Corsino Fortes e sua poética semeadora da “cabeça calva de Deus”

Sol & semente: raiz & relâmpago
Tambor de som
Que floresce
A cabeça calva de Deus

(FORTES, Corsino, 2001, p.101.)

(…) Corsino António Fortes nasceu em Mindelo, na ilha de S. Vicente, em 1933. Perdeu os pais muito cedo e, aos doze anos, teve de suspender os estudos, passando a trabalhar na Companhia Ferro como aprendiz, ajudante de ferreiro e ajustador de máquinas. Em entrevista a Michel Laban, conta que, nesse período, mesmo longe da escola, saía do trabalho e a primeira coisa que fazia era ir à biblioteca municipal (cf. LABAN, 1992, p. 385). Retornou ao liceu somente aos vinte anos, onde teve encontro muito profícuo com João Varela, com quem travou diálogos sobre suas “primeiras pedras de projecto literário” (Idem, p. 386). Entre 1957 e 1960, a aproximação com Abílio Duarte, um dos fundadores do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e que retornava da Guiné-Bissau para mobilizar e conscientizar a juventude cabo-verdiana para a luta de libertação nacional, também o influenciaria decisivamente. Nesse período, alguns de seus poemas são publicados no Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes, no Cabo Verde: boletim de propaganda e informação e na revista Claridade 9, o último número deste periódico.

Em 1961, foi para Lisboa cursar Direito, e a passagem pela Casa dos Estudantes do Império contribuiu para seu amadurecimento político, principalmente em função da efervescência dos debates travados sobre a realidade das então colônias portuguesas e das produções literárias que apontavam para uma ordem diferente. Concluiu a faculdade, em 1966, e, desde então, passou a exercer inúmeros cargos jurídicos, políticos e diplomáticos: em Angola, delegado do Ministério Público e juiz de Direito, até pedir exoneração em abril de 1975; representante do PAIGC, também em Angola, entre os anos de 1974 e 1975; diretor geral dos Assuntos Judiciários da República da Guiné-Bissau; emissário especial da República de Cabo Verde junto aos governos de Angola e de São Tomé e Príncipe; de 1975 a 1981, embaixador da República de Cabo Verde junto à República Portuguesa; em 1981, de volta a Cabo Verde, secretário de Estado adjunto do primeiro ministro; em 1983, secretário de Estado da Comunicação Social; entre 1986 e 1989, embaixador de Cabo Verde junto à República Popular de Angola e aos governos de São Tomé e Príncipe, Zâmbia, Moçambique e Zimbábue; de 1989 a 1991, ministro da Justiça pelo governo de Cabo Verde; consultor diplomático, em 1992, do I programa PALOP. Também foi presidente da Fundação Amílcar Cabral e presidente da Associação de Escritores Cabo-verdianos, entre outras atividades. A lista é realmente grande e justifica as condecorações que já recebeu, entre elas a da Ordem do Vulcão pelo governo cabo-verdiano.
Se as atividades políticas de Corsino Fortes são extensas, o poeta Corsino tem uma obra concisa, mas não de menor consistência que a carreira diplomática. Ao contrário, o escritor é considerado um dos grandes nomes da literatura de Cabo Verde, tendo inaugurado uma poética de reescrita da identidade cultural cabo-verdiana através de um trabalho com o aparato estético do poema. A proposta de uma poesia da cabo-verdianidade das primeiras décadas do século XX, com os grupos Claridade e Certeza, por exemplo, ganha novos contornos e a linguagem combativa do período de luta pela independência dá lugar a novos modelos de representação. Segundo estudo da professora Carmen Lucia Tindó Secco, a obra de Corsino Fortes rompeu paradigmas em relação às produções anteriores:

“Com a obra de Corsino Fortes, os cânones literários do passado foram definitivamente ultrapassados. Muitos de seus poemas dialogaram intertextualmente com os de poetas das “gerações” anteriores, como Jorge Barbosa e Gabriel Mariano. Fez a releitura da poesia de Claridade, negando a proposta de evasionismo e afirmando a necessidade de fecundar a esperança de transformação dentro das ilhas. Releu também Ovídio Martins, contradizendo-o: “Já não somos os flagelados do Vento Leste”, pois o vento tornou-se metáfora anunciadora de mudanças sociais, um signo caboverdiano de desafio (…) A poesia de Corsino aprofundou a proposta do anticolonialismo fundada pelo grupo Sèló e questionou também os séculos de dominação portuguesa.” (SECCO, 1999, pp. 18-19)

Enfim, o autor ampliou o debate sobre a redescoberta dos valores culturais da terra, construindo uma poesia de estrutura épica dinâmica, na qual são encenadas não só a história e a voz coletiva do povo cabo-verdiano, mas também a subjetividade e as experiências do eu-lírico.  Para a ensaísta Ana Mafalda Leite, “a modalização épica, que abrange e desenvolve o que na expressão de Hamilton é denominado por “estratagema do eu intimista como voz coletiva” (…) torna-se uma das soluções que visam resolver a problemática da identidade nacional” (LEITE, 1995, p. 112). É assim que Corsino Fortes, buscando referências principalmente na realidade plural e coletiva das ilhas, canta suas origens, os labirintos da memória e o acontecer da palavra, participando da construção de um novo percurso para a poesia cabo-verdiana contemporânea.
O projeto literário de Corsino Fortes se consolida com a reunião dos seus três livros de poesia na obra intitulada A cabeça calva de Deus (2001): os dois primeiros livros, Pão & fonema (1974) e Árvore & tambor (1986), somam-se ao terceiro, Pedras de sol & substância, publicado com a obra poética. Cada livro apresenta uma estrutura particular, e os três compõem uma estrutura conjunta e dialógica. Em uma das entrevistas concedidas pelo autor, quando do lançamento de A cabeça calva de Deus, assim caracterizou, em linhas gerais, a trilogia:
“Acaba por ser todo o projeto de independência do povo de Cabo Verde, em que Pão & Fonema representa, de facto, os símbolos daquilo que é fome, daquilo que é a realidade de Cabo Verde durante séculos, e, por outro lado, a exigência pela palavra, liberdade e cultura. Em Árvore & tambor já há a materialização do “pão”, no sentido dos instrumentos de produção do país e toda a comunicabilidade do arquipélago com África e o mundo. Pedras de sol & substância é a substancialização solar desta realidade. Há uma materialização de aspectos, não só de ordem literária, mas também de ordem pictórica e musical. É tudo aquilo que pode significar a identidade deste espaço, e dos que o habitam, dentro e fora do arquipélago.” (Revista África Hoje, n. 159, nov./2001)
Trata-se, portanto, de um discurso em ascensão, em que o poeta gradativamente incorpora e ressignifica elementos simbólicos do universo insular, encenando experiências da realidade cabo-verdiana, histórias do próprio sujeito e da linguagem, com o objetivo de constituir uma memória coletiva do grupo. Fortes, em um ato de consciência histórica, reflete, enfim, sobre a “independência do povo de Cabo Verde” no sentido de construção e valorização de uma identidade “em curso”, em constante processo de transformação, lembrando a acepção de Boaventura de Sousa Santos (2000). Não é à toa que uma das epígrafes que Corsino elege para sua trilogia poética é de Pablo Neruda, da qual destacamos os versos: “Cumpliendo com mi oficio/ piedra com piedra, pluma a pluma// Yo estoy limpando mi campana/ mi corazón, mis herramientas// Aqui nadie se queda inmóvil/ Mi pueblo es movimiento/ Mi patria es um camino” (FORTES, 2001, p. 9). O movimento do povo cabo-verdiano no caminho de construção de uma pátria livre e independente pode ser visto refletido no movimento do conjunto da obra de Corsino Fortes, como pretendeu o poeta.  
Pão & fonema, escrito antes de 1975, ano este da independência de Cabo Verde, apresenta um cartograma do Arquipélago, com destaque para a ilha de São Vicente, terra natal do poeta, através de uma proposição e três cantos. Na apresentação geral da obra, a imagem circular da geografia físico-social e da dinâmica temporal de uma grande Ilha, formada pelas dez ilhas e ilhéus, se impõe como o assunto do poema fortiano, como podemos perceber nos versos Ano a ano/ crânio a crânio/ Rostos contornam/ o olho da ilha” (Idem, p. 13) ou “Ano a ano/ crânio a crânio/ Tambores rompem/ a promessa da terra (Idem, p. 13).

