a cooperação entre as empresas.

Abriu-se caminho para uma nova economia, definida por Castells (2002) como informacional, dependente da capacidade de gerar, processar e aplicar a economia baseada no conhecimento. Esta economia é global, obrigando à organização do consumo, produção e seus componentes a uma escala global; e em rede, já que as suas atividades se desenvolvem numa rede global de interações.

De forma globalizada, através dos fluxos de informação e reduzindo as distâncias, várias regiões do mundo estão conectadas e cotestemunham em tempo real das suas múltiplas ações.

Na nova economia global, as regiões metropolitanas têm concentrado grande parte da população e das atividades económicas, transformando-as nas regiões mais competitivas e importantes do mundo.

Castells e Himanen (2002) referem que, ao invés das previsões de desaparecimento das cidades, estamos presentemente a viver a maior vaga global de urbanização na história da humanidade. Em cada país, e à escala mundial, as regiões metropolitanas concentram a maior parte da inovação, capacidades culturais e de produção de riqueza. Essas regiões estão conectadas entre si por telecomunicações, internet e sistemas rápidos de transporte, criando uma arquitetura global de redes.

Nestas novas cidades globais (Sassen 2001) estão sediadas as maiores empresas e multinacionais e há um roteiro de ligação entre si que ultrapassa a soberania nacional e mesmo as ligações entre essas cidades e outras do mesmo território nacional.

À exceção da África subsariana, onde a urbanização não ultrapassa os 50 por cento da população total (com exceções), em todas as outras regiões, o número de assinaturas de serviço de telemóvel ultrapassa as cem subscrições por cada cem habitantes (Straw e Glennie, 2012).

Podemos assim dizer que há uma estreita ligação entre o fenómeno metropolitano mundial e a evolução tecnológica inerente à globalização. Mais uma vez, é difícil interpretar estes fenómenos, atendendo às suas constantes transformações.

A título de exemplo, e ainda referente às assinaturas de serviços de telemóvel, em 2005 nenhuma área do globo ultrapassava as cem assinaturas por cem habitantes (Straw e Glennie, 2012). Ou seja, em apenas seis anos houve uma alteração substancial na aquisição desse serviço.

A esses seis anos também corresponde uma evolução significativa das tecnologias wireless, estando a internet acessível a partir dessas assinaturas de telemóvel. A Cisco (2011) prevê que, em 2015, 788 milhões de utilizadores usem apenas o telemóvel para aceder à internet. Do mesmo modo, a conexão à internet por telemóvel tem um crescimento superior nos países menos desenvolvidos. Nos países desenvolvidos, a utilização do telemóvel para aceder à internet é superior nas classes economicamente desfavorecidas (Smith, 2010).

Os serviços móveis são um importante fator para a universalidade do acesso à internet. É possível que todos os cidadãos de uma área

metropolitana tenham acesso à internet em permanência. Este livre acesso, e a possibilidade de todos participarmos ativamente na produção e ressecção de informação é, por conseguinte, uma novidade.

Das condições tecnológicas

Já referimos algumas novidades das utilizações, apropriação e possibilidades de utilização das novas tecnologias, em especial através da associação de três instrumentos: a internet, o telemóvel e as ligações wireless.

O primeiro desses instrumentos a estar disponível foi a internet, que rapidamente teve impacto em especial nas cidades.

No final dos anos oitenta, inícios dos noventa, uma série de redes associadas a uni- versidades e com o apoio de municípios, constituíram as primeiras redes livres de acesso à internet. Algumas cidades americanas, Bolonha e Amesterdão exemplificam-no.

Em áreas menos desenvolvidas, criaram-se redes de bairro que promoviam um intercâmbio horizontal entre os diversos elementos da rede, sendo eles autoridades centrais ou associações de cidadãos. Essa prática promoveu o empowerment dos grupos locais, reativando o seu espaço na esfera pública:

Redes informáticas comunitárias começaam a diferenciar-se internamente segundo a ideologia dos seus membros originais: os ativistas sociais concentraram-se em fomentar a participação dos cidadãos numa tentativa de redefinir a democracia local e as agências de serviços sociais, (…) no que supôs uma nova expansão do chamado terceiro setor da economia.

