Resenha a Geometrias da Memória: configurações pós-coloniais

O livro Geometrias da Memória: configurações pós-coloniais é o primeiro volume da série “Memoirs – Filhos de Império”, do grupo de pesquisa de mesmo nome MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memorias Europeias financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa (ERC). Organizado por António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, o livro interroga o lugar da memória e da pós memória colonial na narrativa da historia europeia.

O prefácio do livro evoca a criação da Comunidade Europeia e prossegue até aos debates atuais para questionar os discursos sobre a unidade e a paz na Europa. Ora, nesses discursos sempre se omite de maneira voluntária o Outro, aquele que provém da historia extraterritorial da Europa e que foi decisivo para a sua construção.

Os organizadores do livro apelam para um exercício de memória, onde a articulação a uma reflexão pós-colonial permitiria fazer justiça e reconstruir a narrativa da relação da Europa com os seus diversos Outros. O projeto abarca Portugal, França e Bélgica na sua articulação com a memória colonial e o processo de descolonização da geração seguinte (os detentores da pós memória).

Como num prolongamento do prefácio, o artigo de Margarida Calafate Ribeiro traz dados históricos muito interessantes sobre as Grandes Guerras e a reconstrução da Europa. A investigadora explica a utopia de uma Europa unida face à realidade de uma diversidade difícil de compreender. Com o apoio de textos atuais de intelectuais de vários países, trata da questão do Islão, num primeiro momento, para explicar o medo desse outro sobre quem falamos sem parar e a quem nunca demos a chance de se expressar. Num segundo momento, Ribeiro toca no tema da literatura dos retornados, os portugueses obrigados a deixar a África (por vezes sua terra natal) e retornar a um território hostil e estrangeiro. Nesse aspecto a literatura de testemunho é utilizada como um pacto de responsabilidade com a história : a geração seguinte busca as respostas às questões de seus pais, um trabalho de síntese devido ao excesso de memória pessoal e a falta de uma memoria pública dividida. Finalmente, a autora busca o ponto comum dessas histórias, que se localizaria no que ela chama de fratura colonial e que só pode ser reparada pelo exercício da memória. Conclui a autora que só assim será possível negociar o multiculturalismo europeu à través de uma historia plural, de uma comunidade do tamanho do mundo.

António Sousa Ribeiro toca a questão do reverso da modernidade, o da violência absoluta : o holocausto – que se comunicaria diretamente com a violência colonial. O autor elabora um percurso de análise onde mostra como a criação do conceito de raça e a inferiorização do outro, quando do colonialismo, estão intrinsicamente ligados à ideologia antissemítica. António Ribeiro cita o escritor pacifista Romain Rolland para explicar que a experiência da violência das guerras coloniais está na raiz do processo de desumanização que gerou os dramas da Segunda Guerra Mundial. Seguindo os estudos de Paul Gilroy, Ribeiro propõe um estudo comparativo entre Jean Améry, especialista do pós-holocausto e sobrevivente, e Franz Fanon, autor chave do pensamento pós-colonial. Assim, Colonização e Holocausto seriam superpostos e não separados na história. A violência redentora é a violência revolucionária, onde o ser humano se afirma apesar de todo discurso negativo que retira sua humanidade – uma utopia transformadora.

O artigo de Miguel Bandeira Jerónimo revisita os lutos inacabados do Império. Assim como António Ribeiro, ele questiona os laços entre os vários genocídios, desde as políticas raciais da época colonial até a barbárie do Holocausto. Ele critica as leis e celebrações que querem regular e governar a memória coletiva de maneira a justificar o passado. Ele coloca em evidência vários passados para interpretar vários presentes : ele retoma o caso alemão na Namíbia – e a criação de um código abstrato de maldade – que vai aparecer também no holocausto. O autor trata também da situação da Holanda e a reconstrução de uma memória ligada aos crimes ocorridos na Indonésia pelas narrativas individuais e de grupos específicos. A Itália afronta seu passado quando oferece uma reparação à Líbia, depois de trinta anos de violências coloniais, e à Etiópia, pelo uso de armas químicas.  A ideia de que a colônia era um laboratório em ligação com o fascismo é cada vez mais explorada. O Congo Belga e o papel da Bélgica nas políticas raciais que engendraram o genocídio ruandês, ou as culpas do Reino Unido no que ocorreu no Quênia, assim como a guerra de memórias que vive a França para o estabelecimento de sua historiografia, em especial no caso da Argélia. Esses são alguns exemplos dados pelo autor que termina por dizer que Portugal ainda encontra muitos obstáculos para desmitificar sua historia colonial.

