Porquê Antropoceno? - projeto ANTROPOCENAS

[PARA LER ESTE TEXTO RECOMENDO QUE IMAGINEM UMA PERFURADORA INDUSTRIAL COMENDO A CROSTA TERRESTRE ATÉ AO MANTO. SOM DE EXTRAÇÃO VITAL]

Antropoceno é um conceito introduzido recentemente em painéis internacionais de discussão sobre alterações climáticas e que tenta problematizar a relação entre os seres humanos e o clima (ou o “ambiente” que os envolve), dizendo que o clima que temos hoje é o resultado de atividades humanas. É talvez o tema quente desta década, e quente não é uma metáfora já que, em parte, a expressão mais aguda do Antropoceno se encontraria no “aquecimento global” dos últimos anos e seus problemas subsequentes. Sugere-se que é possível colocar numa perspectiva nova o que aconteceu na história geológica do planeta e dizer que, apesar da Terra continuar a girar em torno do Sol, são os humanos que a fazem girar em torno do que for necessário. Que a temperatura não é um atributo divino. Que a geologia é humana. Que não só não somos prisioneiros do clima como somos também seus maestros. “Antropo” de “humano”. E “ceno” de cena ou de época geológica. Antropo-ceno, a época ou cena geológica dos humanos.
Bem vindes ao Antropoceno. Tudo o que acontece agora, neste exato momento, seria/é/foi/será determinado pela cena dos humanos-anas-anes. Mas para quem e de onde é apresentada esta cena-ceno? Quem pintou o quadro? Se Antropoceno é/seria um nome que nos permite olhar a crise climática que vivemos atualmente, ele também pressupõe uma mudança em relação à convenção do Holoceno (holo de all?) uma época que durou milhões e milhões de anos for all. Portanto, a humanidade enquanto espécie é perspectivada como força ou “agente geológico” primordial em vez de holo, em vez de todos. Uma espécie de nova modernidade ao contrário.
E se é verdade que Antropos é esta espécie (de) extra-terrestre, não podemos negar que todos os restantes seres intra-terrestres são afetados por Antropos. É justamente a sua força de afetar que passa a estar concetualizada aqui. Assim, os critérios para a sua avaliação científica, prendem-se com o aumento exponencial, desregrado e descontrolado da emissão de gases de carbono, do aumento do nível dos mares, do aumento global da temperatura, da velocidade do degelo, da extinção das espécies, da acidificação dos oceanos, do aumento da população humana, do aumento de restaurantes Mcdonald’s, etc, cerca de 20 marcadores que acelerariam a pique e todos ao mesmo tempo, traduzindo uma excelente ideia de coreografia sem forma, já que a sincronia comportaria uma perda dos valores de referência para a análise, perdendo a capacidade de entender o movimento como acelerado. Portanto, todos os gráficos sobre o Antropoceno são iguais, o humano dissolvido em grandes e graves curvas de aceleração:
HUMMMMMMMMMMMM MMMMMAAAANNNNNNNOOOO 
[a perfuradora avança sobre uma reserva de minério no fundo do mar]

still de 細江英公 (Heso to genbaku Navel and A-Bomb) de 「へそと原爆」 (Eikoh Hosoe e Tatsumi Hijikata), 1960still de 細江英公 (Heso to genbaku Navel and A-Bomb) de 「へそと原爆」 (Eikoh Hosoe e Tatsumi Hijikata), 1960

 

[PARA LER ESTE TEXTO RECOMENDO QUE IMAGINEM UM FUNGO ESPALHADO NA ÁGUA DO MAR. ESTA IMAGEM NÃO TEM SOM. APENAS UMA COR BRANCA DIFUSA ENTRE ÁGUAS]