Assim, o rosto da Ilha de Cabo Verde vai ganhando forma na confluência das ilhas, pedras moldadas pelo tempo e pelas palavras daqueles que, desde o início, foram lhe dando voz e sentidos.
Os símbolos que dão título à obra dramatizam todo um ciclo de luta pela sobrevivência, de resistência à colonização portuguesa e de afirmação dos valores do homem da terra. O “pão” é o resultado de um processo de semeadura da terra e, conseqüentemente, da vida: o homem cabo-verdiano, agricultor teimoso que insistentemente, “ano a ano”, joga a semente, colhe o milho e produz o seu próprio alimento, pão do corpo e pão do espírito, pois permite que também possa escolher ficar ao invés de partir.  O “fonema” representa a palavra e a promessa da terra/ Com pedras/ Devolvendo às bocas/ As suas veias/ De muitos remos (Idem, p. 13), ou seja, a própria independência política e cultural do povo cabo-verdiano.

Segundo Mesquitela Lima, no prefácio da segunda edição de Pão & fonema, “no poema, fonema vem do fundo das goelas, das entranhas da alma, como um grito, (…) sinal de afirmação de si próprio, como povo, como cultura, como dignidade, como projecção no mundo”. (LIMA, 1980, p. 70)
Figurando, desta maneira, os ritmos próprios do cabo-verdiano, esse fonema-palavra-grito passa a tomar corpo com a apresentação de um cartograma do Arquipélago nos três cantos do livro. O canto primeiro “Tchon de pove tchon de pedra” (Chão do povo, chão de pedra) explora, principalmente, a realidade das secas no cotidiano das ilhas e a necessidade de uma ruptura dos ciclos de fome e de espera por uma solução, como notamos, por exemplo, no poema que dá título e fecha esse canto:

O rosto de teu filho brada pelo mar
Como panelas mortas como panelas vivas

                        mortas
                                 vivas
                                        nos fogões apagados

Pilões calados fogões apagados
No vulcão e na viola do teu coração

Boca do povo no fogo dos nossos fogões apagados

Chão do povo chão de pedra!
O sol ferve-te o sol no sangue
E ferve-me o sangue no peito
Como o fogo e a pedra no vulcão do Fogo

De sol a sol
                abriste a boca

Secos os pulmões
                 neles cresce-me
                           a lenha do mato

De sol a sol
               os meus ossos são verdes
               os teus ossos são plantas
Como a fruta-pão o tambor e o chão

De sol a sol
      gritei por Rimbaud ou Maiakovsky
      deixem-me em paz

                                        (FORTES, 2001, p. 37 e p.39)

O mesmo sol que deixa os “fogões apagados” e os “pilões calados” porque ferve o chão, naturalmente de pedra, é capaz de provocar uma explosão de consciência, porque faz ferver também o sangue do povo cabo-verdiano diante da fome e dos filhos voltados para o mar, afinal o chão/ terra/ pátria é do povo. Podemos dizer que há uma simbiose entre o “chão do povo chão de pedra” e o corpo do sujeito, já que os campos semânticos “rosto, coração, boca, sangue, pulmões, ossos” e “fogo, vulcão, sol, chão, pedra, lenha, mato, plantas” se ligam diretamente. Assim, se o sol repetidamente faz parte de um cenário em que o vento/ enche/ a boca de espelho (Idem, p. 27) ou Ó cabra de sono ó poço de abandono/ Ó crepe de terra ó cratera/ De cabelo crespo (Idem, p. 32), versos do primeiro canto, neste poema, a imagem do “sol a sol” se potencializa, com o verbo ´ferver´ indicando um movimento do sujeito, e com o símbolo do vulcão do Fogo, marcando todo um estado de ebulição.

