Vendavais

Já se fez tarde e o Anjo benjaminiano, o seu “Anjo do Progresso”, já não é o de Paul Klee, jaz ele mesmo em cacos no meio de destroços seculares. O seu rosto distorcido e as suas asas quebradas estão manchados de sangue vermelho. É claro que falhou completamente não só em conter o vento que soprava do Paraíso, mas outro tipo de vendaval, mais capaz de vir do Inferno, ou daquilo que passa por Inferno nos nossos dias, a perversão humana, demasiado humana, dos poderosos, na sua investida para nos reduzir, a todos nós outros, à condição de escravos ou animais. Sim, já se fez tarde, mas esta alegoria que poderia parecer exagerada na sua (des-)apropriação da imagem famosa de Walter Benjamin, nada mais é que um simples reflexo do modo como por toda a Europa os ventos dos nacionalismos xenófobos, do fascismo e do racismo ameaçam a possibilidade de um futuro que, mesmo que já ninguém acredite numa versão ingénua de progresso, mesmo assim deveria ser melhor, menos manchado pela desigualdade e injustiça do passado.

Um dos exemplos mais elucidativos – embora de modo algum único – é o escândalo Windrush, que veio a público de forma explosiva o ano passado no Reino Unido, na sequência das reportagens investigativas de jornalistas do GuardianO primeiro relato, publicado por Amelia Gentleman a 9 de Abril de 2018, baseava-se em meses longos de investigação. Ora, isso era apenas um início, e, apesar de um fluxo crescente de provas claras e acusativas, incluindo um relatório do Parlamento, não se deslumbra ainda qualquer conclusão. David Olusoga foi bastante sucinto ao afirmar, “O escândalo Windrush é cru, chocante, e continua”. O relatório publicado pela Câmara de Comunsnão deixa qualquer dúvida sobre a seriedade da questão e a responsabilidade do governo: “O escândalo Windrush demonstra uma combinação de falta de interesse nas consequências reais das diretivas sobre imigração do Ministério do Interior com uma falha sistémica de manter dados corretos, causando que muitos indivíduos com cidadania britânica, ou com o direito a residir no Reino Unido, não tenham a documentação necessária para o provar. O Ministério do Interior tinha conhecimento desta situação através de inquéritos feitos por cidadãos e os seus deputados parlamentares. Não obstante, o Ministério faltou ao seu dever de proteger os direitos de residência, trabalho, e acesso a serviços e benefícios dos indivíduos, quando elaborou e implementou as suas diretivas sobre imigração”.
Infelizmente há muitos outros exemplos, e parece que cada dia nos traz mais provas de como as nossas sociedades não só se deixaram aprisionar pelo – como até parecem regozijar com o – completo fracasso ético que é o racismo. Como Roberto Vecchi afirmou: “A decadência não é só uma forma própria de uma certa vertente da modernidade. É também um modo de lançar um olhar retrospetivo em relação a um passado carregado e condicionador”. Ao que eu adicionaria, porque penso ser crucial: a modernidade, tal como a entendemos, não pode nunca desassociar-se quer do espírito igualitário do Iluminismo, quer da ascensão do capitalismo; um capitalismo que não só se impôs desde o início, mas que sempre dissimulou o quanto pervertia e denegava esses mesmos ideais que lhe permitiam alastrar pelo mundo fora.

Mínimos detalhes de paisagem | 2015 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)Mínimos detalhes de paisagem | 2015 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)
Susan Buck-Morss demonstrou este paradoxo magistralmente no seu ensaio “Hegel and Haiti”: “A partir do século XVIII, a escravatura tornara-se na metáfora de base da filosofia política ocidental, conotando todo o Mal das relações de poder. Liberdade, o seu antónimo conceptual, era considerada pelos pensadores do Iluminismo como o mais alto e universal dos valores. No entanto, esta metáfora política começou a enraizar-se justamente na altura em que a prática económica da escravatura – o processo sistemático e extremamente sofisticado da escravização capitalista de populações não-Europeias como força de trabalho nas colónias – estava a aumentar em termos quantitativos e a intensificar-se em termos qualitativos, chegando ao ponto em que, a meio do século XVIII, subscrevia o sistema económico ocidental na sua totalidade …” (1).
