Pelas águas sagradas que nos curam: uma conversa com Milena Manfredini

Milena Manfredini é uma dessas pessoas que conseguem ser serenas e estrelares ao mesmo tempo. Cineasta, antropóloga e curadora independente, Milena faz do cinema a lente do seu mundo. Conversei com a realizadora sobre a sua criação cotidiana com o audiovisual até à sua relação pessoal com os cultos de matriz africana. As narrativas que permeiam a vida de Milena partem da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro e desembocam no atlântico, fazendo parte das grandes confluências que têm sido os cinemas negros contemporâneos.

Milena ManfrediniMilena Manfredini

O que é o cinema para si?

O cinema é a lente pela qual eu enxergo o mundo. O cinema me ensinou, me politizou e me levou para lugares que nunca poderia imaginar. O cinema tem uma dimensão sensível, política e psicanalítica. Eu me descubro e entendo melhor o mundo, a sociedade e os meus pares quando estou na companhia de uma câmera e quando estou vivenciando o processo de montagem. Para mim a ilha de montagem é uma sessão de psicanálise. 

Também não podemos esquecer que o cinema é uma linguagem poderosíssima que contribui para a criação de imaginários, de estereótipos e de representações. Tanto pode ser nocivo como também benéfico e curativo. Por essa razão, acredito que o cinema é um lugar de responsabilidade, pois criamos discursos a partir das imagens que produzimos. Como dizia o grande intelectual e cineasta Zózimo Bulbul: O cinema é uma arma, ou seja, para além de um fazer artístico é uma ferramenta política e um lugar de poder.

E o que seria cinema negro então?

É uma pergunta complexa. Acredito que não é possível cristalizar ou definir o que seria cinema negro, pois acabaria por limitar filmes, pensamentos e toda uma produção acadêmica que há anos vem sendo construída. Contudo, mais uma vez citarei Zózimo Bulbul quando, em resposta a uma entrevista em 2011, disse que cinema negro não era um cinema composto apenas por atores negros - citando na época alguns filmes com elencos majoritariamente negros, mas que continuavam a reforçar esteriótipos e estigmas negativos. Não me sinto confortável em definir algo tão amplo como o cinema negro. Porém, em poucas palavras diria que é um cinema de contra-fluxo que vem sendo gestado na diápora negra e propõe um redesenho de representações e criação de novos imaginários.

Em Eu preciso destas palavras escrita (2017) você faz um registro histórico muito importante do Bispo do Rosário. Todos nós, pessoas negras, passamos por algum tipo de trauma em nossas existências. A filósofa Marimba Ani tem o conceito de maafa, que é o trauma original da escravidão. Você acredita que o cinema e outras artes curam?

Acredito. Ao longo de toda a nossa formação como pessoas e consumidores de imagens fomos violentadas/os com símbolos e signos que desumanizam nossas existências - enquanto pessoas negras. Desde a indústria televisiva com as novelas, os programas infantis e de auditório até ao cinema hollywoodiano que influencia até hoje o nosso cinema comercial. O padrão e a estética eurocêntrica, leia-se branca, sempre esteve nesses conteúdos que demarcam de maneira muito evidente em que posições homens e mulheres negras devem estar, ou seja, num lugar de exclusão e subalternidade. As dinâmicas sociais e raciais influenciam as instituições e também a comunicação. Dessa maneira, as mensagens que o cinema hegemônico e as artes em geral expressaram para as pessoas negras durante longos anos, foi a invisibilização e a representação negativa. 

Por essa razão, acredito que as artes produzidas por artistas negras/os nos mais variados campos: artes visuais, teatro, literatura, cinema, dentre outras, operam maneiras não hegemônicas de representar as nossas humanidades.

O cinema e as demais linguagens artísticas de pessoas negras - verdadeiramente comprometidas - reconstrói novos imaginários e estéticas criando uma contra história em combate a estigmatização, a invisibilidade e a subalternização de nossas existências. Por essa razão, acredito que o cinema e demais expressões artísticas podem, sim, nos curar.

