A luxúria

Conhecemos a luxúria como um termo antigo associado à falta, ao pecado, aos excessos. Com a laicização da vida quotidiana o termo foi inocentado. No entanto, ninguém necessita de ganhar um milhão de euros por ano, não é justo, ninguém é merecedor de um salário tão elevado num mundo onde milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia.

A questão não é de natureza moral, é de natureza política. E o contrário de luxúria não é a advocacia de uma vida pobre nem mesmo austera, mas de um comportamento justo; daí que valha a pena desconstruir as políticas que permitem salários tão excessivos.

O conceito parece arredado da semântica contemporânea mas pode ser encontrado numa história da Ética, desde Aristóteles ao filósofo americano Michael Sandel, passando necessariamente por Amartya Sem. Esta história é acompanhada por uma outra que é a história da luxúria e das suas modelações ao longo de vinte e quatro séculos, e que foi recentemente revisitada por dois autores: Christopher J. Berry – The idea of luxury, a conceptual and historical investigation (1994), e Mike Featherstone em diversas obras sobre consumo e luxo.

A luxúria tem particular notoriedade com o contributo histórico do medievalismo cristão, tanto mais que estava associada à gula e à soberba. Porém, na actualidade decorre uma desresponsabilização política e económica da luxúria já que esta, num regime ideológico de consumismo, contribuiria para o aumento exponencial do consumo e, portanto, da ‘boa’economia; por outro lado, descarnada da sua dimensão de pecado, seria, em última instância, um estádio de desejo de todo o consumidor. Neste contexto, a luxúria é uma acumulação injusta de capital que se traduz na aquisição e maior ou menor exposição de objectos e práticas de luxo. Os objectos e as práticas de luxo devem ser, por sua vez, pesados e avalizados num determinado contexto social, nomeadamente considerando os costumes, as forças e a distribuição das rendas de produção, bem como a pobreza social.

Como diferenciar um objecto de luxo ou uma prática luxuosa? Um objecto de desejo e um objecto de luxo não são a mesma coisa: posso desejar um livro raro que não seja necessariamente – pelo custo, pelo conteúdo, pela edição – um objecto de luxo. O silêncio pode ser, em determinadas circunstâncias, um desejo absoluto mas a sua posse raramente estaria sujeita a mecanismos que são de total inacessibilidade para a maioria da população. No entanto, como defende Christopher Berry, a relação entre necessidades e desejos é determinante para classificar o luxo e a sua acumulação. “Necessidades são a satisfação de experiências universais e pode mesmo acrescentar-se que comer, vestir, abrigar-se são mesmo necessidades básicas universais. Pode ainda acrescentar-se a estas necessidades espirituais tais como a autonomia” para a obtenção da qual nenhum indivíduo precisa de um milhão de euros de rendimento anual. O autor conclui afirmando que as necessidades, ao contrário dos quereres, são universais e objectivas, atributos do homem comum.

Na história do luxo um dos aspectos particularmente importantes é a evidência de que nenhuma actividade humana escapa à vontade de se apropriar de coisas luxuosas quando detém o capital para isso. No século XVIII, o luxo era um dos atributos que contribuía para a qualificação de excelência de uma obra de arte e que a diferenciava de obras mais comuns ou mais medianas. Não foi necessário muito tempo para que esse atributo fosse subtraído às obras de arte e dele se apropriassem aqueles que se atribuem a si próprios vidas de acumulação de luxo, de luxúria.

A luxúria não é justa. Baseia-se numa distribuição desigual da riqueza produzida, sendo que essa desigualdade é criada e mantida pelo grupo que acumula a riqueza produzida. Ora, a justiça implica a possibilidade de equidade, ou seja, a possibilidade de todos os habitantes do planeta ganharem, por exemplo, um milhão de euros por ano. Este raciocínio, levado ao  absurdo, ajuda a compreender o impacto do consumo e da depredação do planeta (que o poder de tais salários também implica). Assim, não há mérito nesses honorários milionários pois eles nada têm a ver com produção, capacidade de gestão de informação ou outros requisitos considerados de valor competitivo; pelo contrário, esses montantes são valores decididos no interior do grupo da acumulação da riqueza, segundo um modo operativo que faz com que quem recebe estes salários milionários retribua a quem lhos concedeu – accionistas, governos, associações empresariais, industriais do espectáculo e do desporto – salários ou benefícios semelhantes e de valor equitativo semelhante, dentro desta lógica de grupo, preservando assim o carácter discriminatório face à maioria da população.

Não sabemos afirmar qual seria o valor justo para os salários, excluindo qualquer tipo de ditames das revoluções comunistas ou normativos de práticas missionárias e considerando a responsabilidade, o grau de especialização, a formação, a experiência de vida, etc. mas há, com toda a certeza, um limite a partir do qual tudo não é mais do que obsessiva acumulação de capital, desperdício e estímulo à insustentabilidade ecológica e, principalmente, uma fronteira a partir da qual se passa a pertencer a uma casta — que é uma casta financeira luxuriante.