            Na continuação, António Pinto Ribeiro provoca dizendo que descolonizar os museus é a única opção para sua sobrevivência. Como instituição europeia, o museu nasce para materializar a ocupação colonial e neutralizar a cultura. Assim, se a apreciação de uma obra de arte se modifica ao longo do tempo, outrora o nu frontal de Olympia no quadro de Manet chocava, o que surpreende hoje é a mulher negra no plano de fundo em situação de escravismo. O nascimento de alguns museus na América são evocados como símbolos de resistência das minorias para transmitir conhecimentos e lutar por direitos. Uma batalha para que o Outro não tenha que ser apenas uma mercadoria, como ocorre até hoje com a arte africana.  Os países que foram colonizados e tiveram regimes ditatoriais, como o Brasil, Chile e Argentina, criaram museus com arquivos de ex-colonizados. Dessa maneira, ele propõe uma descolonização dos museus, com as vozes de quem faz o objeto e a história.

Helder Macedo inaugura o segundo Umbral do livro, dedicado à alteridade. Com um texto engenhoso e cheio de humor e sabedoria, ele discute como poderíamos “reconhecer o desconhecido”. Um exercício que os antigos exploradores tiveram de fazer para poder entender e se situar diante do novo mundo descoberto. O autor cita várias cartas, epopeias e fatos históricos que ilustram os problemas da comunicação intercultural – e como hoje podemos reconhecer a diferença e concebê-la como parte de nossas singularidades.

Na mesma perspectiva, Isabel Castro Henriques explica a construção da alteridade negativa : a maneira em que o Mesmo se consolida ao mesmo tempo em que exclui o Outro da historia. Com a ajuda da historiografia e das ciências, a autora analisa a evolução de conceitos e noções utilizadas para desqualificar o outro (primitivo ou civilizado). Ela presta uma particular atenção a palavra resistência e sua evolução nas sociedades africanas, para finalmente atacar o conceito de pós-colonial. Para ela este seria uma armadilha ideológica que garante a consolidação de hierarquias da globalização - uma vez que o passado se constrói pelo presente, que seleciona por sua vez o que será história ou não.

Ana Paula Ferreira faz uma leitura da obra de Boaventura Sousa Santos para defender a  articulação de um pós-colonialismo do sul. O espaço da lusofonia deve participar do debate da hispanofonia, da francofonia e da anglofonia para poder assim descolonizar o pensamento. Ferreira utiliza a relação entre Próspero e Caliban para mobilizar solidariedades anti-coloniais e mobiliza o conceito de « intertraduzibilidade » para chegar a uma compreensão mútua dos movimentos subalternos. Um texto cheio de energia que abre caminho para a análise de poetas feita por Laura Cavalcante Padilha. A autora relaciona as influências entre a África e as Américas pela voz escrita de escritores pouco (re)conhecidos pelos leitores de língua portuguesa no caminho do Atlântico Negro.

            Nessa linha de pensamento temos o artigo de Roberto Vecchi, que apresenta as subalternidades do Atlântico Sul. À partir de uma análise do trafico de escravos (que pouco puderam resistir e emitir murmúrios para contar contra-historias não hegemônicas), ele retraça a história do Brasil e explica, de maneira crítica, como a sociedade brasileira não conseguiu fazer a transição de colônia a Nação e dar uma plena cidadania a todos seus habitantes. Um artigo engajado e necessário para discutirmos o Brasil contemporâneo.

            Paulo de Medeiros discute as relações das literaturas lusófonas e os sistemas de literatura mundo. Ele começa por uma leitura crítica do que chama de três fetiches da crítica pós-colonial : a periferia, a identidade nacional e a língua. Utilizando o conceito de « semi-periferia » de Immanuel Wallerstein, ele discute as lusofonias e fala da importância da literatura africana na promoção da língua portuguesa no contexto mundial. Dessa maneira, o autor pensa que o comparatismo intra e extra lusofonia pode ser uma das chaves para inscrever as literaturas escritas em português nos vários sistemas globais de literatura.

            Francisco Noa, por sua vez, analisa um caso particular da lusofonia e descreve a relação entre literatura e poder em Moçambique. Ele começar por mostrar como o racismo e a repressão contra os autores existia de maneira nítida no período colonial. Nas independências o paradigma muda, e a utopia e o nacionalismo são colocados em evidência: a literatura torna-se um território de afirmação individual e coletiva : um território de resistência. Atualmente, avalia o autor, no Moçambique, a literatura é transnacional e continua a atuar como um contra-poder.