Eu preciso destas palavras escrita (2017)Eu preciso destas palavras escrita (2017)

O escritor Spírito Santo recentemente cunhou o conceito de mídias líquidas na diáspora, apontando que a cultura negra na diáspora só existe por causa do fluxo dos rios no continente africano, da passagem no oceano atlântico. Acrescento também que hoje existe uma terceira diáspora (GUERRERO, 2010) onde a internet intensifica esses fluxos. A partir do seu filme De um lado do Atlântico (2020), como vê o cinema negro nessa dimensão do Atlântico?

Muito antes da internet, Zózimo Bulbul desempenhou um importante papel de intensificar a comunicação, os fluxos e as trocas entre cineastas negras/os brasileiras/os com realizadores negras/os em diáspora. Com a criação do Centro Afro Carioca de Cinema, na cidade do Rio de Janeiro e posteriormente com a fundação do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas uma travessia foi aberta tanto para receber em terras brasileiras as filmografias e a presença de realizadores afro diaspóricos como também para levar o cinema negro brasileiro para importantes festivais africanos. Gostaria que Zózimo estivesse conosco para observar como os fluxos iniciados por ele e que hoje são facilitados pela internet frutificaram. A última edição do Encontro de Cinema Negro de 2020 foi uma bonita experiência nesse sentido, pois os filmes exibidos podiam ser assistidos online em todo território brasileiro como também em alguns países do continente africano. O filme  De um lado do Atlântico  propõe um diálogo que mais uma vez só foi possível graças ao trabalho incansável de Zózimo. Neste filme eu endereço uma carta fílmica a um importante cineasta afro americano chamado Christopher Harris que tive a honra de conhecer e me aproximar de sua obra no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul no ano de 2018.

De um outro lado do atlântico (2020)De um outro lado do atlântico (2020)

Sabemos que Exu é o orixá do cinema, mas recentemente venho pensando como Oxum se relaciona com o cinema. Considerando como ela representa a estética, o desejo e a reflexão, dispositivos essenciais do cinema. Em seus filmes, como em Mãe Celina de Xangô (2021), o sagrado é constante. Como você encara essa relação entre ancestralidade e religiosidade no cinema?

Eu acredito que muito do que nós somos, experienciamos, pensamos e sentimos deságua em nossas produções. Desde a escolha ou recorte de uma pesquisa acadêmica, um texto teatral, uma produção literária e cinematográfica. Nossos mais velhos costumam dizer que somos aquilo que comemos e acreditamos, logo, penso que também somos o que gestamos artisticamente. A religiosidade e a presença dos Orixás é algo que está na minha vida desde o final da adolescência e que vem tomando diferentes contornos com o passar dos anos. A religiosidade de matriz africana e os Orixás fazem parte do meu cotidiano e da minha filosofia. Orixá pra mim é vida, movimento, comunicação, natureza, o aqui e o agora. Assim sendo, não tenho como desassociá-los do que sou e produzo. 

É importante frisar que vivemos num país historicamente racista e intolerante com as expressões religiosas de matrizes africanas. Podemos notar um constante estímulo, principalmente nos últimos anos - por intermédio da política e da igreja -, aos terreiros de candomblé e seus religiosos. Se faz necessário abrirmos um diálogo urgente acerca das liberdades religiosas nos mais variados espaços, desde as instituições brasileiras como sistema jurídico, governamental, educacional até no âmbito das artes. E como um dos meus ofícios é o cinema e entendo que toda arte é política - mesmo as que não se intitulam enquanto tal, também o são - sinto como artista o dever de abrir diálogos e reflexões em torno de nossa espiritualidade, filosofia, estética e cosmogonia. 

Mãe Celina de Xangô (2020)Mãe Celina de Xangô (2020)

Em relação ao seu trabalho como curadora, a Mostra de Narrativas Negras. Sabendo que sofremos subjetivamente com uma histórica falta de representação nos diferentes meios de arte, você acha que a curadoria também é um processo de cura? 

