E nasce-me um monólogo por cima da moto

Tenho-te na minha mota. Vamos subir uma encosta que torna o acelerador mais pesado. A mota começa a arranhar. Vens com a conversa de que estou gordo, que tenho de comer menos. Dizes esta frase e rimos os dois a meio da estrada. Sabemos ambos que se há alguém com sobrepeso, não sou eu de certeza e estando apenas tu e eu, o gordo só podes ser tu. Não menciono a palavra porque me pareces um kota simpático. 

Nem fizemos três quilómetros e demonstras grande respeito e essas conversas de tentar puxar pela minha calma. É isso. Vamos subir esta avenida, deixo-te mais à frente. Tenho pena que não se prolongue mais a nossa viagem. 

Quiseste saber acerca dos meus estudos, se tenho escola… Tenho pois, andei na escola por muitos anos, sempre acreditei no que me foi oferecido como caminho. Dizer que me foi oferecido é meter uma certa leveza a uma realidade dura. É que isto me foi imposto por quem me queria bom cidadão, fazendo-me encaixar num conjunto de princípios e teorias, e outros muitos sonhos que me soprou a retórica dominante do sistema. Assimilei o que pude, enfrentei e aceitei os desafios que me foram colocados, não me tentei demarcar de nada, um caminho para ser seguido sem contestação. 

O sonho era para ser perseguido e a escola se mostrava um caminho linear sem contrariedades, uma receita imposta que ia dar a um plano de realização. A história dos pais fortalecia esta crença. Tinha que ser assim. Pela escola um futuro ideal, diferente, com outras oportunidades. Oportunidade aqui tem apenas uma conformidade, a de puxar mais para o social. É por aqui que me devia situar e empenhar. 

O destino tem muitas curvas. Aqui, no nosso país, há gente que tem nas mãos o mando sobre a vida de muitos. A esses senhores é dado o poder da não consulta às pessoas que têm ao redor, navegam numa postura única e espartilham direcções: a este, um caminho, a outro, outro. O sofrimento gerado não importa, a frustração tampouco. 

Hoje ando por aqui, a ver se amanhã, noutro dia, a sorte me acorre e tenho o destino virado para coisa diferente, que me permita outras possibilidades. Preciso encontrar-me, pôr-me distante disto, em busca do que me foi ensinado a crer. 

Enquanto seguimos, lembro-me do meu amigo do bairro, a mesma infância, mas ele começou lutas antes de mim. Lançou-se cedo para os caminhos de construção da sobrevivência. Sempre foi dado a pequenos negócios, até à altura em que conseguiu montar uma rede de zungueiros que trabalham para ele. O negócio é simples, venda de sapatos pelas ruas. Ele não se habitua àquilo, ao acto de ser patrão. Não descansa, forma par com um ou com outro. Conta hoje com cinco funcionários. 

Quando saem para trabalhar, formam três grupos que vão mudando todos os dias, assim como se alteram as rotas. Têm um mapa desenhado ao longo do tempo, uma obra de cartografia para amadores, com nomes criados para ruas e avenidas ou formas nos nossos bairros. Como não conhecem o nome das ruas, inventam pelas referências acerca dos seus moradores ou por alguma coisa relevante. 

O trabalho começa quase de madrugada. Exige acordar cedo, preparar-se para apanhar um táxi por volta das seis da manhã e pôr-se a caminhar cedinho, em passo apressado, no seguimento da rota que não difere: aproximar-se das casas de pessoas conhecidas/clientes para sugerir o produto que se tem. É difícil. É um trabalho de exigência grande, de contacto permanente com os clientes, de doação constante e muita conversa posta a meio para tentar persuadir  compradores. 

As pessoas desenvolvem uma extrema confiança por desconhecidas. Se sentem que há distância afectiva entre os termos da relação/ligação, se sabem que há espaços de tempo sem história partilhada, os ouvidos do encontrado passam a estar favorecidos para histórias diversas sobre o que for possível, sobre o que correu bem e sobre situações pontuais da política (quase sempre a xingar os políticos) e coisas do futebol no fim-de-semana. 

Tens de ter pedalada para acompanhar os tópicos que contigo querem discutir de forma instantânea e com pouca profundidade. Um zungueiro deve ser um homem para muito, diz ele.   

por Zezé Nguellekka
A ler | 19 Julho 2025 | angola, motoboy, zungueiras