La grande bellezza: breve apontamento sobre a cultura, hoje

Eat time | 2017 | Cristiano Mangovo (cortesia do artista e da galeria MOVART)Eat time | 2017 | Cristiano Mangovo (cortesia do artista e da galeria MOVART)No verão passado, foi editado em Itália um pequeno livro L’oppio del popolo (elèuthera, Milão), escrito por Goffredo Fofi, um conceituado crítico literário e cinematográfico, animador de importantes revistas que a partir dos anos 1970 desempenharam um relevante papel de divulgação crítica fulcral das artes, das sociedades e da cultura internacional, mas também da pedagogia e da educação (“Quaderni Piacentini”, “Ombre Rosse”, “Linea d’Ombra”, “La terra vista dalla luna”, “Lo straniero”, “Gli Asini”), numa perspetiva que privilegiou sempre as experiências minoritárias e de quem pratica, quando necessário, atos de desobediência civil. O livro, alvo de não poucas críticas por parte de alguns intelectuais italianos mais mainstream, é fruto de muitos anos de observação direta do panorama nacional, e sai num momento de profunda dificuldade para o país que parece deslizar hoje, irremediavelmente, para um horizonte dominado pelo ódio fácil, pela delação e pela desinformação. Um mundo onde a televisão há quase três décadas e os social media mais recentemente, desempenham um papel constante e muito pernicioso de total apagamento de qualquer tipo de consciência crítica, situação que se tem vindo a degenerar com poderosos e constantes cortes na educação e na investigação.
Esta situação é acompanhada por uma total incapacidade do mundo da política de agir com o mínimo de credibilidade, vindo a esvaziar assim qualquer possibilidade de projeto social minimamente inclusivo. A subida ao poder de forças que se gabam publicamente de ter estudado pouco, de não ler, demostrando também nas suas ações um substancial desrespeito por qualquer ordem moral, fez com que se tornasse possível dizer publicamente que nem todos os seres humanos podem ter os mesmos direitos ou por exemplo, acusar quem quer salvar vidas humanas no mar Mediterrâneo de ser “buonista”, pondo assim sólidas bases  para  uma luta entre pobres que cancela qualquer vestígio de possível luta de classe num país fortemente empobrecido, a não ser – como escreveu o sociólogo Luciano Gallino – a da luta dos ricos contra os pobres. Nesse panorama, Goffredo Fofi escreve que “a cultura, como hoje é entendida pelo poder e como nós deixamos que fosse entendida, já não é conhecimento, mas apenas um requintado instrumento para cegar as consciências e nos tornar cúmplices desse mundo.”
De fato, não podemos dizer que em Itália não se produza cultura, antes pelo contrário existe um número significativo de pessoas que se ocupam de cultura a vários níveis. Publicam-se muitíssimos livros, há uma oferta cultural variada, o problema é que ela se dilui cada vez mais num sistema de eventos, festivais, lançamentos e recensões mútuas e de cortesia,  elementos que acabaram por criar um sistema fechado, solipsista e interdito à maioria das pessoas que o rotula como prerrogativa da “esquerda”, que representa para muita gente a velha ordem e que falhou infelizmente o seu objetivo de criar uma sociedade mais justa. O problema é que dentro de um sistema desse tipo, poucos e quase nada exercem um verdadeiro ofício crítico útil para a sociedade, vindo-se assim a esgotar qualquer função civil da cultura. Acaba assim por se construir na cena cultural uma contra-narrativa apenas superficial do populismo e do racismo reinante, que exerce uma função auto-reconfortante  alimentada pela constante autopromoção do que se escreve, se filma, se pinta, se encena etc.
São práticas que se tornam produtos de um mercado cultural profundamente narcisista incapaz de se abrir para um “nós sincero” como escreve ainda Fofi e que cria um sistema de hábitos sociais vistos pela maioria dos italianos, que hoje vivem descomplexadamente a sua ignorância, como manifestações sem sentido que promovem, muitas vezes contraditoriamente, valores vistos como inúteis quando não nocivos para a sociedade porque não respeitam o lema “prima gli italiani” e porque se inspiram em princípios solidários. Falta militância, pressuposto do verdadeiro exercício intelectual, no sentido de promover a capacidade de repensar o país partindo da educação. É urgente voltar a fazer-se perguntas e voltar a uma dimensão da cultura que seja o filtro entre os indivíduos e a política lato sensu para sair do atual cenário que – não apenas em Itália infelizmente – lembra a máscara trágica do falhado mas mundano, Jep Gambardella, protagonista do aclamado filme La Grande Bellezza de Paolo Sorrentino.

 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Lívia Apa
A ler | 27 Janeiro 2020 | cultural, Itália, Memoirs