A palavra curadoria deriva do latim CURA, ou seja, ato de curar, cuidar e zelar. A compreensão do significado primeiro de algumas palavras pode enriquecer seus sentidos no tempo presente, ampliando seus significados. Diante das muitas funções no campo da curadoria, temos curadores no campo das artes visuais, no teatro, no cinema e em demais linguagens artísticas. E estes precisam compreender a seriedade e a responsabilidade ética deste ofício, pois a curadoria tanto pode curar como adoecer - assim como um fármaco/remédio - a quem é exposto a sua ação. 

Por muitos anos filmes de realizadores negras/os foram invisibilizados nas principais mostras e festivais de cinema, pois o corpo curatorial destes eventos era composto majoritariamente por homens brancos cis, heterosexuais e de elite. Maria Aparecida Bento, importante intelectual e uma das precursoras nos estudos da branquitude no Brasil, elaborou um conceito que explica bem esta antiga prática que ocorre não apenas no âmbito do cinema, mas nos espaços de poder em geral. Este conceito chama-se “pacto narcísico da branquitude”, ou seja, nos espaços de poder - e a curadoria não seria diferente - os brancos sempre escolhem as narrativas, as obras, o discurso e a presença de seus semelhantes: pessoas brancas. 

Dessa maneira, dentro das minhas micro ações como curadora independente em mostras, festivais de cinema e como idealizadora da Mostra de Cinema Narrativas Negras compreendo a importância de distribuirmos e darmos acesso aos filmes produzidos e protagonizado por artistas negras/os, ou seja, precisamos criar estratégias  para que essas imagens cheguem até as pessoas. A criação da Mostra Narrativas Negras se origina no desejo de que esses filmes sejam vistos, apreciados e discutidos como merecem.

O cinema produzido e protagonizado por mulheres e homens negros - na minha percepção - é um lugar de cura. Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Carmen Luz, André Novais, Ethel Oliveira, Duca Caldeira, Safira Moreira, Mariana Luiza e uma lista infindável de grandes talentos nos curam produzindo novas narrativas que enaltecem a identidade negra nas telas. 

Tenho total consciência de que a Mostra de Cinema Narrativas Negras não está inventando a roda e tampouco eu, enquanto curadora independente, com os programas que construo. Por essa razão, sempre que estou ministrando aulas, dando entrevistas ou participando de debates reverencio e nomeio quem veio antes e inspira a minha trajetória. 

O trabalho de Zózimo Bulbul enquanto cineasta e curador de cinema foi e é determinante para que hoje eu pudesse ser o que sou. A curadoria que esse homem concebia alimentou minha cabeça, curou minhas retinas e contribuiu para o fortalecimento de minha auto estima enquanto artista e pensadora. Estou ciente do desafio e da responsabilidade em torno da curadoria de cinema e me inspiro em curadoras/es que vieram antes de mim como Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Ana Paula Alves Ribeiro, Janaína Oliveira, Hernani Heffner, Carmen Luz, Emílio Domingos, dentre tantas e tantos. A elas e a eles toda minha deferência.

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MILENA MANFREDINI é cineasta, antropóloga e curadora independente. Dirigiu e roteirizou os filmes “Eu Preciso Destas Palavras Escrita” (2017) filme sobre a vida e obra do artista contemporâneo Arthur Bispo do Rosário; “Camelôs” (2018) filme sobre os vendedores ambulantes da cidade do Rio de Janeiro; “Guardião dos Caminhos” (2019) filme sobre espaço urbano e dimensão do sagrado; “De um lado do Atlântico” (2020) filme idealizado a convite do Instituto Moreira Salles para a chamada IMS Convida; “Mãe Celina de Xangô” (2021); “Cais” e “De um porto a outro” (ambos em processo de finalização). Atua como curadora em mostras e festivais de cinema e é idealizadora e curadora da Mostra de Cinema Narrativas Negras, projeto voltado à pesquisa, exibição e visibilização das filmografias negras. Também exerce as funções de pesquisadora, professora e consultora no campo audiovisual.

por Marco Aurélio Correa e Milena Manfredini
Afroscreen | 25 Janeiro 2021 | arte, audiovisual, Brasil, cinema, cinema negro, curadoria, Milena Manfredini, realizadora, representação