Castells (2007, p. 176)

A verdade é que as organizações e as pessoas tendem a usar a tecnologia em propósitos bastante diferentes dos inicialmente planeados. Quanto mais interativa for a tecnologia, mais utilizações diárias. A capacidade de adaptação às novas tecnologias terá consequência nos futuros usos da mesma. Os hardwares e softwares das tecnologias wireless, em especial os laptops e os telemóveis, são cada vez mais interativos, proporcionando infinitos usos.

Braton (2009) faz uma analogia com a vida quotidiana para promover uma nova noção de espaço na vida metropolitana. Mais um dia preso no trânsito de Los Angeles não significa o mesmo de há uns anos: We do not always need to arrive, because we are already there.

Se a casa e o escritório são espaços importantes na vivência na cidade, atualizemos a noção de espaço em função do uso de smartphones permanentemente ligados à internet. Esse acessório é um garante da nossa ligação ao novo espaço na rede no qual obtemos informação atualizada sobre atividades culturais, fazemos compras, pagamentos, consultamos o correio eletrónico, etc.

Em 2010, vivi em Nova Iorque uma situação elucidativa do que relatamos. Conheci muitas pessoas que recorriam a uma aplicação do Metro de Nova Iorque nos telemóveis antes de utilizar o transporte, especialmente à noite. A rede de metropolitano de Nova Iorque, além de ser grande, não tem regras definidas no que respeita aos horários mas também à própria existência das linhas. Há várias estações inutilizadas e linhas fechadas que podem abrir subitamente em detrimento de algumas existentes. Dada a dimensão, tal nunca me ocorreu para Lisboa mas, do ponto de vista simbólico, a sobreposição da informação digital por um conhecimento físico e seguro, como saber os horários e as linhas de metropolitano, deixa a sua marca.

No sentido da citação de Braton, reiteramos que a mobilidade deixou de ser exclusivamente mecânica e passou a ser também informacional.

Para além de executarmos num smartphone várias tarefas que antes ocupavam uma extensão funcional do espaço, deve-se acrescentar que, com os instrumentos atuais, podemos afetar e conduzir o próprio espaço. Fazemo-lo ao publicar fotos de acontecimentos que nos surgem em tempo real; quando opinamos numa rede social sobre determinado restaurante, espetáculo, um encontro com alguém, uma inquietação, o testemunho de um acidente, etc.

Qualquer singela e comum ação do quotidiano marcada na rede produzirá um aglomerado de milhões de dados, sujeitos a várias interpretações.

Esta capacidade interpretativa, aliada ao facto de estar, na sua génese, o movimento do cidadão, leva Saskia Sassen a ensaiar um «Open Source Urbanism», referindo que as novas tecnologias deixam uma enorme marca no urbanismo. A cidade será sempre uma entidade incompleta e por isso suscetível às mudanças promovidas pelos seus habitantes: “Cities talk back” (Sassen, 2011).

Já Innerrity, referindo-se a uma nova urbanidade, diz que:

o espaço homogéneo estável é apenas um caso-limite no seio de um espaço global de multiplicidades locais interligadas, e acrescenta, há já muito tempo que o debate público se efetua num espaço virtual.

Innerarity (2006, p.136)

Assim, as recentes alterações e inovações nas tecnologias de comunicação têm um significativo impacto no espaço e no tempo. Grande parte dos acontecimentos ocorrem no espaço de fluxos, com mais densidade e interação do que, por vezes, no espaço físico.

De acordo com as definições propostas, e na ausência de um referencial teórico atualizado, sobretudo derivado do nível de atualização dos factos, proponho o acompanhamento de alguns casos práticos onde a sociabilidade online conduz a novas compreensões da cidade.

O espaço em “ocupar”

O ano de 2011 foi pródigo em movimentos sociais. Desde o movimento dos indignados de Lisboa e de Madrid, aos protestos em Telavive contra o aumento do custo de vida, o movimento Occupy Wall Street e Oakland, e à Primavera Árabe, muitos foram os pretextos de reivindicação por cidades do mundo inteiro.

Todos os movimentos citados advogam formas outras das mainstream para a prática da democracia. Enquanto os políticos e autoridades oficiais reúnem-se em edifícios como parlamento, sedes partidárias ou ministérios estes movimentos, geralmente arredados de partidos políticos e promotores da democracia direta, reúnem no espaço público.

A rua é poder e simbólico. Para além disso, as assembleias dos processos de democracia direta exigem um amplo espaço público já que o cara-a-cara é fundamental.

Do mesmo modo, comprova-se que os processos de convergência para estes protestos baseiam-se em fidelizações através da internet e de redes sociais, onde se procuram afetos comuns, identificações e o protesto é exponenciado.

