Nós, eles, porquê? (a propósito de Paulo Faria)

O rosto que falta | Fotografia do arquivo privado de Paulo Faria (cortesia de Paulo Faria)O rosto que falta | Fotografia do arquivo privado de Paulo Faria (cortesia de Paulo Faria)“Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra […], que sabe este caramelo de cinquenta anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, […] que sei eu que durante vinte e sete meses morei na angústia do arame farpado […] parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?”António Lobo Antunes, Memória de Elefante (1979)

 

Num texto recentemente publicado no Público, “O rosto que falta”, Paulo Faria escreve sobre uma fotografia da guerra colonial que lhe mostrou um alferes no decorrer de uma entrevista. A fotografia, que corta o texto em dois na dupla página do jornal, representa uns militares portugueses na Guiné a segurarem o corpo de um africano morto por eles, que aparece desfocado no primeiro plano, numa encenação que tem muito de teatral. A imagem é, como todas as fotografias de guerra, carregada de uma violência inerente ao contexto em que foi tirada.
 
“O rosto que falta” é um pungente texto sobre a guerra, mas sobretudo sobre a titularidade da experiência das situações traumáticas ligadas ao conflito armado, e nomeadamente ao fim do colonialismo português em África. Paulo Faria prossegue aqui a interrogação iniciada no romance Estranha Guerra de Uso Comum (que já tive a oportunidade de comentar num texto anterior), e que tem vindo a desenvolver, noutro âmbito, numa série de textos sobre os lugares de memória da Primeira Guerra Mundial, publicados no mesmo jornal.
 
Faria depara-se, logo, com a dificuldade não só de escrever sobre uma imagem chocante, mas também com a complexidade de descrever uma experiência que ele próprio não viveu directamente. Desde o início, coloca-se a questão da representação a posteriori na perspectiva do que Catherine Coquio chama “a testemunha da testemunha”:

“Isto é a guerra”, disse-me ele quando ma mostrou. […] Como se esta imagem expulsasse as palavras, as tornasse supérfluas. Ou, pior ainda, nocivas. Mas eu, que não estive na guerra, só tenho palavras para opor a esta imagem (1).
Para Faria, a fotografia simboliza a distância que separa a testemunha directa do escritor como ele que, na perspectiva da pós-memória, se aproxima da realidade da guerra colonial através dos depoimentos de outrem. Nesse sentido, fala do “fosso que a fotografia cava entre nós”, não apenas pelo que a imagem mostra, mas pelos significados que contém quanto à experiência violenta.
 
Na sua posição de herdeiro de uma realidade que não viveu, Paulo Faria tenta compreender, através da escrita, “o porquê desta fotografia”, a razão pela qual ela representa para o alferes “a raia do desumano”. Noutras palavras, o escritor quer “perceber o que é que o levou a traçar a linha aqui, neste limiar, e não mais adiante ou mais atrás”. No entanto, Faria depara-se com a dificuldade em ultrapassar o obstáculo da (não) titularidade. Fazendo referência a Michael Herr, fotógrafo que esteve na guerra do Vietname, Faria conclui a propósito da fotografia:
Eu não posso falar em “nós”. […] “E o que éramos, se, antes de carregarmos no botão da máquina, pedíssemos a alguém que soerguesse o cadáver, para conseguirmos uma fotografia melhor?” Não resulta. Persiste entre mim e o alferes o fosso que a fotografia cavou. Procuro o terreno comum entre eu próprio e a gramática desta fotografia.
Aqui, a distância que separa a titularidade da experiência é formulada em termos de linguagem: entre o “nós” de quem testemunha uma situação que lhe é própria e o “eles”, enunciação de quem apenas pode referir-se a estes factos como observador, há um intervalo tão amplo que o questionamento pareceria alcançar o falhanço. “Porque sim, porque calhou. Aconteceu. Não há porquês”, constata Paulo Faria, retomando as palavras do próprio alferes.
 
