A história colonialista e escravocrata dos Donos de Portugal: o caso dos antepassados do banqueiro Fernando Ulrich

O colonialismo, o racismo e, em alguns casos, a escravatura foram importantes formas de acumulação concreta da riqueza atual de muitos dos Donos de Portugal1. O passado familiar do banqueiro Fernando Ulrich - fundador do Banco Português de Investimento (BPI), defensor acérrimo da precariedade laboral e homem próximo do PSD - é um exemplo disso. A riqueza, influência e poder acumulados ao longo do tempo pelos seus antepassados, contam uma história de brutalidades. Hoje, desenterrar este passado é essencial para o importante debate sobre reparações históricas2.

Fernando Ulrich é trisneto de João Henrique Ulrich (1815-1885), um homem que enriqueceu com o tráfico de pessoas negras escravizadas e que a partir daí construiu o vasto império empresarial da família. Nascido em Portugal, este homem sinistro enriqueceu na costa Angolana e no Rio de Janeiro com a venda clandestina de pessoas, quando já era proibida a entrada de novos escravizados no Brasil3. De regresso a Portugal, passou a dominar diversas empresas, ligou-se à banca e foi deputado da monarquia.

O filho deste escravocrata e bisavô de Fernando Ulrich, João Henrique Ulrich Jr. (1851-1895), numa polémica com Ramalho Ortigão em 1873, escrevia o seguinte sobre a suposta benevolência da escravatura no Brasil, quando esta se mantinha ainda neste país e estava prestes a acabar nas colónias portuguesas4:

”[…] nunca encontrámos, nem ouvimos falar desses “negros famintos”. Antes, bem pelo contrário, vimos em todas ou quase todas as plantações os escravos tratados o mais humanamente, tendo boa habitação e excelente alimento - farto e substancial - pois é do próprio interesse do dono cuidar bem dos seus escravos e, cuidando-se até já bastante da educação das crianças escravas, pois que em algumas fazendas vimos o capelão dar-lhes lição de leitura de catequismo. […] os escravos são tratados com cuidado e até desvelo.”5

O homem que cito anteriormente foi fundador da Companhia Nacional de Tabacos e um destacado dirigente da Sociedade de Geografia de Lisboa6, instituição central para a colonização efetiva dos territórios africanos. A sua mulher, Maria Cristina de Orta Ennes (1856-1884), era irmã de António Ennes (1848-1901). Este tio-bisavô de Fernando Ulrich foi Ministro da Marinha e do Ultramar, Comissário Régio em Moçambique e fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi o responsável pela campanha de Mouzinho de Albuquerque contra Ngungunhane, e também por episódios de repressão sobre os povos da Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe7. A sua estátua em Maputo foi removida da via pública depois da independência do país.

O avô do banqueiro e filho do casal que refiro anteriormente, Fernando Enes Ulrich (1884-1950), foi um destacado monárquico e administrador do Banco de Portugal durante dezanove anos8, casou duas vezes com mulheres da família Mello. O seu irmão e tio-avô do banqueiro, Ruy Enes Ulrich (1883-1966), enquanto académico das Faculdades de Direito de Coimbra e de Lisboa, foi um importante teórico da colonização e dos conceitos que levaram ao “Estatuto do Indígena”9. Ruy Enes Ulrich foi também presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa10, fez parte da administração do Banco de Portugal, foi dirigente da Companhia de Moçambique e ainda presidente da Companhia Nacional de Navegação11. Um outro irmão, João Henrique Enes Ulrich (1880-1956), foi governador do Banco Nacional Ultramarino (BNU), instituição que o seu antepassado escravocrata foi um dos fundadores12. Do regime monárquico até à ditadura de Salazar, o BNU foi uma estrutura central na teia de interesses e esquemas que se montaram para a espoliação dos recursos dos territórios ocupados e exploração das suas populações.