As redes sociais digitais oferecem um potencial de agregação, deliberação e ação quase sem restrições; tendo em conta o papel histórico da ocupação do espaço para a mudança social, os movimentos sociais precisam de construir espaço público através das comunidades livres que o tomam.

Os protestos do ano de 2011 levaram Sassen a fixar o conceito de Global Street (Sassen, 2011), por haver um momento de contágio permanente à escala global de ocupação de espaço público. A rua passou a ser o centro desses movimentos sociais, e é o local onde as mudanças políticas e sociais são realizáveis, contrariando algumas das funções rituais a que esses locais e espaços estavam destinados:

With some conceptual stretching, we might say that politicaly “street and square” are marked differently from “boulevard and piazza”: the first signals action, an the second, ritual.

Sassen (2011)

Assim, ao ocupar-se o espaço público por tempo indeterminado, está-se a fazer história ao recriar os territórios numa lógica horizontal e pela vontade popular daqueles que não têm acesso aos instrumentos de poder exercidos pelas soberanias nacionais.

A importância simbólica de ocupar a rua e o espaço público é ainda mais evidente através dos esforços das autoridades oficiais para, através da repressão, forçar o mais rápido possível o regresso desses lugares à sua função inicial, mesmo que os movimentos de contestação sejam pacíficos.

De todos estes movimentos, o da Primavera Árabe no Cairo talvez tenha sido o que mereceu maior cobertura mediática. Em primeiro lugar porque demorou mais tempo, mas também pela potencialidade de mudar o regime, expectativa que não existia em movimentos como o dos indignados ou do occupied.

A Praça Tahrir, no centro da cidade do Cairo, é das que melhor combina as alterações do espaço público e a sua relação com a sociabilidade online.

Até aos anos sessenta do século XX, a praça Tahrir era uma praça com relva, lugar para convívios diversos. A partir dos anos 70, com o governo de Sadat e, mais tarde, de Mubarak, a Praça foi sendo sucessivamente segmentada com grades e tapumes, prometendo sucessivas obras, nomeadamente um parque subterrâneo. De facto, a Praça representava as políticas de planeamento urbano dos governos de Mubarak que pretendia esvaziar o papel congregante dos espaços públicos e a sua função “ameaçadora”.

A praça Tahrir foi escolhida como ponto de encontro para o início dos protestos por ser central, um local importante que intersecta diversas linhas de transportes, com edifícios de administração do Estado e com nome de “liberdade”.

As convocatórias realizaram-se através das redes sociais e por mensagens instantâneas de telemóvel, sendo que a ocupação do território, tal como referida por Sassen, foi essencial como representação da força da revolução e da sua continuidade.

Uns dias após o início dos protestos, foi cortado o acesso à internet e às redes wireless, dotando a Praça de um poder ainda maior. Ocupar ganhou cada vez mais significado. Como não havia possibilidade de comunicação, a única solução era ir para a Praça.

Ao ocupar a Praça, os manifestantes perceberam, depois de remover as grades e tapumes, que não existia obra alguma a realizar, e que os artefactos apenas serviam para impedir o valor agregador do espaço.

Os manifestantes criaram a “Free People Tahrir Square”, com postos para evitar a entrada na Praça de representantes do Ministério da Administração Interna. Tahrir tornou-se ponto de encontro dos mais muitos grupos de pessoas, de várias idades, géneros, orientação sexual, nacionalidades e etnicidades.

O rap crioulo em Lisboa

Apesar de termos enaltecido a importância da sociabilidade online, através das redes e fluxos de informação,

Isto não quer dizer que a sociabilidade baseada no lugar tenha desaparecido por completo. (…) As comunidades de imigrantes, tanto na América do Norte como na Europa, continuam a depender em grande medida da interação social baseada no lugar.

Castells (2007, p. 156)

Em Lisboa, um dos momentos de expansão da cidade ocorreu no fim da década de 70 do século XX e inícios de 80, com a imigração de origem africana a instalar-se no que eram então os limites da cidade. Com pouco interesse e condições do poder público para oferecer ou proporcionar habitação digna e/ou acessível aos novos habitantes da Grande Lisboa; muitos instalaram-se em baldios onde construíram bairros improvisados; outros conseguiram aceder a mecanismos de fomento à habitação.