Na leitura de Ana Mafalda Leite: “a descrição do aparente ser passivo e resignado do ilhéu, em consonância com o tempo parado, concêntrico e imutável da nudez das rochas e das ilhas, revela-nos que aquele iniciou o movimento prospectivo e germinado no interior de si, e que a sua reacção entra, uma vez mais, em empatia com a actividade e a sageza mineral das ilhas. O símbolo do vulcão remete para essa surda movimentação que agita o interior e o exterior, as ilhas e o ilhéu, em estreita correspondência.” (LEITE, 1995, p. 124)

A própria disposição gráfica dos versos e o ritmo do poema, com o uso, por exemplo, de aliterações como “o sol ferve-te o sol no sangue”, sugerem esse movimento. É fundamental destacar o depurado trabalho estético desenvolvido pelo poeta. “De boca a barlavento”, poema que abre o canto primeiro, nos dá pistas sobre os passos da construção do texto de Corsino Fortes: Poeta! todo o poema: / geometria de sangue & fonema (2001, p. 17) ou

Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
                                                 o
                                                 t
                                                 e
                                                 j
                                                a
         De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
        para dentro das violas

                                                      (Idem, p. 16)

Construídos pedra a pedra, palavra a palavra, os poemas revelam uma inventividade que, de fato, rompe com modelos anteriores da literatura cabo-verdiana. Há uma exploração das matérias do significante (o som, a letra impressa, a linha, o espaço da página), que apontam para outras possibilidades de leitura do Arquipélago e do fazer poético. Com influência também da poesia modernista brasileira, em especial da engenharia poética de João Cabral de Melo Neto e do concretismo, a poesia de Corsino Fortes explora associações fônicas e instaura novas relações morfológicas, sintáticas e semânticas entre as palavras. Na estrofe acima, a “geometria de sangue & fonema” é vista na economia verbal, com o espaço trabalhado com consciência estética, carregando de significação a disposição dos versos na página, principalmente na palavra ‘goteja’, que cai em letras, gotas. A musicalidade e os efeitos sinestésicos, desenvolvidos a partir das referências de sua terra, também estão presentes na obra poética de Fortes. Além disso, o poeta apresenta parte de sua obra em crioulo e simultaneamente em língua portuguesa, em mais um diálogo sobre linguagens e culturas que marcam a híbrida identidade cabo-verdiana, mostrando que o fonema-voz do povo cabo-verdiano é representado tanto pelo crioulo quanto pelo português.
O segundo canto de Pão & fonema chama-se “Mar & matrimônio” e reflete sobre a problemática da evasão. A saída da terra é vista não mais como uma fatalidade, porém como possibilidade de crescimento do homem das ilhas, que cruza o mar para trabalhar, amadurecer e lutar por sua terra, mesmo estando longe. O poeta propõe uma “Nova largada”, em um jogo intertextual com Gabriel Mariano (Idem, pp.46-47). No poema, o emigrante parte fisicamente, mas está casado com sua pátria e seu povo, ou seja, sai “de pé nu”, em prol do “pão da manhã” (Idem, p. 43), porque “toda a partida É potência na morte/ todo o regresso É infância que soletra” (Idem, p. 71). Assim, na análise de Mesquitela Lima, esse canto traduz a idéia de que o homem cabo-verdiano, disperso pela diáspora, ao regressar, deve “ajudar a sua terra a erguer-se como nação, como país livre e independente” (LIMA, M. In: FORTES, 1980, p. 85).
“Pão & patrimônio” é o terceiro canto da referida obra e conclama o povo ao grito de liberdade, a começar pelo poema de abertura “Do nó de ser ao ónus de crescer”, que exalta o “agora”, o momento de conquista definitiva de todo um patrimônio, a própria “ILHA”:

Do nó de ser ao ônus de crescer
Do dia ao diálogo
Da promoção à substância
                                  Romperam-se
As artérias
Em teu patrimônio
Agora povo agora pulso
                     agora pão agora poema

                                    (FORTES, 2001, p. 75)

    O mapa histórico-cultural da grande Ilha em Pão & fonema começa com o poema “De boca a barlavento” e termina neste terceiro canto com o poema “De rosto a sotavento”, quando a “mão de milho & marulho”, a “mão de semear”, a “mão doméstica” (Idem, pp. 16, 17) do sujeito do primeiro canto reaparece com força criadora e autônoma: “Há mãos que cantam/ no rosto da página/ O fonema/ que estala/ de pão & opala” (Idem, p. 92). Os sons das árvores, do pilão, dos tambores e do marulho também retornam, assim como a imagem “o sol a gema” (Idem, p. 16), que aparece na metáfora do “OVO/ que cresce/ No tambor da ilha/ como SOL/ Mordendo o umbigo de Deus” (Idem, p. 94). O ovo aqui é símbolo do renascimento de uma nação, de Barlavento a Sotavento, com o pão e o fonema, a semente e o poema sendo germinados pelo povo cabo-verdiano.

Corsino Fortes tem uma escrita, cabe reforçar, que volta constantemente a si mesma, na apresentação de imagens recorrentes – como o milho, a chuva, a pedra, o sol, o mar, a árvore, o tambor –, na própria renovação de seus versos, em diálogo entre si. É assim que no seu segundo livro, Árvore & tambor, encontramos uma ampliação dos elementos semânticos de Pão & fonema. Alguns anos após a independência de Cabo Verde, as ilhas “nascem graves/ nascem grávidas” (Idem, p. 111) e é “Tempo de ser ovo/ ovo de ser tempo” (Idem, p. 187). Vejamos um momento do poema “No rosto dos homens nasceram costelas de Sahel”:

Naufragada
          no sol das manhãs
                   a moeda do império
As ilhas
          perdendo peso
                          ganharam asas
E o arquipélago
Cresceu no ventre de tantas fêmeas
O vulcão perto das raízes
E a viola não lon
                      longe do coração

                                                    (Idem, p. 107)

Árvore & tambor traz uma estrutura de “Proposição & Prólogo”, cinco cantos e “Prólogo & Proposição”, novamente em uma dinâmica circular e, ao mesmo tempo, de abertura a novos elementos. O poema que utilizamos na nossa epígrafe inicia o livro e apresenta, com mais dois textos, o assunto discutido na obra: a produção de uma terra rica e sustentável pelos cabo-verdianos, a recolocação de Cabo Verde no cenário mundial e o intercâmbio com outras sociedades e culturas. Mais uma vez, o poeta destaca o importante papel de todos os cabo-verdianos – os que estão dentro e os que estão fora, na diáspora –, nesse processo de independência, com seus rostos voltados tanto para o Arquipélago quanto para o mundo:

Não me peças milagres
                              por favor
              pede-me revolução! camarada
Não & somente
A revolta da página sob o olho da terra
                nocturno nocturna
Mas a revolta do pão
                entre o sangue e a seiva
Mas a revolta do rosto
                entre a roda e o mundo 
 
                                                    (Idem, p. 104)