Poder-se-ia dizer que estamos perante um dos limites da pós-memória? Isto é, afinal de contas, as palavras de que dispõe o escritor não são suficientes para ultrapassar aquele fosso criado pela fotografia? Nada, então, poderia substituir a vivência real da experiência, neste caso, da morte e da guerra? Será portanto impossível, para o herdeiro, garantir a transmissão, ou seja, tornar-se ele próprio uma reincarnação da testemunha abraçando assim o “nós” que o inclui na história? Nas palavras de Catherine Coquio:

Com a “passagem do testemunho”, é como se se procurasse também ser testemunha, é como se o esforço da substituição se tornasse num desejo de incarnação . Assegurar esta substituição implica uma transformação interior, quase uma conversão. A “testemunha da testemunha” deve esta mutação moral ao seu sentido de responsabilidade, assim como às virtudes do próprio testemunho, que transforma o seu destinatário em testemunha. (2)

Contudo, esta ideia da literatura da pós-memória como mutação moral não se adequa completamente à escrita de Paulo Faria. Ora, a solução que o escritor esboça perante este vazio na questão da titularidade experiência situa-se do lado da literatura. Parafraseando um relato de Borges, Faria afirma:
O destino do alferes parece-me também o símbolo de alguma coisa que estou quase a compreender. Arrepio caminho, acolhendo-me às paragens, menos eriçadas de rebarbas, do quando e do como, abdicando do porquê que a fotografia me exigiu quando primeiro a vi…
Se o “porquê” não pode ser realmente atingido pela testemunha da testemunha, se o desejo de incarnação não se pode concretizar completamente, restam então o “quando” e o “como”. Isto é, através da escrita, o escritor irá à procura dos pormenores que para ele simbolizam a materialização da transmissão. Paulo Faria interessar-se-á, assim, pelo “rosto que falta” na imagem do alferes, pelo rosto do soldado Penedo, ausente da imagem, a segurar o morto para a fotografia, no mato africano.
 
Nas representações artísticas da pós-memória, a titularidade da experiência passaria, assim, por outras abordagens do testemunho que fazem da transmissão o lugar de uma reelaboração da memória traumática graças a uma nova posição enunciativa do herdeiro (3). No caso presente, a imagem de arquivo da guerra colonial é o ponto de referência a partir do qual o escritor, receptor da experiência alheia, propõe uma reconstituição do passado em que a sua própria reformulação busca acrescentar, pelas palavras, um elemento pessoal à memória primária da testemunha directa. Contudo, Paulo Faria está consciente dos limites do seu gesto de autor. Num texto sobre os lugares de memória da Grande Guerra em França, reproduzido no jornal Público de 19 abril 2019, Faria interroga-se:
Como é que se transmite a experiência da guerra, o horror da guerra, as emoções da guerra? Pela palavra? Pela imagem? E de que serve descrevê-la, representá-la, mostrá-la? Para evitar que se repita? Mas dar a conhecer a guerra a quem nunca a viveu alguma vez evitou que se travassem novas guerras? Alguém se tornou pacifista por ter lido a Ilíada, por ter visto Apocalypse Now?
Afinal, para o escritor da pós-memória, as palavras – a linguagem – são ao mesmo tempo o limite que simboliza a distância entre a testemunha de primeira mão e o herdeiro, e a única ponte capaz de ultrapassar o limiar a titularidade da experiência.
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(1) Salvo indicação contrária, as citações de Paulo Faria são tiradas do referido texto, “O rosto que falta”, publicado nas páginas 22 e 23 do suplemento P2 do Jornal Público a 6 de outubro de 2019.
(2) Catherine Coquio, Le mal de vérité ou l’utopie de la mémoire, Paris, Armand Colin, 2015, p. 149.
(3) Em Estranha Guerra de Uso Comum, o narrador de Paulo Faria chega a uma conclusão semelhante na última das suas cartas ao pai falecido: “E então, sim, quando me despeço do homem com quem me fui encontrar, aquele homem que te conheceu há já tantos anos, e arranco para Lisboa no escuro da noite, com duas, três, quatro horas de estrada pela frente, sei que fui ao fundo das histórias da guerra de África. Não respondi a nenhuma questão, não resolvi nenhum problema. Fui ao fundo do fundo”. Paulo Faria, Estranha Guerra de Uso Comum, Lisboa, Ática, 2016, p. 293.
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por Felipe Cammaert
A ler | 12 Novembro 2019 | Fotografia, guerra colonial, Literatura, Memoirs, Paulo Faria