Nesses bairros reproduzem-se comportamentos culturais e sociais: língua, culinária, música, dança, credo e ritos; de modo a fortalecerem a sua identidade e respetivas práticas; bem como a recriação de um ambiente acolhedor que faça frente às dificuldades impostas por esta sociedade de acolhimento.

Assim, a sociabilidade local, no contexto das comunidades de imigrantes na Europa, tem ainda a vantagem de garantir um suporte social e redes informais de apoio, não só no que respeita à sobrevivência económica, mas também em questões de documentação e procura de emprego. No contexto da atual crise, a sociabilidade local tem ainda mais importância.

Na transição do fordismo para a economia informacional, as populações de imigrantes de antigas colónias de França e Portugal, e as comunidades afro-americanas das cidades americanas, perderam alguma preponderância na força de trabalho existente; a ausência (e dificuldades de acesso) de formação profissional e de qualificação dos membros dessas comunidades conduziu a maiores dificuldades na aquisição e garantia de emprego (Wacquant, 2010).

No entanto, do ponto de vista do consumo, essas comunidades estão conectadas ao espaço de fluxos, nomeadamente através do serviço de telemóvel com ligação à internet (Smith, 2010).

A utilização do serviço de telemóvel com ligação à internet é uma forma economicamente mais acessível de aceder à rede e, do mesmo modo, corresponde a uma forma mais funcional e menos exigente ao nível dos custos e das funções exigidas de acesso a um conjunto de aplicações. Muitos dos jovens que habitam nos bairros sociais da Grande Lisboa são hábeis na utilização desses instrumentos, através de centros de inclusão digital normalmente disponível na comunidade, do uso de telemóvel com ligação wireless à internet, computador pessoal e até, na ausência de recursos para um serviço de internet privado, a utilização de redes wireless de possível descodificação é uma prática comum.

Raramente nos lembramos que as comunidades mais excluídas das nossas sociedades têm acesso aos mesmos instrumentos que a restante sociedade. Normalmente, quando somos alertados para isso é pelas piores razões ou porque a sociedade vigente se sente ameaçada.

Nos motins da banlieue das principais cidades francesas em 2005, foi publicamente reconhecido o papel das mensagens instantâneas de telemóvel no alastramento e organização dos eventos. Já em Paris, nos motins de 2010, também na banlieue, reconheceu-se a importância das redes sociais, enquanto os motins da Grã-Bretanha de 2011 usufruíram também das redes sociais: Facebook e Twitter (5 Days in August: 2012).

Fica quase sempre por relatar os efeitos positivos da aliança entre uma forte sociabilidade local e uma sociabilidade online. Na Grande Lisboa, encontramos bons exemplos de como potenciar através da internet e seus acessos, as práticas culturais e artísticas que provêm dos bairros já mencionados, permitindo encurtar distâncias e custos, promovendo o consumo em massa de opções homogéneas dentro da heterogeneidade da grande cidade.

Das diversas expressões desses territórios e com presença assídua online - entre o Kuduro, grupos de dança e Dj’s -, o Rap Crioulo é um dos exemplos mais singulares até porque tem características que o afastam de um possível êxito comercial: é cantado numa língua não oficial em Portugal, descreve o dia-a-dia dos bairros da periferia de Lisboa, não tem agenciamento ou produção, carece de espaços de atuação formais, a sua forma objetivada (CD) não chega às lojas, os intérpretes são amadores, para além do preconceito generalizado que a sociedade presta aos jovens que interpretam o género, habitantes nos bairros periféricos de Lisboa cujas ações são mediadas de forma pouco cuidada pelos media tradicionais.

O Rap Crioulo e o seu sucesso parecem resultar da fruição entre os dois tipos de sociabilidade: online e local.

O movimento aparece nos anos noventa do século XX, como resposta ao falhanço da comercialização do rap em Portugal. Muitos grupos esforçaram-se por cantar em português, mesmo quando a língua mãe era o crioulo, de modo a poderem ter sucesso naquele género. Quem conseguiu fê-lo à conta de letras e poesias com temas comerciais, não refletindo a realidade dos bairros. Como resposta, grande parte dos cantores dos bairros de descendência cabo-verdiana começaram a cantar em crioulo, seguindo o exemplo dos poucos que tinham mantido essa opção, dedicando temas à realidade do bairro: pobreza, exclusão, falta de emprego, abandono escolar, racismo, ausência de cidadania, etc.