Propõe, assim, uma tomada de consciência e amplia o sentido revolucionário debatido por gerações anteriores. Convoca personagens como Agostinho Neto, que trouxe “ao solo da língua/ Um novo amor! a ‘Sagrada Esperança’/ De um país sem fronteiras” (Idem, p. 161), e Amílcar Cabral, para quem “toda a revolução é um acto de cultura” (Idem, p. 9), e aponta a revolta da voz e da letra, do pão e do diálogo entre as culturas.
Nesse processo de reconstrução, o homem não espera pelo milagre da chuva, “aprendeu a chover a sua subsistência, aprendeu a chover a sua própria vida. Apreendeu a realidade que o cerca e fez disso força e substância da sua fome”, como acentua Daniel Spínola (SPÍNOLA, 1998, p. 54), ao ler o canto segundo da obra, “Hoje chovia a chuva que não chove” (FORTES, 2001, pp. 125-137). O canto, com curtos poemas marcados de a a z, fala do povo que “chove no povoado a sua chuva de séculos”, gota a gota, letra a letra. É essa chuva revolucionária que, substancialmente, fará germinar o Arquipélago.
Atentemos novamente para o poema “Ilha” da epígrafe e a imagem do “tambor de som” associada ao trovão. Na verdade, é o tambor, um dos símbolos da identidade cabo-verdiana, “Que floresce/ A cabeça calva de Deus” (Idem, p. 101). O tambor dos sons e ritmos locais, o tambor da comunicabilidade, o tambor sagrado, o tambor feito da árvore. A paisagem das ilhas se modifica, portanto, a partir da união entre ‘árvore’ e ‘tambor’: “na árvore/ está o tambor/ E contra a erosão: a política da sedução” (Idem, p. 179). Por isso, em determinado momento, o sujeito lírico, em intertextualidade com José Craveirinha, extravasa todo um sentimento de cabo-verdianidade: “Hoje queria ser apenas tambor no coração do imbondeiro” (Idem, p. 158).
Enfim, os tambores que, no primeiro livro da trilogia de Corsino Fortes, erguiam “na colina/ Um coração de terra batida” (Idem, p. 17) reaparecem em Árvore & tambor, gritando como o trovão, marcando o processo de construção de uma independência e de uma identidade cabo-verdianas.
O último livro da trilogia épica, Pedras de sol & substância, explora, com maior plasticidade, elementos característicos dessa identidade, cuja substância está na própria pedra mineral de que são feitas as ilhas e nas pedras/ alicerces da cultura. Assim, ao longo da obra, lendo com Ana Mafalda Leite (2001), estão encenados: a alquimia e o poder de transformação da pedra, a arqueologia das ilhas e seu caráter sagrado, registros da história político-social do país, personagens importantes no processo de formação da cabo-verdianidade, o caldeamento cultural do Arquipélago, cores e formas do “cromatismo pictural das litografias de São Filipe” (LEITE, 2001, p. 301), festas e práticas tradicionais, a oralidade dos trovadores, a música e os ritmos locais.
Nesse último aspecto, destacamos a parte III do poema “Na morna! Na mazurca o trompete da evasão”, quando os conhecidos ventos que afligem o Arquipélago dançam novas coreografias com as músicas tradicionais. As pedras ganham movimento no cotidiano cheio de ritmos e traços crioulos. E a diáspora representa mais um canal de difusão da cultura:

Ó lestada de ser homem E mulher do harmatão
Ó rapsódia dos ventos d´aquém & além
Ventos que balançam o “erg” do equinócio
Quebrando a tíbia e a matriz dos dedos
Na morabeza da moção atlântica
Se a erosão é fogo no motor da evasão
A morna! o finançom nos conduz
                ao frigorífico da cultura
                das terras do fim do mundo
À guerra da pobreza
                No metrônomo do batuque
E ao dente de ouro da tabanca
                No mênstruo das salinas
À coladeira & funaná
                 na erupção do funacol
E ao rondó que renova o passo
            Como quem baila o landum
E ao kolá kolá
                        da morança e da melancolia
                        que salte & bate
                      bate & une
As coxas d´África às ancas da Macaronésia

E dão
        o grão a hóstia o jazz
        Da(s) nossa(s) genealogia(s)
E dançam & tecem
                        na virilha dos continentes
                        o seu pano inconsútil
E constroem
                        a catedral do ego
                           com  a ressaca das raízes abruptas

                                        (FORTES, 2001, pp. 238-239)
 
A composição poética de Corsino Fortes traz ao leitor, portanto, uma estrutura épica, com forma e conteúdo dinâmicos, que problematiza a história pátria e amplia a perspectiva de um novo espaço de construção da cabo-verdianidade.