E hoje? Hoje, esse paradoxo nem sequer se assume como tal, na maneira em como deslizámos cada vez mais profundamente, e de forma mais ou menos inconsciente, para uma forma de capitalismo financeiro e espectral. Poderíamos, deveríamos, abordar esta condição – só aparentemente estranha – a partir de uma perspetiva teórica tal como praticada por Jacques Derrida, Joseph Vogl e outros o fizeram já (2). Mas não devemos nunca perder de vista aqueles cujas vidas são diretamente afetadas pelos processos, cada vez mais elaborados, de exclusão que, como sempre, se baseiam em fatores de classe, género e raça. Nessa perspetiva, e para manter o foco no âmbito dos eventos recentes na Inglaterra, devemos entender a tragédia do incêndio na Torre Grenfell em Londres a 14 de Junho de 2017, que matou pelo menos 72 pessoas e deixou outras tantas feridas, como estando ligada, embora seja diferente, ao escândalo Windrush.
Em ambos os casos podem-se ver padrões de exclusão e desigualdade semelhantes, em que etnicidade e classe estão estreitamente ligadas. Outra conexão impressionante, se bem que não inesperada, é o facto de que embora os dois casos tenham comovido uma nação inteira com a extensão da tragédia, ainda ninguém foi responsabilizado; além disso, as medidas anunciadas para aliviar a situação das vítimas, na maioria ainda não foram implementadas: um grande número de edifícios continua com revestimento exterior em materiais perigosos semelhantes. Tal como Daniel Renwick, um membro da comunidade, afirmou no segundo aniversário da hecatombe, “As feridas abertas há dois anos só se tornaram mais profundas. Centenas de milhares continuam em risco mortal”. De modo semelhante, apesar do escândalo Windrush se ter espalhado nos cabeçalhos e páginas da imprensa diária e nos ecrãs televisivos, o Ministério do Interior, responsável pela deportação forçada de pelo menos 83 pessoas, na sua maioria cidadãos britânicos, planeava retomar os voos extraordinários de deportação em Fevereiro de 2019, antes que qualquer esquema de compensação às vítimas iniciais tivesse sequer começado (3).
Embora ninguém tenha qualquer dúvida de que tanto a Inglaterra como a Europa no seu conjunto já há muito se encontram numa era pós-imperial do ponto de vista cronológico, quando se trata de ação política e as suas consequências, ou dos imaginários nacionais, apesar de alguns ganhos e algumas tentativas de instaurar noções de cidadania diferentes e mais abrangentes, estamos a regressar no tempo de forma acelerada, como se fossemos prisioneiros de algum Tardis malévolo propulsionado pela ganância sem freio que dá pelo nome de nostalgia imperial. O processo desencadeado pelo Brexit, no entanto, não é causa, mas sim um mero sintoma, do mal-estar profundo que assola a Europa no presente momento.
E aquilo para que os fracassos consecutivos em remediar as vidas daqueles mais diretamente afectados pelas tragédias da Torre Grenfell e do escândalo Windrush, os fracassos na determinação efetiva de qualquer responsabilidade ou de iniciar medidas que ajudem a evitar que os mesmos crimes se repitam, apontam, não é qualquer falha temporária como resultado de uma turpitude individual, nem de defeitos morais ou qualquer outra aberração, mas sim um aspeto fundacional e sistémico das sociedades europeias modernas, construídas com base nas formas mais cruéis de expropriação humana e desumanização. Os responsáveis pela falta de prevenção de outros possíveis incêndios catastróficos futuros, assim como aqueles que estão prontos a retomar as deportações forçadas, não se desviam das normas, seja de que forma for; pelo contrário, assumem-nas e encarnam-nas. Quando o presente inquilino do Salão Oval, muito recentemente, e da maneira mais pública e mediática, deu expressão a opiniões racistas em relação a quatro mulheres deputadas em Washington, D.C. (4), não estava ser impulsivo, nem mal orientado, e também não padecia de qualquer forma de surto psicótico. Além de cortejar, com consciência e sucesso, o voto neonazi e de outros adeptos da supremacia branca diretamente, o que o ‘indivíduo número 1’ – para usar a terminologia do relatório do Procurador Extraordinário, Robert Mueller – fez, foi simplesmente dar voz aos pensamentos e sentimentos de grande parte – senão a maioria até – dos ‘cidadãos’ brancos e conservadores.