Na geração seguinte, o pai de Fernando Ulrich, João Jorge Maria de Melo Ulrich, foi diretor da Tabaqueira, um dos “braços” da CUF de Alfredo da Silva: o “Padrinho” das grandes famílias do Estado Novo. A Companhia União Fabril (CUF), que tinha largos interesses coloniais, foi o maior império empresarial da ditadura fascista13.

Os antepassados Mello de Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é também descendente do clã Mello, o “polvo” das famílias burguesas nacionais14, por parte da sua avó, Maria Luísa da Ascensão José de Melo (1898-?). Os Mello acumularam um império com a exploração e repressão fascista, a pilhagem colonial, o trabalho forçado, os cultivos obrigatórios, o monopólio comercial nas colónias, as fomes e a guerra contra os povos africanos. Na verdade, não há nenhuma grande família protegida do Estado Novo que não tenha beneficiado diretamente das atrocidades do colonialismo: Espíritos Santos, Soares da Costa, Champalimauds, Mellos ou Ulrichs. Hoje estas famílias ainda acumulam fortunas, propriedades, poder, bancos ou empresas construídas sobre o sangue dos povos africanos e da repressão fascista em Portugal.

Não esquecer que depois, nos anos 1990s, enquadradas nas políticas neoliberais da União Europeia, os governos de Cavaco Silva (PSD) e de António Guterres (PS) devolveram a estas famílias, bancos e empresas nacionalizadas durante o PREC15 e, ainda as indemnizaram. Anos mais tarde, vários destes bancos e empresas foram desmantelados, vendidos ou faliram, por vezes envolvidos em escândalos de corrupção, como o famoso caso do Banco Espírito Santo (BES) de Ricardo Salgado, que ainda cava buracos todos os anos nos Orçamentos do Estado.

É importante também referir o papel de Fernando Ulrich e outros setores da burguesia nacional para o projeto neocolonial português atual. Por exemplo, o BPI teve até recentemente a presença de Isabel dos Santos como accionista e Fernando Ulrich chegou a ser presidente do conselho de administração do Banco de Fomento Angola (BFA). Neste sentido, os dirigentes portugueses destes bancos fazem parte da elite nacional que explora até hoje os recursos destes países, em parceria com as grandes burguesias africanas e internacionais.

As reparações históricas

Existem Estados, empresas, bancos, famílias e pessoas concretas que têm fortunas acumuladas devido a um passado de raptos, exploração, usurpação, miséria, massacres, tortura, prisão e morte de muitas vidas. Neste sentido, estes devem ser responsabilizados por esse passado. Isto porque as consequências destes crimes perduram até hoje na vida concreta dos povos originários americanos, dos africanos e dos afrodescendentes por todo o mundo, nomeadamente através do neocolonialismo, das desigualdades raciais e violência racista.

Portugal foi precursor do tráfico transatlântico de escravizados e os seus barcos foram os que mais transportaram forçadamente africanos para as Américas16. Portugal foi também o último país europeu a sair das colónias africanas, depois de ter sido derrotado em guerras de libertação que duraram mais de uma década. Com este passado, como se pode continuar a afirmar que Portugal não é racista? E como é possível que suas instituições continuem a fomentar fantasias lusotropicalistas? Os debates sobre reparações históricas pelo esclavagismo e colonialismo - que foram dos maiores crimes contra a Humanidade da História Moderna – são questões fundamentais em Portugal17. É, assim, determinante reivindicar do Estado e dos Donos de Portugal a sua responsabilização moral e material por esse passado brutal. Neste sentido, questionar a presente fortuna, poder e influência de milionários como o banqueiro Fernando Ulrich é fundamental. No fundo, as reparações históricas são acima de tudo justiça e igualdade para o futuro.

por Pedro Varela
A ler | 12 Novembro 2020 | angola, Brasil, donos de portugal, escravatura, escravocrata, Fernando Ulrich, história colonialista, monarquia