Para Ana Mafalda Leite, a obra A cabeça calva de Deus se apresenta “como uma trilogia fundacional e épica da história do país (…) em que, simultaneamente, Cabo Verde também de novo nasce, como terra, como país, como pátria, como identidade e como cultura, fora e dentro do poema” (LEITE, 2001, p. 302).

 

Assim, a obra de Corsino Fortes torna-se uma experiência mais ampla, já que revela um compromisso ético e um pacto com a transformação. Preocupado com as soluções estéticas, com a arquitetura do texto, o poeta reescreve ritmos e fonemas da língua portuguesa e do crioulo cabo-verdiano, construindo uma poética semeadora da “cabeça calva de Deus”.

 

                                      ***

O livro África & Brasil: letras em laços, volume 2, organizado pelas professoras Carmen Tindo Secco, Maria do Carmo Sepúlveda e Maria Teresa Salgado, acaba de sair pela Yendis Editora. Pretende oferecer aos leitores uma visão panorâmica das literaturas produzidas nos países africanos de língua oficial portuguesa.

Pesquisadores brasileiros analisaram produções literárias de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Segundo Pires Laranjeira (Univ. de Coimbra), “trata-se de um instrumento de trabalho e estudo, idealizado e começado há algum tempo, que se torna, por maioria de razões, inequivocamente útil e propício à atual demanda de materiais de cultura e ciência relacionados com África, que a legislação do Governo Lula, em 2003, tem solicitado para o municiamento cultural e identitário da sociedade brasileira como um todo.”
 
Referências bibliográficas deste artigo:

ALMADA, José Luís Hopffer. “O papel do milho na simbolização da identidade do cabo-verdiano”. In: VEIGA, Manuel (coord.). Cabo Verde: insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998. p. 63-80.                                                                                                                                                                                                                        ENTREVISTA COM CORSINO FORTES, “A cabeça calva de Deus”. In: Revista África Hoje, n. 159, nov./2001. Acesso através do endereço eletrônico http://canais.sapo.pt/educacao em 2 de dezembro de 2008.
FORTES, Corsino. A cabeça calva de Deus: Pão & fonema; Árvore & tambor; Pedras de sol & substância. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.
GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008.
LABAN, Michel. Cabo Verde: encontro com escritores. Porto: Fundação Engº. António de Almeida, 1992, 2 v.  
LEITE, Ana Mafalda. A modalização épica nas literaturas africanas. Lisboa: Vega, 1995.
_____. “A cabeça calva de Deus, uma trilogia épica fundacional”. In: FORTES, Corsino. A cabeça calva de Deus: Pão & fonema; Árvore & tambor; Pedras de sol & substância. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001. p. 293-302.
LIMA, Mesquitela. “Pão & fonema ou a odisséia de um povo”. In: FORTES, Corsino. Pão & fonema. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1980. p. 63-97.
LOPES, Manuel. Os flagelados do vento leste. São Paulo: Ática, 1979.
MARIANO, Gabriel. Cultura caboverdeana: ensaios. Lisboa: Vega, 1991.
SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “Mar, memória e metapoesia na lírica caboverdiana”. In: Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: volume II: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. p. 9-27.
SPÍNOLA, Daniel. “Sementeira, chuva e seca”. In: VEIGA, Manuel (coord.). Cabo Verde: insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998. p. 47-56.

 

O Buala apresenta parte de um dos capítulos do livro África & Brasil: letras em laços, volume 2, sobre o poeta cabo-verdiano Corsino Fortes.

por Cláudia Fabiana
Cara a cara | 28 Junho 2010 | Corsino Fortes, Literatura