A terceira parte do livro começa por um artigo de Fabrice Schurmans. O autor problematiza os discursos da colonialidade. A partir de discursos do Sul ancorados no pensamento do Norte. O Norte é o produtor do “Texto”, a grande narrativa simplificadora, acessível e amplamente difundida. O “Texto” contamina não somente os textos especializados, como os analisados pelo autor (Albert Memmi, Hélé Béji e Stephen Smith), mas também as mídias (ele nos explica as simetrias que a mídia pode fazer ao retratar o drama do terremoto no Haiti com as representações que temos da África – são locus intercambiáveis). Os escritos desses três autores permitiria, segundo o autor, de transformar um só discurso em realidade e de reforçar “o Texto”  pela repetição e retomada sistemáticas de um dispositivo sempre disponível. Assim, combater essas ideias fáceis e argumentar contra “o Texto”, desconstruir e fabricar novas narrativas, é ainda um desafio : temos, como afirma Schurmans, intelectuais que fazem isso (Mabeko-Tali, Mamdani, M’Bokolo, Ki-Zerbo), mas a complexidade de seus textos não permite de confrontá-los diretamente com “o Texto”.

            Catarina Martins examina os feminismos entre o Norte e a África. Ela critica o feminismo imperialista do Ocidente e analisa o trabalho de três feministas africanas e suas contribuições para o debate atual. Amina Mama, Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyewùmi desconstroem os conceitos do feminismo do norte para combater o processo de culturalização das “Mulheres dos Outros”. A autora critica igualemnte o programa Women in Development (WID), que pratica um “feminismo de Estado e Imperialista”, apagando os lugares de lutas legítimas da mulher africana. Ela critica igualmente o feminismo etnográfico, que pode idealizar um período pré-colonial e apagar questões importantes. Finalmente, Martins apresenta um feminismo feito em África e de dimensão transnacional : crítico, político e ativista, produtor de conhecimentos que os países do Norte deveriam prestar mais atenção.

            Júlia Garraio aborda uma exposição de fotografias que ocorreu em Lisboa em finais de 2015 e princípio de 2016 : Retornar : Traços da memória. Ela analisa o objetivo de se apresentar fotos sem ter recurso ao texto : dessa maneira somos obrigados a construir um sentido, uma narrativa para entender o que ocorreu no período colonial, não podemos ter uma abordagem acrítica da exposição. O corpo da mulher negra existe como um lugar de memória do colonialismo, ele é um dos locais de penetração e violação coloniais (para além do espaço geográfico e cultural). A exposição tinha como objetivo igualmente de questionar a “não historia” dos retornados e oferecer uma visão crítica do colonialismo português entre o sofrimento dos retornados, mas sem esquecer as violências que davam o suporte para a dominação colonial.

No artigo seguinte, Bruno Sena Martins tenta restabelecer as memórias das guerras coloniais, um “segredo público”, a partir do testemunho de vários Deficientes das Forças Armadas. O silêncio que pesa sobre as guerras coloniais deixa as testemunhas numa solidão de onde torna-se impossível comunicar o passado. Não há tampouco a empatia do público para escutar suas historias. Nesse artigo Martins busca fazer do corpo um lugar de memória.

João Paulo Borges Coelho, escritor e historiador moçambicano de renome, retrabalha as memórias das guerras moçambicanas, Ele explica como ainda não foi possível contar a experiência das duas guerras que duraram de 1964-1992, sendo a primeira pela independência, que acaba em 1975. E a segunda pelo poder, que acaba em um acordo de paz da ONU em 1992. O autor começa por discutir o que é uma memória, ou seja, uma socialização de lembranças. Ele explica em seguida a utilização política da memória – uma gestão simples e não contraditória, que elimina todo discurso concorrente. Ele critica a meta narrativa criada pela Frelimo para elaborar a historia da independência e questiona os limites do silencio sobre a guerra civil. Esse silêncio, em busca de consolidar os laços de paz, é segundo o autor um “silencio reversível” (Paul Ricoeur). A tarefa de contar essas historias recai hoje em dois projetos em curso (Mbita et Aluka). O autor termina por se perguntar se esses projetos existem para recuperar uma meta narrativa e legitimar o poder dos que controlam o país.

No decorrer da leitura somos obrigados a repensar tudo o que sabemos ou pensávamos saber sobre memória e colonização. Ancorado no presente e informado pelo passado, cada artigo contribui de maneira particular a desconstruir a história e nos mostra como é possível contar outra historia segundo vários pontos de vista. Um livro necessário não apenas para Portugal, mas para todos os países que deverão se confrontar com seu passado colonial de maneira justa e honesta.

 

António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro (org),  Geometrias da Memória: configurações pós-coloniais, Editora Afrontamento, Porto, Portugal, 2016, 348p.

 

por Fernanda Vilar
A ler | 28 Abril 2017 | configurações pós-coloniais, Margarida Calafate Ribeiro, memória