Não é necessário recorrer aos exemplos da luxúria dos ditadores — que os faz possuir, por exemplo, uma pistola de 9mm em ouro, cujo preço é de 4.000 euros, como a que foi encontrada na posse de Khadafi, ou os cem palácios de Saddam Husseisn no Iraque, construídos de uma maneira fantasticamente sobredimensionada: “(os ditadores) gostam do estilo antigo para parecer uma arquitectura séria mas não apreciam as verdadeiras antiguidades porque não faz um género muito moderno”, diz Peter York em Dictator’s Home. Comportamentos de luxúria como estes encontram-se nas democracias ocidentais e até mesmo em Portugal. O filme “Donos de Portugal” de Jorge Costa apresenta bons exemplos da maneira como estas castas se formam, se mantêm e dos requisitos e mecanismos que fabricam para se auto-preservarem. Se a acessibilidade a esta casta não decorresse da escolha interna dos membros da casta e fosse feita em função do valor do trabalhador e da sua competência, então porque não se publicitam a concurso universal os cargos de executivos, presidentes, CEOs, etc.  e estes são escolhidos em função de programas, propostas, curricula como se se tratasse de uma missão humanitária ou mesmo de um cargo político?

Ninguém necessita de um milhão de euros por ano para viver. A partir de uma determinado conjunto de aquisições de bens de conforto e de qualidade de vida o que resta do capital remunerado só tem como função ser traduzido em valor de poder e de manutenção no seio da casta e é uma forma de manter uma fronteira rígida e intransponível entre os que dominam e os dominados.

Mas estes valores, para terem uma espécie de tradução espiritual, precisam de recorrer a instrumentos materiais e imateriais de exaltação da espiritualidade. Há, desde há muito, uma relação muito forte entre arte e capital. Quando o artista britânico Damien Hirst vende, como aconteceu num leilão na Sotheby’s em 2008, um conjunto das suas obras por 70 milhões de euros está a fazer várias coisas: a entrar para a casta; a dotar a casta de uma arte a que só muito poucos podem ter acesso enquanto proprietários (claro que ser artista da galeria Gagosian e expor na Tate Modern é, por sua vez, o modo de se valorizar como artista caro).

It’s about a civilization, the collapse of a civilization’ – Damien HirstIt’s about a civilization, the collapse of a civilization’ – Damien Hirst

A formação da casta precisa, no entanto, de luxos quotidianos para viver em permanente luxúria e para isso nada melhor do que, novamente, recorrer ao luxo espiritual. É essa necessidade de valor espiritual que os leva a adquirir obras antigas com brilho de facto ou simbólico (o carácter único de uma pintura de um impressionista, por exemplo), e existem ainda os estrategas da luxúria, pagos para isso mesmo, que se encarregam de criar produtos de acessibilidade muito reduzida graças ao elevadíssimo preço a que os colocam  no mercado – e que em nada têm a ver com os reais custos de produção. Um bom exemplo é a recente gama de perfumes que os seus produtores nomearam como Baudelaire e que custam 160€ /100ml: “Baudelaire, à parte ser um poeta importante do séc. XIX, escreveu muito sobre sexo e morte, e este perfume é muito ‘acerca disso’” diz Bem Gorham o criador da marca. “Portrait of a lady”, título do famoso livro do grande escritor Henry James, é hoje outro exemplo de perfume de luxo, mas só para alguns, conforme se anuncia. São “peças de colecção” segundo os criadores destas marcas, que usam ícones culturais como os referidos para tornarem os seus produtos mais apelativos, tão diferentes dos produtos das pseudo-celebridades, como refere Anna Morley (advogada de uma grande firma de advogados da City) ao Financial Times (11.8.12).

For the Love of God (2007) - Damien HirstFor the Love of God (2007) - Damien Hirst

O consumo de bens luxuosos está em ascensão em todo o mundo, como demonstra Gilles Lipovetsly em O luxo terno,  e há milhões de pessoas que querem fazer parte desta casta, confirmando a globalização de uma ideologia do consumo que integra a estratégia da auto-promoção da própria casta através dos seus, chamemos-lhes “ideólogos financeiros”. E não se trata apenas de olhar o brilho do bling bling dos novos ricos; mais do que isso, trata-se de poder, de decisões económicas e, portanto, políticas desta casta e à escala global.

Há, ainda, uma espécie de tentativa de inocentar estes desejos de luxo e de os despojar de qualquer relação política. Para tal contribuíram muitos programas televisivos, disfarçando esses desejos de luxo com uma suposta democratização do luxo e da hipótese de se lhe aceder. Não é a isso que nos referimos aqui mas sim ao que certos grupos da acumulação privada de capital fazem para se transformarem numa casta, criando mecanismos de aceitação e de rejeição independentemente das formas de aquisição desse mesmo capital. Nesses grupos reside a tomada de decisão sobre quem deve governar as nações.

 

 

Artigo originalmente publicado no suplemento Ipsilon do jornal Público (31(8/2012)

por António Pinto Ribeiro
A ler | 6 Setembro 2012 | arte, capital, classe, luxo, luxúria, ricos