O voto que aprovou a resolução, na Câmara de Representantes, de condenar o Presidente dos EUA devido aos seus “comentários racistas que legitimam o medo de, e o ódio contra, novos Americanos e pessoas de cor”, era fácil de prever (5). Tal como a imagem foi nítida, e a mensagem clara, do facto de que apenas 4 de 191 deputados do partido Republicano terem votado a favor. Nas palavras dos repórteres do Washington Post: “A imagem do voto com 240 a favor e 187 contra foi impressionante: um caucus Democrático diversificado classificou as palavras do Presidente como uma afronta para com os milhões de Americanos e descendentes de imigrantes, enquanto que os legisladores Republicanos – na sua vasta maioria homens brancos – apoiou Trump …” (6). Entretanto, no Reino Unido, parece que a Primeira Ministra atual foi o único chefe de governo em função a criticar abertamente aquelas mensagens racistas. Só que as diretivas com o nome de “Ambiente Hostil” que levaram às deportações forçadas tinham sido aprovadas pela mesma pessoa quando na altura era Ministra do Interior. Claro…
Já é tarde, tão, tão tarde. Mas nem tudo está perdido ainda. Mesmo no mais escuro destes momentos, quando se pode sentir desespero sobre a condição humana, o aumento da resistência ao racismo endémico das nossas sociedades capitalistas modernas oferece esperança. Das várias iniciativas que surgiram do escândalo Windrush, um exemplo é o volume de ensaios organizado por Charlie Brinkhurst-Cuff, Mother Countries: Real Stories of the Windrush Children (London, 2019). Eis o que ela nos diz na Introdução: “A escravatura negra é o contexto mais geral de qualquer livro que se debruce sobre a História da Geração Windrush… Mas, enquanto que muitos dos nossos antepassados continuarão silenciados e anónimos para sempre, des-lembrados nos livros de História escritos pelo mesmo tipo de homens que era o seu ‘dono’, tenho sorte agora, como sua descendente, de ser capaz de ajudar a contar o futuro da sua história”. São histórias como estas que nos dão esperança de que outros ventos possam em breve soprar para varrer esses resquícios de Império para o caixote de lixo da História onde pertencem, ou para o monte de destroços que Benjamin imaginou para nós. Esses ventos, sim poderão então ser vistos como soprando do Paraíso.
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(1) Susan Buck-Morss. “Hegel and Haiti”. Critical Inquiry 26 (2000): 821.
(2) Ver, por exemplo, Jacques Derrida, Spectres de Marx (Paris: Seuil, 1993 [Espectros de Marx, Trad. Annamaria Skinner, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994]) e Joseph Vogl, Das Gespenst des Kapitals (Zürich: Diaphanes Verlag, 2010).
(3) Veja-se “New Jamaica Deportation Flights attacked as ‘insult to Windrush victims’”, The Observer, 3 February 2019.
(4) Ver Mallory Simon e Sara Sidner, “Trump said ‘many people agree’ with his racist tweets. These white supremacists certainly do”. CNN, 16 July 2019.
(5) Ver John Wagner, Mike DeBonis, and Colby Itkowitz, “A divided House votes for resolution condemning Trump’s racist remarks”, Washinton Post, 16 July 2019.
(6) Mike DeBonis, John Wagner, and Rachael Bade, “A divided House votes for resolution condemning Trump’s racist remarks”, Washington Post, 17 July 2019.
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por Paulo de Medeiros
A ler | 20 Julho 2019 | Memoirs, Walter Benjamin, Windrush