Mais tarde, em meados da primeira década do século XXI, as músicas gravadas em estúdios improvisados nos diferentes bairros começaram a ser introduzidas no youtube, sem vídeo necessariamente.

Devido à identificação com os temas abordados nas músicas, com a utilização da língua crioula, e por haver sociabilidades semelhantes em várias dezenas de bairros na grande Lisboa, o movimento espalhou-se e, hoje, mesmo jovens que não são de origem cabo-verdiana, cantam e ouvem essa música.

A internet, através do youtube, permitiu ligar culturalmente territórios dentro da área metropolitana que, pela distância e pelo preço dos transportes, dificultaria o seu contacto permanente.

Do mesmo modo, o movimento mexeu com a geografia da internet, dissociando-a da geografia do estigma. De facto, se digitarmos no youtube o nome de alguns desses bairros: “Outurela Portela”, “Mira Sintra”, “Vale da Amoreira”, “Miratejo”, “Arrentela”, ao invés de encontrarmos conteúdos estigmatizantes, assistiremos a conteúdos culturais, em especial o Rap Crioulo.

Este movimento não é comercial, as músicas são disponibilizadas na internet de forma gratuita e, na maior parte das vezes, sem a existência do produto material: o álbum. Os vídeos são realizados por alguém desses bairros com a devida competência técnica, muita das vezes autodidata. Devido ao sentimento de pertença dos jovens face às músicas, quem as ouve não é só consumidor mas sim parte do movimento. Artistas com o Loreta, Né Jah, Landim, Baby Dog e grupos como Kova M, Fdib, KBA, Ghetto Shadows, Planeta Suel, Wesh Wesh e Tropas di Terrenu têm videoclips no youtube que facilmente detêm centenas de milhares de visionamentos, alguns até ultrapassando um milhão.

Como exercício, é interessante comparar o número de visualizações dos videoclips oficiais no youtube dos vinte artistas e bandas nacionais mais vendidos com os dos nomes já citados que interpretam Rap Crioulo. A superação permanente destes últimos impõe-nos interrogações.

A escala de sucesso das visualizações no youtube de Rap Crioulo dá-nos uma ideia bem diferente da identidade coletiva da Grande Lisboa e permite reposicioná-la, legitimando movimentos culturais normalmente não consa- grados. Por outro lado, há que destacar o engenho, criatividade e o espírito de resistência dos diferentes intérpretes do movimento: cantores, produtores, dj ́s, realizadores e suas crews; de aproximar afinidades através do uso da internet quando o território - pelas distâncias, custo dos transportes ou a sua pura inexistência - prometia ser o principal antagonista.

A internet e as possibilidades de conectividade permitiram o encurtar e segmentar a extensão do território, tornando orgânico o contacto permanente entre as várias dezenas de bairros periféricos da Grande Lisboa.

Há uma conclusão?

Estas análises podem parecer pouco significativas para o utilizador comum das tecnologias de informação que vê estas dinâmicas como um dado adquirido. A verdade é que, ainda, grande parte do uso atual provém da adesão a serviços, numa lógica de consumidor-cliente.

Dependendo da ação comunicativa, podemos caminhar para orgânicas de construção coletiva, importantes na medida da criação de diversas existências e legitimidades online.

Ainda no prelúdio da produção da Copa e das Olimpíadas, o governo do Rio de Janeiro pediu à Google que retirasse a palavra “favela” da sua aplicação “maps”. A empresa anuiu e, para além do coro de protestos de agentes sociais e dos próprios moradores das favelas pela medida política, a luta contra a invisibilidade face ao mundo e ao próprio Estado levou ao esforço conjunto de várias comunidades para a realização de um mapeamento colectivo online: o “Wikimapa”, também já consagrado no documentário Todo o mapa tem um discurso.

O jornal Inglês The Guardian criou um blogue dedicado à visualização gráfica e mapeamento de dados: o Datastore. A partir dessa aplicação, o jornal conseguiu desmentir o primeiro-ministro David Cameron quando este disse que os motins de 2011 nada tinham a haver com as áreas urbanas excluídas, de habitantes mais pobres.
Não há dúvidas que este assunto exige atualização permanente, uma observação atenta e adaptada a vários fenómenos urbanos, para melhor percebermos os seus contornos. A ideia de que as cidades são inacabadas (Sassen, 2011) e de que, com recurso à tecnologia por parte de pessoas e movimentos, é possível encontrar uma matriz colaborativa na sua construção, está a crescer.

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por António Brito Guterres
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