Se todos os gráficos do Antropoceno são iguais, comecemos então sem gráficos. Eu gostaria de invocar uma imagem de comunidades indígenas de Dakota do Norte a carregarem uma faixa onde se lê “SOMOS ÁGUA” numa manifestação contra a construção de um oleoduto em Standing Rock nos Estados Unidos – um dos países mais fortes da Antropocena – que foi recentemente aprovada por Donald Trump – o presidente da Antropocena. Ou um vídeo do mesmo contexto, de um ativista a ser entrevistado sobre Standing Rock, e que é subitamente cortado pelo avanço de uma manada de búfalos que se juntam à manifestação, e marcham sobre as forças policiais. Se fosse possível fazer equivaler o que acontece no plano ambiental-geográfico (também chamado plano de natureza) e o que acontece no plano humano (também considerado plano de cultura), essa coincidência entre plano natural e cultural seria dada pelo Antropoceno, a ideia de uma barbárie por vir desse encontro impossível para o olho ocidental entre natureza e cultura. Mas onde estão os búfalos de Standing Rock nesta equação? Onde colocaríamos a cooperação entre os 370 milhões de indígenas espalhados pelo planeta – cerca 5% da população terrestre – e que se posicionam contra grandes projetos de extração de minério, de petróleo, liderados por extra-terrestres – juntamente com os bilhões de animais infra-humanos escravizados pela Antropocena?
Recentemente, o debate científico sobre o Antropoceno migrou do campo das ciências ditas “naturais” para o campo das ciências ditas “sociais”. Ao fazer essa migração, alguns autores preferiram chamar este quadro de Capitaloceno por entenderem que o humano como extra-terrestre é algo que não precisa ser mais incentivado, que a espécie não deve ser confundida com especialidade. Portanto, estamos na Capitalocena, trata-se de um problema do capitalismo, o capitalismo gera uma ideia de humanidade nefasta. Reconhece-se que o capitalismo se traduz mais diretamente pela extração sem limites da Terra e que esta é olhada como mero reservatório de recursos para uso humano, e que é esse Antropos que está aqui em cena. Assume-se que a crise climática vem da transação, da compra e da venda alucinada de corpos não-humanos, infra-humanos, e desumanizados, das mercadorias que falam e das que não falam, da propriedade privada.
    Nesse sentido, talvez seja mais adequado dizer que o marco temporal para o impacto humano no ambiente seria iniciado com o projeto colonial, estabelecendo como marco histórico a chegada às Américas no século XVI. O início do capitalismo: o colonialismo. Colonialoceno ou Brancosupremaceno (A cena da supremacia branca): as primeiras plantas e sementes transacionadas entre continentes em larga escala, a logística dos navios carregados de corpos negros despossuídos de humanidade, a dizimação de comunidades indígenas pelo contato com os brancos, os primeiros grandes desmatamentos, o ápice da monocultura. E no meio deste quadro, um cogumelo chamado “podridão branca” (white rot) que come a madeira dos navios britânicos durante as suas viagens pelos oceanos, e que cria um verdadeiro problema ao avanço da colonização branca. No entanto, mesmo o protagonismo deste possível Fungoceno é tapado pela Lua Branca dos Colonizadores, pois até no campo das ideias o fim do mundo deve ser assinado por brancos. Séculos mais tarde, em 2017, é no mínimo curioso que este mesmo cogumelo comece a ser usado em experiências científicas como solução ecológica para comer os abundantes microplásticos que infestam os mares globais do Colonialoceno.

still de 細江英公 (Heso to genbaku Navel and A-Bomb) de 「へそと原爆」 (Eikoh Hosoe e Tatsumi Hijikata), 1960still de 細江英公 (Heso to genbaku Navel and A-Bomb) de 「へそと原爆」 (Eikoh Hosoe e Tatsumi Hijikata), 1960

 

[AGORA IMAGINEM UM DEDO NO UMBIGO ESCAVANDO O CENTRO DOS CORPOS]

Uma das coisas que me fez ir ao encontro do estudo do Antropoceno, foi a necessidade de fazer uma antropologia reversa da cultura europeia onde cresci, dominada pela abstração da cor branca, pela (sua) razão anexada a uma noção de representatividade universal, assim como a normas, instituições e fundamentos do pensamento que pretendem organizar e sistematizar as relações entres povos. Estar no topo de uma hierarquia económica, social, geográfica e política, tornou-se um ato paradoxal, em parte por ser mulher e lésbica (o pior dos lugares do melhor dos lugares de fala), em parte por entender que é no universalismo que reside o cerne de todos os problemas. Ao ler alguma da bibliografia que tem percorrido a esfera das ciências sociais e em particular a antropologia em torno do tema do Antropoceno, percebi que corríamos o risco de nos dirigir novamente a uma ideia de universal, embora desta vez anexada a uma ideia de responsabilidade da espécie e de crise universal/total.
Nesse sentido, acredito que a politização do Antropoceno se torna urgente, pois implica re-significar a noção de humano e abrir o tema do desequilíbrio ecológico a uma reflexão mais abrangente sobre as relações entre humanidade e poder, humanidade e natureza, ecologia e política. Politizar o Antropoceno implica mudar as palavras ou, pelo menos, re-nomear. Mas penso que é também um gesto de marcar posições não vistas, e de começar a reflexão a partir de uma escuta dessas posições. Por exemplo, escutar um xamã yanomami (David Kopenawa) sobre a noção de ecologia e saber que esta não foi inventada por brancos, tal como surge no livro A queda do céu escrito em aliança com o antropólogo Bruce Albert: “Antes, a gente não pensava: ‘vamos proteger a floresta!’ Pensávamos que nossos espíritos xamânicos nos protegiam. Só isso. Esses espíritos foram os primeiros a possuir a ‘ecologia’. Eles afugentam os espíritos maléficos, impedem a chuva de cair sem parar, calam o trovão (…) e, quando o céu ameaça desabar, são eles que falam à ‘ecologia’. Eles protegem o céu quando este quer se transformar, quando o mundo quer escurecer. Eles são a ‘ecologia’ e por isso impedem essas coisas. Nós tínhamos essas palavras desde sempre, mas vocês, os brancos, inventaram a ‘ecologia’ e então essas palavras foram reveladas e propagadas por todo lado.”  
Esta publicação, do projeto Antropocenas, é fruto dessas preocupações e alianças: politizar e questionar o Antropos de Antropoceno. Com um dedo no umbigo, um dedo na água e outro furando a terra.

[ANTROPO MA NON TROPPO]

 

***

 

Conceção e curadoria Rita Natálio, João dos Santos Martins Proposta inicial e texto Rita Natálio |Dança Ana Pi, Ana Rita Teodoro, João dos Santos Martins | Artes Visuais Pedro Neves Marques |Música Winga Kan | Assistência dramatúrgica e de ensaios Joana Levi | Performer conferencista Jota Mombaça AKA Mc Katrina | Escultura Alexandra Ferreira | Participação especial Maria Inês Gameiro, Pedro Fazenda, Ana Paço | Luz Eduardo Abdala  Som Hugo Valverde, Ricardo Crespo | Cabelo Ana Fernandes/Griffe Hairstyle | Consultores Renato Sztutman, Suely Rolnik, Ailton Krenak, Paulo Tavares | Design de Publicação Isabel Lucena | Produção Associação Parasita | Apoio à produção Circular Associação Cultural | Produção executiva David Cabecinha, Patrícia Azevedo da Silva, João dos Santos Martins, Rita Natálio | Coprodução Materiais Diversos, São Luiz Teatro Municipal, Festival Temps d’Images, Centro Cultural Vila Flor | Apoio Fundação GDA, Goethe-Institut São Paulo, Departamento de Biologia Vegetal da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, MARE Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, Forbo Flooring Systems, Departamento de Escultura em Pedra do Centro Cultural de Évora | Apoio Institucional Teatro Sá da Bandeira – Santarém |Residências Culturgest, O Espaço do Tempo, Materiais Diversos, Centro de Criação do Candoso, 23 Milhas, Devir Capa, Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas | Parcerias BUALA  |Agradecimentos Rua das Gaivotas 6, Teatro Municipal Maria Matos, Ana Amorim, Vanda Brotas, Pedro Fazenda, Manuel João Martins, Teresa Rocha Santos, João Pinto da Costa e Armando Duarte, Manuel Miranda Fernandes | Registo Videográfico Jorge Jácome e Marta Simões | Registo Fotográfico José Carlos Duarte

Projeto apoiado por República Portuguesa:

Cultura / DGArtes Direção-Geral das Artes


por Ritó aka Rita Natálio
A ler | 22 Outubro 2017 | Antropoceno, bactérias, ecologia, performance, poder, política, vida